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Biotecnologia e o horror humanista
Associated Press
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Modelo desfila estampa que imita circuito eletrônico |
LUIZ FELIPE PONDÉ
especial para a Folha
A quarta barreira (a manipulação gênica) à qual se refere o filósofo Sloterdijk é na realidade uma
espécie de queda em um abismo
ontológico, o que produzirá seguramente um tipo de horror metafísico que nos faz pensar em uma
ciência visitada pelo terror gótico
de Lovecraft.
Há alguns anos a mídia foi invadida pelo evento da Dolly, a ovelha maldita. Todavia, para além
do que possa parecer, pensamos
que a clonagem não é o limite do
escatológico que se pode prever
com relação aos "pruridos morais" que uma sociedade narcisista produzirá quando acordar um
dia de seu sono dogmático e descobrir sua "ontotecnologia". A
verdadeira batalha moral se encontra na prática da programação
gênica em seres humanos, prática
essa que um dia será viável (ainda
que não com todas as cores que
lhe dá a "science fiction") no plano do mercado de bens de consumo: a biotecnologia é um dos horizontes promissores do capitalismo atual.
Interessante pensar que normalmente os alarmes do humanismo de plantão disparam -e
muitas vezes com alguma razão- quando se ouve o termo
"engenharia genética" (EG): nazismo, pureza étnica. Esse mesmo
humanismo confuso não parece
se dar conta de que um forte "halo
nazista", se limpados os contextos
históricos, permanece presente
em atitudes tais como o encurralamento da velhice pela automutilação feliz praticada por muitas
mulheres, na disciplina férrea dos
"clubes de saúde", na beleza higiênica de corpos esculpidos e no
culto da eficiência a toda prova.
Talvez, quando a "democratização" do consumo de bens gênicos
se concretizar no mercado, as pessoas percebam que se pode pensar em engenharia genética como
um "direito adquirido" em nome
do próprio projeto de emancipação moderna, e não só como
"limpeza ariana": algum dia, uma
gravidez não assistida por técnicas genéticas poderá soar como
uma mãe que não faz pré-natal e
se entrega ao sabor do acaso. Melhorar as "funções" genéticas não
é igual necessariamente a produzir uma "raça única". Mas, como
parece ser a regra geral, sem uma
compreensão imediata em termos de "liberdade de consumo"
ou "modos de consumo", o ser
humano ocidental emancipado
não consegue reconhecer nenhuma "racionalidade" no mundo à
sua volta.
A engenharia genética é um advento na história do planeta que
impõe a necessidade de produzirmos não apenas uma ética tampão, mas de procurarmos tomar
consciência da revolução ontológica que ela representa: a EG,
diante da concepção materialista
e pragmática -que tende a ser a
atual-, representa um potencial
emancipatório assustador.
Desde o mito da Queda, romper
o que é considerado o "limite natural" significa a sensação de vertigem do Ser. A revolução genética é mais próxima em radicalidade antropológica da revolução da
agricultura do que da industrial.
A civilização pós-genética será
mais distante da nossa do que foi
a pré-industrial. De caçadores-coletores do "natural" passamos a
seus programadores. A tentativa
fácil de tornar ilegítimo o uso-
em seres superiores, inclusive o
homem- da EG tenderá a se dissolver diante da atmosfera mental
contemporânea: interesses narcísicos, visão desencantada de
mundo, sociedade "market-oriented", relativismo feroz.
O drama se passa em um cenário materialista e pragmático,
portanto. Ser materialista significa pensar que tudo o que existe
são configurações distintas de
matéria. Ser pragmático é habitar
um mundo da multiplicidade dispersa encurralada pela contingência: o homem pragmático é racional, na medida em que mitiga
os efeitos nefastos do acaso sobre
si mesmo (as misérias da contingência) via uma engenharia de
conceitos: ter cognoscibilidade é
ter eficácia.
Nesse cenário, permanecer sendo é "programar eficientemente".
Mesmo em termos espirituais só
há lugar para uma espiritualidade
oportunista na qual drama metafísico é sinônimo de angústia com
o sucesso, ou seja, vitória sobre o
acaso (teologia da prosperidade).
A relação desse espiritualismo de
consumo com a EG é complacente, porque ele costuma aceitar
bem formas protobiotecnológicas
como parte do direito metafísico
ao sucesso: a patologização do envelhecimento e sua "cura" por
meio de tratamentos estéticos,
"plásticos" ou holísticos são formas arcaicas de biotecnologia
com largo consumo.
O verdadeiro mal-estar "ético"
aqui parece ser com a constatação
latente de que o uso da EG será
"irresistível" como forma avançada de humanismo narcísico, e
com isso seremos obrigados a
contemplar a existência apenas
histórica da "Natureza", que assim se revela relativa. Quando
pensa, esse oportunista produz
argumentos "críticos" frouxos,
como o que diz que a EG é contra
a "condição humana", como se
esta "condição" não fosse exatamente combater essa mesma Natureza que nos devora (a modernidade sendo apenas a radicalização desse "programa").
A cultura genética (o horror em
si) é aquela na qual a própria definição de cultura como algo que se
diferencia da Natureza tende a se
dissolver: o homem da cultura genética não sabe o que se opõe a
sua "techné". É a artificialidade
como horizonte único. Tal fato,
para esse homem, estabelecerá
uma possível consistência ética da
EG "heavy", já que o suposto privilégio do "natural" passa a ser
inexistente: o problema migra para procedimentos técnico-sociais,
como regulamentação jurídica,
padrões de comportamentos e a
demanda de consumo. Nesse nível, o drama da morte da "Natureza" se privatiza.
Contrariamente ao que se pensava, foi o materialismo -e não
qualquer forma de espiritualismo- que lançou o homem em
uma experiência social e psicológica de transcendência real: o materialismo não é mais somente
uma concepção de mundo, mas
sim uma prática (ética) que molda o real. É exatamente a selvagem equivocidade (variação de
sentido dos objetos e dos valores
no mundo) do materialismo que
se revela intratável à ética ingenuamente humanista que busca
limites para o uso pesado da EG. É
exatamente a "Natureza" que se
dissolverá contra a cultura, por
meio da banalização do consumo
de bens gênicos.
Essa equivocidade é a mesma
que visitou os sábios da Universidade de Salamanca, quando do
retorno das grandes navegações:
"Os índios são ou não seres humanos? Andam nus! Como podem ser descendentes de Adão?".
Com a decadência do vocabulário
teológico, essa questão perdeu o
poder de produzir horror à consciência ocidental. O que acontecerá quando o vocabulário "naturalista" perder a capacidade de nos
"assustar"? Quem tiver uma bela
alma, que volte à praia.
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