São Paulo, domingo, 10 de agosto de 2008

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OS BOAS-VIDAS

Em livros pretensiosos, o americano Jonathan Franzen e o inglês John Berger fazem autobiografias desiguais

ADRIANO SCHWARTZ
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em um poema memorável, Carlos Drummond de Andrade narra o encontro entre um ser humano e um marciano. O alienígena, assustado com a presença contraditória e confusa que avista ("como pode existir, pensou consigo, um ser/ que no existir põe tamanha anulação de existência"), foge.
Perseguido, uma vez que o outro buscava compreensão ("precisava dele como de um testemunho"), se desintegra.
Sozinho, melancólico, o homem conclui: "E fiquei só em mim, de mim ausente".
A impressão de um livro como "A Zona do Desconforto -Uma História Pessoal" (Companhia das Letras, trad. Sergio Flaksman, 232 págs., R$ 45), de Jonathan Franzen, autor que ganhou fama com "As Correções", é que uma perplexidade quase essencial como essa está muito, muito longe de suas preocupações.
É como se, parodiando o último verso do poema, ele dissesse: e fiquei só em mim, de mim pleno, transbordante, excessivo (ou, como ele diz: "O que me desgostava e irritava eram todos os outros seres humanos do planeta").
A obra, uma reunião com acréscimos de vários textos autobiográficos, é pontuada por alguns assuntos que são discutidos mais longamente, como os quadrinhos de Charles Schulz (1922-2000; como ele afirma, rememorando o tempo de sua adolescência com a convicação típica de quem tem muitas certezas no mínimo duvidosas, "o artista vivo mais famoso do planeta"), a literatura alemã e sua formação como artista ou a observação de aves.
A zona de desconforto a que o título se refere vem de uma discussão habitual dos pais do autor sobre em qual temperatura deixar o aquecimento da casa.
Mas, em sua vida, os "desconfortos" parecem sempre muito estrategicamente escolhidos para mostrar como, no final das contas, ele é "diferente" e especial, seja afirmando desconhecer a masturbação aos 18 anos, seja ressaltando as suas dificuldades sociais (para ao mesmo tempo ressaltar a sua genialidade...), como no seguinte trecho: "Eu precisava fingir que era um garoto para quem era natural dizer "merda" o tempo todo, que nunca tinha escrito um trabalho do tamanho de um livro sobre fisiologia vegetal, que não gostava de calcular magnitudes estelares absolutas em sua nova calculadora Texas Instruments com seis funções."
Se escrever uma autobiografia pressupõe uma vida extraordinária a ser reavaliada, Franzen poderia ter esperado um pouquinho, afinal ele não tem nem 50 anos e ainda haveria tempo para coisas interessantes acontecerem...

Fantasmas
É o caso de John Berger (1926), romancista, ensaísta e crítico de arte inglês que, em "Aqui Nos Encontramos" (ed. Rocco, tradução Ana Deiró, 208 págs., R$ 33,50), recria episódios de sua história como se encenasse uma peça com as pessoas com quem contracenou ao longo de sua existência, dando vida aos fantasmas (a mãe, o mentor, amigos, outros escritores) que povoam sua imaginação em locais que considera importantes e que dão nome aos capítulos do volume: Lisboa, Genebra, Cracóvia, Madri.
Assim como no livro de Franzen, existe aqui também um romance de formação do artista ou um capítulo forte dedicado à mãe morta.
A diferença é que o texto de Berger carrega um sentimento de pertinência, de adequação; provavelmente porque ele está repleto dos questionamentos de alguém que, no final da vida, olha para trás.
Desse modo, a despeito de alguns momentos forçados e dos problemas de ritmo na narrativa, ele se distancia do jogo narcisista de que não escapa "A Zona do Desconforto" e tantas das autobiografias que circulam por aí.


ADRIANO SCHWARTZ é professor de literatura na Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo.


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