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LIVROS
Ensaios sociológicos de "Ciladas da Diferença" e "Em Defesa da História" desmontam vulgata pós- moderna
Elogio da igualdade
MARCELO COELHO
da Equipe de Articulistas
O ser humano não existe: existem ingleses, chineses, americanos. O americano não existe: existem mulheres americanas, negros
americanos, gays americanos. A
mulher americana não existe:
existem mulheres americanas negras, mulheres americanas gays.
A mulher americana negra não
existe: existem mulheres americanas negras de classe média, mulheres americanas negras operárias...
Isto não é tudo. As classes sociais também não existem. Há
grupos que se redefinem a cada
momento, a cada circunstância:
motoristas de táxi se dissolvem
em corintianos ou palmeirenses,
que se dissolvem em adolescentes
ou velhos, que se constroem enquanto moradores do Bixiga ou
da Lapa. A Lapa não existe: é uma
construção imaginária, uma identidade geográfica criada segundo
juízos de valor, experiências subjetivas, jogos de linguagem sedimentados historicamente.
Só que a história não existe tampouco: existem ficções, narrativas
que podemos organizar conforme uma estrutura de começo,
meio e fim, mas que sempre irão
trair a arbitrariedade básica com a
qual cada sujeito compõe os dados da realidade.
Lembre-se também que o sujeito não existe: é
um campo onde se entrecruzam percepções, desejos,
linguagens. De
resto, a realidade não existe
tampouco.
Bobagens como as escritas
acima correm
o risco, atualmente, de passar como puro
senso comum.
Com maior ou
menor intensidade, volta e
meia topamos
com raciocínios desse tipo, que correspondem a uma espécie de vulgata
pós-moderna.
É um grande alívio, nesse quadro de relativismo exacerbado, ler
livros como "Ciladas da Diferença" ou "Em Defesa da História".
No primeiro, o sociólogo Antônio
Flávio Pierucci desmonta, com
clareza e bom humor, os paradoxos a que leva o culto contemporâneo à "identidade" (social, racial, cultural, sexual etc.).
A crítica ao "ser humano abstrato", hoje tão disseminada entre a
esquerda pós-moderna e os teóricos mais radicais dos movimentos negro e feminista nos Estados
Unidos, passa hoje em dia por ser
coisa avançada. Nota Pierucci, entretanto, que suas raízes podem
ser encontradas no extremo
oposto do espectro político.
No século passado, teóricos ultraconservadores como Edmund
Burke e Joseph de Maistre, em
plena luta contra a idéia de direitos humanos universais, aferravam-se à constatação empírica
das "diferenças". De Joseph de
Maistre, Pierucci cita uma frase tirada das "Considerações sobre a
França": "O homem (universal)
não existe. Em minha vida eu vi
franceses, italianos, russos etc. (...)
Quanto ao homem, contudo, declaro que nunca o encontrei".
Mais de cem anos depois, o
"elogio da diferença" se torna um
tema da "nova esquerda", que,
contudo, não pode deixar de lado
o tema clássico da igualdade. Pierucci ironiza: "Como se vê, tudo
parece muito simples, muito claro: "Os seres humanos são diferentes, mas iguais". Neste jogo de
linguagem, tudo se passa inocentemente como se não fosse também um jogo de palavras".
É como se a luta contra as várias
discriminações, a luta por direitos
iguais, estivesse imbricada com
outra luta, na qual se procura afirmar a identidade, o valor, a originalidade de um grupo. O que, em
si, não encerra nenhuma contradição.
Mas, diz Pierucci, quando o movimento negro, por exemplo, vem
afirmar que "negro é diferente",
isto será repetir algo que os racistas sempre disseram: "Legitima
que a diferença seja enfocada e as
distâncias, alargadas... essa atmosfera pós-moderna que muitos de nós hoje respiramos nos
ambientes de esquerda, essa onda
de celebração neobarroca das diferenças, de apego às singularidades culturais (...), tudo isso assusta muito pouco as cabeças de direita...". O que provoca ojeriza na
direita é "ainda hoje, 200 anos depois, o discurso dos direitos humanos, o discurso revolucionário
da igualdade".
No fundo, o problema dessa e
outras "ciladas" talvez seja redutível a um mal-entendido linguístico: só posso defender quem é "diferente" em nome da igualdade;
mas a defesa do "diferente" passa
a se chamar, num modismo pós-moderno, defesa da "Diferença",
com letras maiúsculas... e aí, evidentemente, a igualdade fica falando sozinha.
Com ensaios que tratam desde a
mentalidade do eleitor de direita
na cidade de São Paulo até as mudanças no feminismo americano,
"Ciladas da Diferença" mantém
uma admirável
unidade de argumentação,
que se aproxima bastante da
de alguns textos reunidos
no livro "Em
Defesa da História".
O escritor
Kenan Malik,
por exemplo,
em "O Espelho
da Raça: O
Pós-modernismo e a Louvação da Diferença", nota
que "a crítica
pós-moderna
ao universalismo, longe de formular uma crítica à teoria racial,
apropria-se, na verdade, de muitos de seus temas e reproduz os
próprios pressupostos sobre os
quais, historicamente, assentou-se o racismo".
Mas este é apenas um dos temas
do volume, que surge como uma
impressionante máquina teórica
contra os vários cacoetes da teoria
pós-moderna. A introdução do
volume, escrita por Ellen Meiksins Wood -editora da publicação inglesa de esquerda "The
Monthly Review"- aponta de
forma demolidora a falta de novidade de temas como "o fim da
história", "a fragmentação do sujeito" ou o antiuniversalismo pós-moderno. A ironia de tudo, diz a
autora, é que se insiste na fragmentação e no particularismo
num momento em que, como
nunca, o capitalismo se tornou
uma realidade totalizante num
grau sem precedentes.
Marxista do começo ao fim,
com grande vigor crítico e variedade de enfoques -e, sobretudo,
sem nenhum ranço "pré-queda
do Muro de Berlim"-, o livro
traz ensaios de teóricos conhecidos no Brasil, como Terry Eagleton ("De Onde Vêm os Pós-modernistas?") e Fredric Jameson
("Cinco Teses Sobre o Marxismo
Realmente Existente"), nenhum
dos dois, a meu ver, no melhor de
sua forma.
É graças às contribuições de Aijaz Ahmad (sobre cultura nos países "pós-coloniais"), de Bryan
Palmer (sobre a pertinência do
conceito de classes sociais), de
Meera Nanda (contra a "desconstrução" do conhecimento científico) e de Carol Stabile (sobre feminismo) que este volume se faz indispensável. Pelo menos para
quem esteja farto do oba-oba pós-moderno.
AS OBRAS
Ciladas da Diferença - Antônio Flávio Pierucci. Editora 34 (r. Hungria, 592, CEP 01455-000, SP, tel. 0/xx/11/816-6777). 222 págs. R$ 16,00.
Em Defesa da História - Marxismo e Pós-Modernismo - Org. de Ellen Meiksins
Wood e John Bellamy Foster. Trad. Rui Jungmann. Jorge Zahar (r. México, 31, CEP 20031-144, RJ, tel. 0/ xx/21/240-0226, 262-5123). 218 págs. R$ 26,00.
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