São Paulo, Domingo, 10 de Outubro de 1999
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Duas visões antagônicas sobre as controvertidas idéias de Peter Sloterdijk
TRECHO

da Redação

Leia a seguir excertos da conferência "Regras para um Parque Humano", do filósofo alemão Peter Sloterdijk. O texto integral pode ser encontrado, em alemão, no endereço eletrônico www.rightleft.net

PETER SLOTERDIJK

Os seres humanos podem ser definidos ao longo da história como animais dos quais uns são capazes de ler e escrever, e outros não. Daqui é só um passo (...) para a tese de que os seres humanos são animais dos quais uns promovem a procriação de seus pares, enquanto outros são criados -um pensamento que, desde as reflexões de Platão sobre a pedagogia e o Estado, faz parte do folclore pastoral dos europeus. (...)
Em seu diálogo "Político", Platão propôs a Magna Carta de uma politologia pastoral européia. Esse escrito não é só de relevância porque nele se revela com clareza ímpar o que os antigos realmente entendiam por pensamento (...); sua posição incomensurável na história do pensamento do homem está sobretudo em desdobrar-se como uma conversa de trabalho entre criadores, não por acaso com a participação de um grupo atípico para Platão: um estrangeiro e o jovem Sócrates, como se o comum dos atenienses não fosse nem sequer admitido em conversas dessa envergadura. (...)
O estrangeiro e seu opositor, o jovem Sócrates, consagram-se à delicada tentativa de impor claras regras racionais para a política futura ou pastoreio da cidade. Com tal projeto Platão cria uma inquietação intelectual no parque humano, que nunca mais pôde ser serenada por inteiro. Desde o "Político", os discursos no mundo que versam sobre a comunidade humana falam como de um parque zoológico, que é também um parque temático; a manutenção de seres humanos em parques ou cidades parece, dali em diante, uma tarefa zoopolítica. O que se apresenta como uma consideração sobre política é na verdade uma reflexão radical sobre as regras para a administração do parque humano. (...)
No que tange ao zoológico platônico (...) trata-se de averiguar se entre a população e a direção existe só uma diferença de grau ou uma diferença específica. Pela primeira hipótese, a distância entre os pastores de seres humanos e seus protegidos seria apenas fortuita e pragmática -nesse caso se poderia atribuir ao rebanho a capacidade de escolher periodicamente seus pastores. Mas, se entre os diretores do zôo e seus habitantes existir uma diferença específica, um e outro estariam apartados de tal maneira que não seria aconselhável o pleito eleitoral, cabendo a direção aos sábios. (...)
Sob a forma lógica de um exercício grotesco de definição, o diálogo do "Político" desenvolve os preâmbulos de uma antropotécnica política; nessa, não se trata somente de zelar pela domesticação de rebanhos por si sós já domesticados, mas de uma sistemática neoprocriação de exemplares humanos mais próximos ao ideal. (...)
A real e verdadeira razão da arte régia, segundo Platão, não reside no voto dos concidadãos, que a seu bel-prazer depositam ou retiram sua confiança nos políticos, e tampouco em privilégios herdados ou novas usurpações. O senhor platônico encontra a razão de seu governo unicamente no saber régio acerca da criação, num saber especializado da mais singular e atilada natureza. (...) A antropotécnica régia exige do homem de Estado que saiba cruzar, da maneira mais eficiente, as qualidades mais propícias ao bem comum de seres humanos voluntariamente dóceis, de modo que, sob seu pulso, o parque humano alcance a perfeita homeostase. (...)
O que Platão expõe, pelos lábios de seu estrangeiro, é um programa de uma sociedade humanista que toma corpo na figura um único humanista pleno, o senhor régio do pastoreio. A tarefa desse super-humanista não seria outra senão planejar as qualidades de uma elite que tem de ser procriada em benefício do próprio todo.


Tradução de José Marcos Macedo.



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