São Paulo, domingo, 10 de agosto de 2008

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Livros

O pseudolibertador

Em biografia encomendada e marcada por preconceitos, Karl Marx qualifica Simón Bolívar de covarde e antidemocrático

FRANCISCO DORATIOTO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Karl Marx estava praticamente na miséria em meados da década de 1850, a ponto de, no duro inverno londrino de 1855, pedir ajuda financeira a Engels para comprar carvão e manter a casa aquecida.
Três anos antes, emprestara dinheiro de um vizinho para pagar o caixão da filha que morrera com um ano de idade.
Essa situação explica ter o filósofo alemão aceito, em 1857, convite de Charles Dana, editor do "New York Daily Tribune", extensivo a Engels, para escreverem verbetes de história militar e biografias para a "New American Cyclopaedia".
A Marx coube escrever a biografia de Simón Bolívar (na realidade, Simón José Antonio de la Santísima Trinidad Bolívar y Ponte Palacios y Blanco), embora não tivesse maior interesse ou conhecimento sobre o personagem.

"Canalha"
Bolívar morrera em 1830, e sua imagem póstuma era de competente estrategista militar e talentoso diplomata na luta pela independência de parte da América do Sul da Espanha, atuação que lhe valeu o título de "Libertador".
O pensamento marxista inspirou, no século 20, movimentos anticolonialistas, de libertação nacional, e o surgimento de interpretações teóricas críticas à expansão do capitalismo, como a do imperialismo.
Atualmente, o presidente venezuelano Hugo Chávez, com base em idéias que imagina terem sido de Bolívar, defende projeto político "bolivariano" e "socialista" e faz referências ao marxismo.
Nessas circunstâncias, há uma certa expectativa de que este ensaio de 24 páginas de Marx seja simpático a Bolívar.
Não é, porém, o que ocorre.
Marx detestava visceralmente Bolívar. Em carta a Engels, classificou o "Libertador" como "o mais covarde, brutal e miserável dos canalhas", enquanto no ensaio, mais comedido, apresenta-o como aristocrata, antidemocrático, covarde em campo de batalha, ambicioso em tornar-se ditador dos territórios que libertara.
De fato, Bolívar foi um riquíssimo latifundiário e não via nas massas populares consciência política suficiente para poder governar seu destino.

Queda no subjetivismo
Marx, embora elaborador do "materialismo histórico", que se propõe a explicar a história por suas condições objetivas, cai, contudo, no subjetivismo quanto a seu biografado.
Responsabiliza-o por dificuldades militares que, na realidade, são compreensíveis no contexto em que se deu a luta pela independência e adota postura simplificadora dos fatos ao apresentá-lo como sedento de poder -quando o mais justo seria vê-lo simultaneamente como líder e instrumento no processo, nem sempre linear e harmonioso, da construção de uma nova ordem política.
O livro também traz dois ensaios sobre o texto de Marx, um antes e outro depois do fim da União Soviética.

Eurocentrismo
No primeiro, de 1980, intitulado "O Bolívar de Marx", o marxista argentino José Aricó reconhece como errada a análise sobre "O Libertador", procura justificá-lo e conclui pela necessidade de o marxismo proceder a uma auto-avaliação.
Já no epílogo, escrito em 2001, os espanhóis Marcos Roitman Rosenmann e Sara Martinez Cuadrado interpretam positivamente o texto de Marx, vendo-o como esforço para destruir a visão idealizada de Bolívar: "Situa o personagem e não desconhece o valor de uma luta social pela independência".
Há, sem dúvida, esse esforço, ainda que misturado com um certo eurocentrismo (negado por Aricó) e preconceito por parte de Marx, a ponto de este escrever que, "como a maioria de seus compatriotas, ele [Bolívar] era avesso a qualquer esforço prolongado".


FRANCISCO DORATIOTO é professor no departamento de história da Universidade de Brasília.

SIMÓN BOLÍVAR POR KARL MARX
Autor: Karl Marx
Tradução: Vera Ribeiro
Editora: Martins (tel. 0/ xx/11/ 3116-0000)
Quanto: R$ 19 (80 págs.)


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