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LITERATURA
Há 150 anos, em 7 de outubro de 1849, morria o escritor norte-americano
Nevermore - Uma legião chamada Poe
WALNICE NOGUEIRA GALVÃO
especial para a Folha
"Tel qu'en Lui-même enfin l'éternité
le change (...)" Mallarmé,
"Le Tombeau d'Edgar Poe" (1)
Deveria vigorar entre os direitos
civis das crianças a inoculação de
uma dose de Edgar Allan Poe logo
na infância. Nunca mais perderiam a chave daqueles deliciosos
calafrios de terror que suas estórias despertam.
Adequado à audiência juvenil
até hoje, esse é um dentre os múltiplos registros de leitura que, como se sabe, Poe admite. As narrativas percorrem toda a gama dos
horrores. Falam, por exemplo, de
canibalismo -mas não praticado
por canibais, o que seria por assim dizer natural, e sim por brancos civilizados iguais ao autor e
aos leitores, na pele de náufragos
à beira da inanição. O leitor assiste, arrepiado, ao sorteio de um deles para manducação dos demais
e ao festim que se segue.
Mas não fica aí. Há que optar
entre cair num poço sem fundo e
ser retalhado por um pêndulo
afiado que se acerca. Há a morte
pela peste, assim como a incineração em vida. Há cataclismos e catástrofes pairando no horizonte.
Há o encontro de um navio-fantasma, juncado de cadáveres em
putrefação. Ou o azar de esbarrar
num manicômio adepto de uma
terapia copiada do linchamento
sulista, que cobre as vítimas de alcatrão e plumas. Nesse universo
macabro, um dos segredos sadomasoquistas de Poe é dar forma
aos mais recônditos pavores primários, de crianças e adultos.
Entretanto, também há os prazeres -e que prazeres- que o
mestre da "viagem maravilhosa"
oferece. Que criança não gostaria
de ser pirata? E qual delas não sonhou decifrar um mapa desenhado a tinta invisível e achar um tesouro enterrado, protegido por
esqueletos e caveiras? Entre tantos
sustos vicários, conta-se ainda o
de ser arrebatado por sorvedouros e vórtices. Ou aportar na Lua
de balão. Ou então enfrentar a alvura fantasmal da Antártida. Ou
despencar no "maelstrom" e retornar são e salvo, embora o cabelo tenha encanecido no trajeto.
Mas a quintessência do pesadelo reside naquele que mais devia
temer o próprio autor, tal a frequência com que vem e revém na
sua pena: ser enterrado ou emparedado vivo.
Dentre as fantasmagorias oitocentistas, nada escapa à prosa
oracular de Poe, cheia de presságios e premonições: a hipnose, a
telepatia, o magnetismo, a catalepsia, o sonambulismo, os espectros, as almas penadas, as avantesmas, a transmigração dos espíritos, as assombrações mais diversificadas. Em suma, as incursões
pelo sobrenatural ou pelos estados crepusculares entre a vigília e
o sono. Potenciados pela ansiedade e a angústia, sucedem-se maldições hereditárias, reminiscências atávicas, desdobramento do
eu, mutilações, tortura, crime:
perfeito porque gratuito, no entanto confessado devido a uma sinistra (masoquista?) compulsão
pelo castigo. E ainda abria espaço
para o grotesco, pelo qual se declarava afeiçoado.
Da legião chamada Poe, esse é
apenas um, do qual se originam
as eletrizantes antecipações de Jules Verne -tão racionais e saudáveis, quando comparadas às dele-, bem como, a partir daí, toda
a "science fiction".
É esse Poe que se situa na confluência de várias tendências do
romance "gótico" inglês, absorvendo elementos surgidos a partir
da inauguração de um gênero
bem setecentista, em "O Castelo
de Otranto" (1765), de Horace
Walpole; nos livros de Ann Radcliffe, os mais lidos de seu tempo,
com seus heróis byronianos; em
"O Monge", de "Monk" Lewis;
em "Vathek", de Bedford; em
"Frankenstein", de Mary Shelley;
em "Drácula", de Bram Stoker;
em "Memórias Íntimas e Confissões de um Pecador Justificado",
de James Hogg, só tardiamente
reconhecido; em parte da obra de
Walter Scott, admirador de Ann
Radcliffe, sobre a qual escreveu;
em "O Médico e o Monstro", de
Robert Louis Stevenson. Na sequência, até Dickens guardaria
traços góticos, que ainda alcançarão Faulkner. Sem esquecer, fora
da esfera britânica e entre os primeiros românticos, os contos fantásticos de Hoffmann. Quase cem
anos depois da inauguração, tais
traços ecoarão em meados do século seguinte na França, nos romances de Victor Hugo e de Eugène Sue.
O gótico invoca as potências das
trevas e exerce o ocultismo, os
malefícios, a feitiçaria, a missa negra, a necrofilia, o culto ao demônio. Num clima onírico sepulcral,
predominam o informe, o incriado, o inquietante. Compõem o cenário o castelo mal-assombrado,
o cemitério, o mausoléu, as ruínas, a bruma, entre imagens dos
mundos ínferos, tais como a masmorra, o porão, o túmulo. Pouco
se disfarçam a tanatosiana sedução da morte e do aniquilamento,
ou as profundezas abissais da paisagem e da psique. A prosa tempestuosa mimetiza as pulsões e as
projeções do inconsciente, às voltas com a atração pelo sacrilégio e
pela profanação. Ninguém discute que Poe pode ser visto como o
maior dentre os góticos.
Também foi poeta, aliás afinado
pelo diapasão do satanismo e do
decadentismo, vertentes acentuadas no segundo romantismo, embora já dêem sinais no primeiro.
Goethe não desdenhou de oferecer um papel a Mefistófeles. Victor Hugo se debate com o desaparecimento de Deus e com o Diabo, em longos poemas míticos intitulados "Dieu" e "La Fin de Satan". Byron foi satanista convicto
até no percurso existencial. Entre
nós esteve presente nos byronianos, tendo como mais ilustre representante Álvares de Azevedo,
que não se furta a pôr Satã em cena. Incluem-se na tendência Nerval, Baudelaire e Rimbaud, autor
de "Une Saison en Enfer".
Após parco reconhecimento em
seu tempo e seu país, a reviravolta
na recepção da obra de Poe deu-se mediante a descoberta póstuma pelos franceses. Poeta maldito
"avant-la-lettre", além de criar
aqueles horrores, também se recomendava pela dipsomania, enquanto elogiava o ópio em seus
textos.
Os românticos, como ninguém
ignora, lançaram a moda dos tóxicos, por acreditarem que desencadeavam a inspiração e facultavam o transe. Poeta que se prezasse tomava ópio, como Coleridge,
e descrevia suas viagens para os
leitores. Popularidade não faltou
às "Confissões de um Comedor
de Ópio", de Thomas de Quincey,
divulgadas por Baudelaire, que as
traduziu e adaptou, acrescentando-lhes um estudo de próprio punho e dando ao conjunto o título
de "Les Paradis Artificiels" (Os
Paraísos Artificiais). O próprio
Baudelaire era usuário, como
bem mais tarde Cocteau. Para
Rimbaud e Verlaine, assim como
para Poe, as bebidas espirituosas é
que preenchiam essa função.
Mais para o "fin-de-siècle", os artistas passaram a tomar absinto, o
qual, acusado de causar cegueira e
loucura, encontra-se até hoje banido da França. Nos anos 30, Walter Benjamin não resistiu a provar
o haxixe, e a beat generation de
Kerouac, Ginzberg e Ferlinghetti
fez do uso de várias drogas um
programa e uma estética: vide "O
Almoço Nu", de William Burroughs. Não fica alheio Aldous
Huxley, autor de "As Portas da
Percepção", em que tematiza a ingestão de ácido lisérgico.
Foi assim que um visionário
anotador de alucinações -indisfarçáveis visitações pessoais-,
acicatado pelo demônio da intemperança e sujeito a crises de
"delirium tremens", de que viria a
morrer, acabou por se tornar epítome do poeta maldito. Veio
pronto em obra e vida, a qual,
atribulada, provou-se autodestrutiva como poucas. Seria curta, não
ultrapassando os 41 anos, que decorreram entre 1809 e 1849.
Após um século de psicanálise,
não mais passam por tão inocentes os devaneios sulfúricos de Poe,
a quem Marie Bonaparte, discípula dileta de Freud, dedicou um
livro. Aliando dados da biografia
a dados da obra, Nabokov insinuou em Lolita a pecha da perversão, alçando Poe a precursor em
pedofilia, para não falar em incesto. A começar por Virginia
Clemms, esposa e prima, contando 14 anos (dois mais que Lolita)
quando se uniu ao marido de 27,
que cedo a veria morrer de tuberculose. Em "Annabel Lee", que dá
a rima para "In a kingdom by the
sea" -território imaginário onde
se situa o poema- os amantes
são crianças ("I was a child and
she was a child"). As pistas levantadas por Nabokov dão-lhe parentesco com Lewis Carroll e sua
atração por menininhas. (Mas
outras pistas sugerem impotência, bloqueios sexuais etc., entre
demais amenidades)
O paladino da descoberta européia foi Baudelaire, passando para o francês as "Histoires Extraordinaires", propondo uma versão
em prosa de "Le Corbeau" (O
Corvo), tomando-o como objeto
de estudos críticos. Mallarmé traduziu "Les Poèmes d'Edgar Poe"
(inclusive, de novo, "O Corvo") e,
à guisa de prefácio, compôs um
soneto apologético, "Le Tombeau
d'Edgar Poe" (O Túmulo de Edgar Poe). Valéry voltou-se para a
prosa de especulação cosmológica de "Eureka" e incorporou elementos da estética. Esses poetas
identificaram-se com o doutrinador da poesia pura e da arte pela
arte, ideais do parnasianismo e do
simbolismo, bem como com o defensor da concepção do poeta como criador voluntário comandando sua inspiração. É bem verdade que há estudiosos e artistas
de língua inglesa mais reticentes,
mas que ainda assim o louvam
pela musicalidade do verso e pela
força das imagens, em meio a
uma atmosfera etérea e evanescente. De todo modo, a voga foi
tal que alguns críticos houveram
por bem acautelar os leitores de
que Edgar Allan Poe e "Edgarpo"
não são a mesma pessoa.
Há mais um Poe, inventor da
ficção policial e criador de Dupin,
o primeiro detetive literário. São
três os contos precursores: "Assassinato de Marie Roget", "Os
Crimes da Rua Morgue", "A Carta
Roubada". A ênfase que Dupin
punha na pura dedução intelectual tornam-no ancestral imediato de Sherlock Holmes. Lacan teve a honra de relançar Poe, ao dedicar nos "Écrits" todo um estudo
a "A Carta Roubada", com base
na versão baudelairiana, no qual
analisa a eficácia simbólica do objeto da narrativa.
Nos pequenos ensaios que publicou sobre temas variados
-entre mistificações e apócrifos- sobressai outro Poe, exegeta da produção coeva, meditando
sobre conto e sobre poesia, reputação que deve sobretudo à "Filosofia da Composição", meticulosa
análise da maneira como concebeu e criou "O Corvo". Entre nós,
tornou-se canônica a tradução via
Baudelaire feita por Machado de
Assis, que não escapou do mais
célebre de seus poemas.
Num último avatar, Poe tem sido estimado como ourives do
conto, tal a perfeição com que burila o mecanismo dessa variante
épica, que privilegiou na teoria ao
ressaltar três de seus elementos: a
estrutura condensada num efeito
único, o preparo do clímax ou desenlace, a economia de meios.
Uma dupla posteridade resultará.
A primeira delas ficcional, graças
à hegemonia da "short story" na
prosa norte-americana moderna,
a partir daí se expandindo até desembocar em Jorge Luis Borges. E
a segunda, crítica, que o considera
modelar, como teórico e praticante do conto. Mesmo que a tradição anglo-saxônica se mostre dividida, dentre os admiradores
que lhe dedicaram reflexões destacam-se dois ficcionistas, Cortázar e seu prefaciador Dostoiévski.
Nota da Redação
1. "Tal que a Si-mesmo enfim a Eternidade o
guia..." ("A Tumba de Edgar Poe", trad. de
Augusto de Campos, em "Mallarmé", Ed.
Perspectiva).
Walnice Nogueira Galvão é ensaísta e crítica literária, autora, entre outros, de "Desconversa" (Ed. da UFRJ).
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