São Paulo, Domingo, 10 de Outubro de 1999
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POLÍTICA
Depois de mais de 20 anos no exílio, o escritor e cientista russo expõe os motivos de seu retorno à terra natal
O pensamento insubmisso de Alexandre Zinoviev

JANIO DE FREITAS
do Conselho Editorial

Eram chamados de dissidentes. Três nomes os simbolizaram, pela relevância com que refletiam os diferentes modos da contestação mais notória, e de maior repercussão internacional, ao recuo imposto pela liderança soviética à distensão interna que Khruschov insinuou.
Soljenitsyn foi a fúria, a rejeição totalitária, lavas expelidas, a um só tempo, das profundezas do regime e das profundezas do indivíduo. Não foi cômodo nem para os propagandistas do anticomunismo que o trouxeram para o Ocidente, porque em pouco tempo despejava torrentes de fúria contra o capitalismo e a maneira de vida nos Estados Unidos. Até sua literatura acabou posta de lado.
Eficaz talvez como nenhum outro, para fora e para dentro da URSS, foi um homem com ar de avô universal, dotado de serenidade invencível. Ninguém mais humanamente contrastante com a obra oficial de sua vida: a bomba nuclear da URSS. Andrei Sakharov fez da desobediência civil uma arma quase tão poderosa quanto sua outra criação. O regime não conseguiu deter-lhe a correspondência e as entrevistas denunciando ao exterior as prisões e banimentos de dissidentes; nem seus manifestos de crítica e pregação, ou as reuniões de organização e apoio à dissidência crescente. Banido ele próprio, foi e voltou da Sibéria comovendo meio mundo com a calma determinação de sua luta por um socialismo com direitos individuais.
Alexandre Zinoviev não adotou a grandiloquência, nem o desafio ostensivo. Considerado gênio nos domínios da lógica, com numerosos trabalhos traduzidos no Ocidente (casos, entre outros, de "As Regras da Lógica da Linguagem", "Teoria Lógica do Saber Científico", "Lógica Complexa"), dedicara-se particularmente a desenvolver uma abordagem lógica da relação entre manifestações culturais e linguística. Os representantes da "cultura científica" do regime não apreciaram sua linha de trabalho. Ou, não menos provável, decidiram extinguir, pelo método indireto, o grupo de pesquisadores que adotara Zinoviev como centro inspirador.
O começo foi a recusa à publicação de trabalhos indicados por Zinoviev para a revista "Problemas de Filosofia", cuja direção integrava. Zinoviev renunciou ao cargo. Em seguida, foi-lhe tirada a cátedra de lógica na Universidade de Moscou. Em disponibilidade, Zinoviev respondeu com o imprevisto: entregou-se à literatura. O livro (um título estranho, mais ou menos "As Altitudes Abertas", uma certa idéia de abismos) foi considerado a primeira visão literária a abarcar toda a realidade de um sistema de vida totalitário. Zinoviev foi comparado a Voltaire, Gógol e outros. E teve cassados todos os seus diplomas, o registro no Partido Comunista e as possibilidades de algum trabalho regular.
Dois anos depois, em 78, foi surpreendido com a autorização do governo para conduzir um seminário de lógica na Universidade de Munique. Ainda recém-chegado à Alemanha, teve notícia de que sua cidadania fora cassada, o passaporte invalidado e as portas da URSS fechadas à sua volta. Ficou em Munique mesmo, onde retomou a atividade científica.
O segundo dos seus romances fora escrito ainda na disponibilidade compulsória em Moscou, mas a edição em russo precisou ser feita na França, em 78. "O Futuro Radioso" inverte o anterior: mostra a ação de métodos opressivos sobre o restrito mundo de um professor sério. Embora para um público mais intelectualizado -o livro é repleto de reflexões, muitas delas extensas e todas interessantes-, alcançou sucesso editorial. E literário, ganhando, além de outros, o Prêmio Médicis de 78, na França.
O artigo em que Zinoviev comunica sua volta à Rússia aparenta, pelas razões que o levam a fazê-lo, um certo pasmo desesperado. Nada disso. É só a voz continuada de um homem que, diante de um ou de outro ou de qualquer Poder, pensa -logo, não deve existir.


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