São Paulo, Domingo, 10 de Outubro de 1999
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LITERATURA
Há 150 anos, em 7 de outubro de 1849, morria o escritor norte-americano
Nevermore - Uma legião chamada Poe

WALNICE NOGUEIRA GALVÃO
especial para a Folha

 "Tel qu'en Lui-même enfin l'éternité le change (...)" Mallarmé,
"Le Tombeau d'Edgar Poe" (1)

Deveria vigorar entre os direitos civis das crianças a inoculação de uma dose de Edgar Allan Poe logo na infância. Nunca mais perderiam a chave daqueles deliciosos calafrios de terror que suas estórias despertam.
Adequado à audiência juvenil até hoje, esse é um dentre os múltiplos registros de leitura que, como se sabe, Poe admite. As narrativas percorrem toda a gama dos horrores. Falam, por exemplo, de canibalismo -mas não praticado por canibais, o que seria por assim dizer natural, e sim por brancos civilizados iguais ao autor e aos leitores, na pele de náufragos à beira da inanição. O leitor assiste, arrepiado, ao sorteio de um deles para manducação dos demais e ao festim que se segue.
Mas não fica aí. Há que optar entre cair num poço sem fundo e ser retalhado por um pêndulo afiado que se acerca. Há a morte pela peste, assim como a incineração em vida. Há cataclismos e catástrofes pairando no horizonte. Há o encontro de um navio-fantasma, juncado de cadáveres em putrefação. Ou o azar de esbarrar num manicômio adepto de uma terapia copiada do linchamento sulista, que cobre as vítimas de alcatrão e plumas. Nesse universo macabro, um dos segredos sadomasoquistas de Poe é dar forma aos mais recônditos pavores primários, de crianças e adultos.
Entretanto, também há os prazeres -e que prazeres- que o mestre da "viagem maravilhosa" oferece. Que criança não gostaria de ser pirata? E qual delas não sonhou decifrar um mapa desenhado a tinta invisível e achar um tesouro enterrado, protegido por esqueletos e caveiras? Entre tantos sustos vicários, conta-se ainda o de ser arrebatado por sorvedouros e vórtices. Ou aportar na Lua de balão. Ou então enfrentar a alvura fantasmal da Antártida. Ou despencar no "maelstrom" e retornar são e salvo, embora o cabelo tenha encanecido no trajeto.
Mas a quintessência do pesadelo reside naquele que mais devia temer o próprio autor, tal a frequência com que vem e revém na sua pena: ser enterrado ou emparedado vivo.
Dentre as fantasmagorias oitocentistas, nada escapa à prosa oracular de Poe, cheia de presságios e premonições: a hipnose, a telepatia, o magnetismo, a catalepsia, o sonambulismo, os espectros, as almas penadas, as avantesmas, a transmigração dos espíritos, as assombrações mais diversificadas. Em suma, as incursões pelo sobrenatural ou pelos estados crepusculares entre a vigília e o sono. Potenciados pela ansiedade e a angústia, sucedem-se maldições hereditárias, reminiscências atávicas, desdobramento do eu, mutilações, tortura, crime: perfeito porque gratuito, no entanto confessado devido a uma sinistra (masoquista?) compulsão pelo castigo. E ainda abria espaço para o grotesco, pelo qual se declarava afeiçoado.
Da legião chamada Poe, esse é apenas um, do qual se originam as eletrizantes antecipações de Jules Verne -tão racionais e saudáveis, quando comparadas às dele-, bem como, a partir daí, toda a "science fiction".
É esse Poe que se situa na confluência de várias tendências do romance "gótico" inglês, absorvendo elementos surgidos a partir da inauguração de um gênero bem setecentista, em "O Castelo de Otranto" (1765), de Horace Walpole; nos livros de Ann Radcliffe, os mais lidos de seu tempo, com seus heróis byronianos; em "O Monge", de "Monk" Lewis; em "Vathek", de Bedford; em "Frankenstein", de Mary Shelley; em "Drácula", de Bram Stoker; em "Memórias Íntimas e Confissões de um Pecador Justificado", de James Hogg, só tardiamente reconhecido; em parte da obra de Walter Scott, admirador de Ann Radcliffe, sobre a qual escreveu; em "O Médico e o Monstro", de Robert Louis Stevenson. Na sequência, até Dickens guardaria traços góticos, que ainda alcançarão Faulkner. Sem esquecer, fora da esfera britânica e entre os primeiros românticos, os contos fantásticos de Hoffmann. Quase cem anos depois da inauguração, tais traços ecoarão em meados do século seguinte na França, nos romances de Victor Hugo e de Eugène Sue.
O gótico invoca as potências das trevas e exerce o ocultismo, os malefícios, a feitiçaria, a missa negra, a necrofilia, o culto ao demônio. Num clima onírico sepulcral, predominam o informe, o incriado, o inquietante. Compõem o cenário o castelo mal-assombrado, o cemitério, o mausoléu, as ruínas, a bruma, entre imagens dos mundos ínferos, tais como a masmorra, o porão, o túmulo. Pouco se disfarçam a tanatosiana sedução da morte e do aniquilamento, ou as profundezas abissais da paisagem e da psique. A prosa tempestuosa mimetiza as pulsões e as projeções do inconsciente, às voltas com a atração pelo sacrilégio e pela profanação. Ninguém discute que Poe pode ser visto como o maior dentre os góticos.
Também foi poeta, aliás afinado pelo diapasão do satanismo e do decadentismo, vertentes acentuadas no segundo romantismo, embora já dêem sinais no primeiro. Goethe não desdenhou de oferecer um papel a Mefistófeles. Victor Hugo se debate com o desaparecimento de Deus e com o Diabo, em longos poemas míticos intitulados "Dieu" e "La Fin de Satan". Byron foi satanista convicto até no percurso existencial. Entre nós esteve presente nos byronianos, tendo como mais ilustre representante Álvares de Azevedo, que não se furta a pôr Satã em cena. Incluem-se na tendência Nerval, Baudelaire e Rimbaud, autor de "Une Saison en Enfer".
Após parco reconhecimento em seu tempo e seu país, a reviravolta na recepção da obra de Poe deu-se mediante a descoberta póstuma pelos franceses. Poeta maldito "avant-la-lettre", além de criar aqueles horrores, também se recomendava pela dipsomania, enquanto elogiava o ópio em seus textos.
Os românticos, como ninguém ignora, lançaram a moda dos tóxicos, por acreditarem que desencadeavam a inspiração e facultavam o transe. Poeta que se prezasse tomava ópio, como Coleridge, e descrevia suas viagens para os leitores. Popularidade não faltou às "Confissões de um Comedor de Ópio", de Thomas de Quincey, divulgadas por Baudelaire, que as traduziu e adaptou, acrescentando-lhes um estudo de próprio punho e dando ao conjunto o título de "Les Paradis Artificiels" (Os Paraísos Artificiais). O próprio Baudelaire era usuário, como bem mais tarde Cocteau. Para Rimbaud e Verlaine, assim como para Poe, as bebidas espirituosas é que preenchiam essa função. Mais para o "fin-de-siècle", os artistas passaram a tomar absinto, o qual, acusado de causar cegueira e loucura, encontra-se até hoje banido da França. Nos anos 30, Walter Benjamin não resistiu a provar o haxixe, e a beat generation de Kerouac, Ginzberg e Ferlinghetti fez do uso de várias drogas um programa e uma estética: vide "O Almoço Nu", de William Burroughs. Não fica alheio Aldous Huxley, autor de "As Portas da Percepção", em que tematiza a ingestão de ácido lisérgico.
Foi assim que um visionário anotador de alucinações -indisfarçáveis visitações pessoais-, acicatado pelo demônio da intemperança e sujeito a crises de "delirium tremens", de que viria a morrer, acabou por se tornar epítome do poeta maldito. Veio pronto em obra e vida, a qual, atribulada, provou-se autodestrutiva como poucas. Seria curta, não ultrapassando os 41 anos, que decorreram entre 1809 e 1849.
Após um século de psicanálise, não mais passam por tão inocentes os devaneios sulfúricos de Poe, a quem Marie Bonaparte, discípula dileta de Freud, dedicou um livro. Aliando dados da biografia a dados da obra, Nabokov insinuou em Lolita a pecha da perversão, alçando Poe a precursor em pedofilia, para não falar em incesto. A começar por Virginia Clemms, esposa e prima, contando 14 anos (dois mais que Lolita) quando se uniu ao marido de 27, que cedo a veria morrer de tuberculose. Em "Annabel Lee", que dá a rima para "In a kingdom by the sea" -território imaginário onde se situa o poema- os amantes são crianças ("I was a child and she was a child"). As pistas levantadas por Nabokov dão-lhe parentesco com Lewis Carroll e sua atração por menininhas. (Mas outras pistas sugerem impotência, bloqueios sexuais etc., entre demais amenidades)
O paladino da descoberta européia foi Baudelaire, passando para o francês as "Histoires Extraordinaires", propondo uma versão em prosa de "Le Corbeau" (O Corvo), tomando-o como objeto de estudos críticos. Mallarmé traduziu "Les Poèmes d'Edgar Poe" (inclusive, de novo, "O Corvo") e, à guisa de prefácio, compôs um soneto apologético, "Le Tombeau d'Edgar Poe" (O Túmulo de Edgar Poe). Valéry voltou-se para a prosa de especulação cosmológica de "Eureka" e incorporou elementos da estética. Esses poetas identificaram-se com o doutrinador da poesia pura e da arte pela arte, ideais do parnasianismo e do simbolismo, bem como com o defensor da concepção do poeta como criador voluntário comandando sua inspiração. É bem verdade que há estudiosos e artistas de língua inglesa mais reticentes, mas que ainda assim o louvam pela musicalidade do verso e pela força das imagens, em meio a uma atmosfera etérea e evanescente. De todo modo, a voga foi tal que alguns críticos houveram por bem acautelar os leitores de que Edgar Allan Poe e "Edgarpo" não são a mesma pessoa.
Há mais um Poe, inventor da ficção policial e criador de Dupin, o primeiro detetive literário. São três os contos precursores: "Assassinato de Marie Roget", "Os Crimes da Rua Morgue", "A Carta Roubada". A ênfase que Dupin punha na pura dedução intelectual tornam-no ancestral imediato de Sherlock Holmes. Lacan teve a honra de relançar Poe, ao dedicar nos "Écrits" todo um estudo a "A Carta Roubada", com base na versão baudelairiana, no qual analisa a eficácia simbólica do objeto da narrativa.
Nos pequenos ensaios que publicou sobre temas variados -entre mistificações e apócrifos- sobressai outro Poe, exegeta da produção coeva, meditando sobre conto e sobre poesia, reputação que deve sobretudo à "Filosofia da Composição", meticulosa análise da maneira como concebeu e criou "O Corvo". Entre nós, tornou-se canônica a tradução via Baudelaire feita por Machado de Assis, que não escapou do mais célebre de seus poemas.
Num último avatar, Poe tem sido estimado como ourives do conto, tal a perfeição com que burila o mecanismo dessa variante épica, que privilegiou na teoria ao ressaltar três de seus elementos: a estrutura condensada num efeito único, o preparo do clímax ou desenlace, a economia de meios. Uma dupla posteridade resultará. A primeira delas ficcional, graças à hegemonia da "short story" na prosa norte-americana moderna, a partir daí se expandindo até desembocar em Jorge Luis Borges. E a segunda, crítica, que o considera modelar, como teórico e praticante do conto. Mesmo que a tradição anglo-saxônica se mostre dividida, dentre os admiradores que lhe dedicaram reflexões destacam-se dois ficcionistas, Cortázar e seu prefaciador Dostoiévski.


Nota da Redação 1. "Tal que a Si-mesmo enfim a Eternidade o guia..." ("A Tumba de Edgar Poe", trad. de Augusto de Campos, em "Mallarmé", Ed. Perspectiva).

Walnice Nogueira Galvão é ensaísta e crítica literária, autora, entre outros, de "Desconversa" (Ed. da UFRJ).


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