São Paulo, Domingo, 10 de Outubro de 1999
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LIVROS
Celso Lafer analisa "A Folha Dobrada", de Goffredo da Silva Telles Junior
Memorial do agir

CELSO LAFER
especial para a Folha

"A sede da alma está na memória", dizia Santo Agostinho, numa frase que Hannah Arendt costumava citar. É com base nessa frase que começo dizendo que é a alma do professor Goffredo que se revela nestas suas lembranças recolhidas em "A Folha Dobrada", muito apropriadamente lançadas com sua presença no dia 15 de setembro, na Faculdade de Direito da USP, no largo de São Francisco. Digo muito apropriadamente porque a faculdade é a sua casa (pág. 400) e a sede mobilizadora do perfazer de sua vida e do seu destino, para valer-me de um verbo que, segundo a sua lição, exprime a lei do mundo (pág. 638).
Na sua tese de livre-docência de "Introdução à Ciência do Direito" (defendida em 1941), o professor Goffredo, com a sua constante preocupação com o rigor e a clareza, observa que a palavra "direito" designa três conceitos diversos. Designa uma determinada espécie de normas, as chamadas normas jurídicas (o direito objetivo). Designa, igualmente, uma determinada espécie de permissões, as chamadas permissões jurídicas (o direito subjetivo). E designa finalmente a qualidade do justo (pág. 172).
Como professor de "Introdução" durante várias décadas, até a sua aposentadoria, em 1985, o professor Goffredo cuidou com todo empenho dos três conceitos, mas sempre salientou para os seus alunos -entre os quais tenho a alegria de incluir-me- a qualidade do justo. A sua lição recorrente, no correr dos anos, foi a lição do direito como "guia para a liberdade e a justiça" (pág. 70) e, portanto, como escola de cidadania. Ele nos ensinou, assim, a importância de "cultivar rosas em nosso pátio de pedra" -para socorrer-me de suas palavras sobre Spencer Vampré, seu antecessor na cátedra de "Introdução" e também, como ele, sábio guardião das "memórias" -e, portanto, da alma da nossa academia. Por isso ele foi e é não o professor de "Introdução", mas o mestre da iniciação ao direito.
A palavra iniciação é uma palavra carregada de sentido. Eu a emprego pensando no que dizia Políbio, quando apontou que, em todo assunto, a principal preocupação deve ser a de bem começar. Por essa razão, afirmava Políbio, o começo não é apenas a metade do todo, mas entranha-se no fim (Políbio, "História", 5, 32). É a hierarquia da ética, da justiça e da liberdade a lição que o professor Goffredo soube inserir e entranhar na sensibilidade das sucessivas gerações dos seus alunos.
Como conseguiu ele levar adiante essa tarefa de iniciação? Por meio de suas aulas -aulas ideais-, nas quais sabia "acordar o aluno, ou seja, abrir-lhe os olhos para um assunto que merece a sua atenção" e "acender-lhe no espírito a centelha do interesse" (pág. 75). A boa aula, ensina o professor Goffredo no capítulo 5, requer "conhecimento do assunto, simplicidade de exposição e amor aos estudantes" (pág. 76). O seu magistério reúne essas três virtudes, e as suas aulas sempre foram "o sumo límpido da longa destilação de um pensamento" (pág. 76). Elas têm a beleza da obra de arte, posto que associam a "eloquência desataviada, provida do sal de uma emoção" (pág. 76).
Daí a onda de calor humano que perpassa a sala de aula com a presença do professor Goffredo. Daí a sua comunhão com os estudantes e o poder persuasivo da sua mensagem de compreensão e de entendimento entre os seres do mundo que têm como horizonte a ordem jurídica como disciplina da convivência e garantia de liberdade (pág. 70).
A relação entre ordem e liberdade é o tema por excelência do percurso intelectual do professor Goffredo. É a interrogação que o acompanha desde a sua juventude (pág. 283). Ele vem meditando sobre essa relação no atento estudo dos grandes pensadores da filosofia, do direito, da política e da ciência. Ele vem confrontando as suas percepções e conclusões, levando em conta a sua experiência de vida e a de sua família, a sua atividade profissional de advogado, a sua atuação política e parlamentar e o seu conhecimento do Brasil.
"A Folha Dobrada" é, nesse sentido, não apenas um livro de lembranças e memórias de uma vida rica e interessante, inserida no cenário político e cultural do nosso país dos anos 20 até os nossos dias, mas também um memorial das razões do seu pensar e do seu agir, admiravelmente bem escrito. Escrito por quem priva da intimidade das palavras e sabe, na linha de um estudo de Maupassant sobre Flaubert, que: "As palavras têm alma. É preciso encontrar essa alma, que aparece em contato com outras palavras, e que estala e ilumina certos livros, com uma luz desconhecida" (pág. 43).
Qual é, na história das idéias do Brasil, a família intelectual do professor Goffredo? É, no meu entender, para valer-me da reflexão de Antonio Candido, a do radicalismo, ou seja, a do conjunto de idéias e atitudes que no Brasil formam um contrapeso ao movimento conservador, porque é um modo progressista de reagir ao estímulo dos problemas sociais prementes, em oposição ao modo conservador. Gerado, como diz Antonio Candido, na classe média e nos setores esclarecidos das classes dominantes, como é o caso de Joaquim Nabuco, representa um fermento transformador. Este tem o potencial de ampliar o nível da consciência política do povo e de ser um agente do possível mais avançado (cf. Antonio Candido, "Radicalismos", in: "Estudos Avançados", nº 4/8, jan/abr 90, págs. 4-5).
Essa presença do povo na ação e na meditação do professor Goffredo se revela na sua preocupação constante com a representação política e nos modos de assegurar a permanente penetração e influência da vontade dos governados nas decisões dos governantes. O momento mais alto dessa preocupação, no qual se associaram ação e reflexão, "virtù" e "fortuna", foi o da "Carta aos Brasileiros", de 1977, lida no pátio das nossas arcadas, que catalisou, no país, a consciência do imperativo da restauração do Estado de Direito e anunciou a inapelável erosão do regime autoritário implantado em 1964.
A Faculdade de Direito de São Paulo tem uma tradição que, desde a sua fundação em 1827, está profundamente inserida na história do Brasil. A tradição é um fio condutor que nos liga ao passado para, no presente, entender o significado da mudança e, desse modo, preparar o futuro. Qual é, na nossa tradição e no nosso passado, o fio condutor -o elo representativo- a que o professor Goffredo dá continuidade? Penso que é José Bonifácio, o moço, grande figura da faculdade no século 19 -o único professor da nossa academia que tem a sua presença assinalada por uma estátua que nos recebe de braços abertos na entrada do nosso prédio, das nossas arcadas.
José Bonifácio, o moço, também pode ser qualificado como uma personalidade de cariz radical, na acepção de Antonio Candido, pois a idéia de participação popular -das "massas ativas da população"- foi uma constante do seu pensamento, como aponta Francisco de Assis Barbosa no estudo introdutório do seu perfil parlamentar de deputado e senador no Legislativo do Império (cf. José Bonifácio, o moço, "Discursos Parlamentares", seleção e introdução de Francisco de Assis Barbosa, Brasília, Câmara dos Deputados, 1979, pág. 21).
Era, como relataram Joaquim Serra e Joaquim Nabuco, um orador que arrebatava pela palavra associada à probidade do caráter (cf. Spencer Vampré, "Memórias para a História da Academia de São Paulo", São Paulo, Saraiva, 1924, vol. 2, págs. 20 e 24). Magnetizava os seus alunos na admiração e no êxtase com o sopro de sua inspiração, como disse Ruy Barbosa, dando um testemunho do que foi o seu magistério (Spencer Vampré, op. cit., vol. 2, pág. 21). "Era amável e cavalheiro no trato com os alunos", como registra Almeida Nogueira em "Tradições e Reminiscências" (Segunda Série - São Paulo, 1907, pág. 178). Lidou com a sociedade do seu tempo, nas palavras de Ruy Barbosa, "pela eloquência na tribuna; pela mocidade, na cátedra; pela controvérsia, na imprensa; pela política, no parlamento" (cf. Spencer Vampré, op. cit. vol. 2, pág. 26).
Assim também o professor Goffredo vem lidando com a sociedade do nosso tempo com a luminosidade de sua presença, à qual "A Folha Dobrada" dá um acesso privilegiado.



A OBRA
A Folha Dobrada - Goffredo da Silva Telles Junior. Nova Fronteira (r. Bambina, 25, CEP 22251-050, RJ, tel. 0/xx/21/537-8770). 990 págs. R$ 49,00.



Celso Lafer é professor titular da Faculdade de Direito da USP; foi ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio e ministro das Relações Exteriores; é autor, entre outros, de "Ensaios Liberais".

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