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LIVROS
Celso Lafer analisa "A Folha Dobrada", de Goffredo da Silva Telles Junior
Memorial do agir
CELSO LAFER
especial para a Folha
"A sede da alma está na memória", dizia Santo Agostinho, numa
frase que Hannah Arendt costumava citar. É com base nessa frase
que começo dizendo que é a alma
do professor Goffredo que se revela nestas suas lembranças recolhidas em "A Folha Dobrada",
muito apropriadamente lançadas
com sua presença no dia 15 de setembro, na Faculdade de Direito
da USP, no largo de São Francisco. Digo muito apropriadamente
porque a faculdade é a sua casa
(pág. 400) e a sede mobilizadora
do perfazer de sua vida e do seu
destino, para valer-me de um verbo que, segundo a sua lição, exprime a lei do mundo (pág. 638).
Na sua tese de livre-docência de
"Introdução à Ciência do Direito"
(defendida em 1941), o professor
Goffredo, com a sua constante
preocupação com o rigor e a clareza, observa que a palavra "direito" designa três conceitos diversos. Designa uma determinada
espécie de normas, as chamadas
normas jurídicas (o direito objetivo). Designa, igualmente, uma
determinada espécie de permissões, as chamadas permissões jurídicas (o direito subjetivo). E designa finalmente a qualidade do
justo (pág. 172).
Como professor de "Introdução" durante várias décadas, até a
sua aposentadoria, em 1985, o
professor Goffredo cuidou com
todo empenho dos três conceitos,
mas sempre salientou para os
seus alunos -entre os quais tenho a alegria de incluir-me- a
qualidade do justo. A sua lição recorrente, no correr dos anos, foi a
lição do direito como "guia para a
liberdade e a justiça" (pág. 70) e,
portanto, como escola de cidadania. Ele nos ensinou, assim, a importância de "cultivar rosas em
nosso pátio de pedra" -para socorrer-me de suas palavras sobre
Spencer Vampré, seu antecessor
na cátedra de "Introdução" e
também, como ele, sábio guardião das "memórias" -e, portanto, da alma da nossa academia.
Por isso ele foi e é não o professor
de "Introdução", mas o mestre da
iniciação ao direito.
A palavra iniciação é uma palavra carregada de sentido. Eu a
emprego pensando no que dizia
Políbio, quando apontou que, em
todo assunto, a principal preocupação deve ser a de bem começar.
Por essa razão, afirmava Políbio,
o começo não é apenas a metade
do todo, mas entranha-se no fim
(Políbio, "História", 5, 32). É a
hierarquia da ética, da justiça e da
liberdade a lição que o professor
Goffredo soube inserir e entranhar na sensibilidade das sucessivas gerações dos seus alunos.
Como conseguiu ele levar
adiante essa tarefa de iniciação?
Por meio de suas aulas -aulas
ideais-, nas quais sabia "acordar
o aluno, ou seja, abrir-lhe os olhos
para um assunto que merece a sua
atenção" e "acender-lhe no espírito a centelha do interesse" (pág.
75). A boa aula, ensina o professor
Goffredo no capítulo 5, requer
"conhecimento do assunto, simplicidade de exposição e amor aos
estudantes" (pág. 76). O seu magistério reúne essas três virtudes,
e as suas aulas sempre foram "o
sumo límpido da longa destilação
de um pensamento" (pág. 76).
Elas têm a beleza da obra de arte,
posto que associam a "eloquência
desataviada, provida do sal de
uma emoção" (pág. 76).
Daí a onda de calor humano
que perpassa a sala de aula com a
presença do professor Goffredo.
Daí a sua comunhão com os estudantes e o poder persuasivo da
sua mensagem de compreensão e
de entendimento entre os seres do
mundo que têm como horizonte
a ordem jurídica como disciplina
da convivência e garantia de liberdade (pág. 70).
A relação entre ordem e liberdade é o tema por excelência do percurso intelectual do professor Goffredo. É
a interrogação
que o acompanha desde a
sua juventude (pág. 283). Ele vem
meditando sobre essa relação no
atento estudo dos grandes pensadores da filosofia, do direito, da
política e da ciência. Ele vem confrontando as suas percepções e
conclusões, levando em conta a
sua experiência de vida e a de sua
família, a sua atividade profissional de advogado, a sua atuação
política e parlamentar e o seu conhecimento do Brasil.
"A Folha Dobrada" é, nesse sentido, não apenas um livro de lembranças e memórias de uma vida
rica e interessante, inserida no cenário político e cultural do nosso
país dos anos 20 até os nossos
dias, mas também um memorial
das razões do seu pensar e do seu
agir, admiravelmente bem escrito. Escrito por quem priva da intimidade das palavras e sabe, na linha de um estudo de Maupassant
sobre Flaubert, que: "As palavras
têm alma. É preciso encontrar essa alma, que aparece em contato
com outras palavras, e que estala e
ilumina certos livros, com uma
luz desconhecida" (pág. 43).
Qual é, na história das idéias do
Brasil, a família intelectual do
professor Goffredo? É, no meu
entender, para valer-me da reflexão de Antonio Candido, a do radicalismo, ou seja, a do conjunto
de idéias e atitudes que no Brasil
formam um contrapeso ao movimento conservador, porque é um
modo progressista de reagir ao
estímulo dos
problemas sociais prementes, em oposição ao modo
conservador.
Gerado, como
diz Antonio
Candido, na
classe média e
nos setores esclarecidos das classes dominantes, como é o caso de Joaquim Nabuco, representa um fermento
transformador. Este tem o potencial de ampliar o nível da consciência política do povo e de ser
um agente do possível mais avançado (cf. Antonio Candido, "Radicalismos", in: "Estudos Avançados", nº 4/8, jan/abr 90, págs. 4-5).
Essa presença do povo na ação e
na meditação do professor Goffredo se revela na sua preocupação constante com a representação política e nos modos de assegurar a permanente penetração e
influência da vontade dos governados nas decisões dos governantes. O momento mais alto dessa
preocupação, no qual se associaram ação e reflexão, "virtù" e
"fortuna", foi o da "Carta aos Brasileiros", de 1977, lida no pátio das
nossas arcadas, que catalisou, no
país, a consciência do imperativo
da restauração do Estado de Direito e anunciou a inapelável erosão do regime autoritário implantado em 1964.
A Faculdade de Direito de São
Paulo tem uma tradição que, desde a sua fundação em 1827, está
profundamente inserida na história do Brasil. A tradição é um fio
condutor que nos liga ao passado
para, no presente, entender o significado da mudança e, desse modo, preparar o futuro. Qual é, na
nossa tradição e no nosso passado, o fio condutor -o elo representativo- a que o professor
Goffredo dá continuidade? Penso
que é José Bonifácio, o moço,
grande figura da faculdade no século 19 -o único professor da
nossa academia que tem a sua
presença assinalada por uma estátua que nos recebe de braços
abertos na entrada do nosso prédio, das nossas arcadas.
José Bonifácio, o moço, também pode ser qualificado como
uma personalidade de cariz radical, na acepção de Antonio Candido, pois a idéia de participação
popular -das "massas ativas da
população"- foi uma constante
do seu pensamento, como aponta
Francisco de Assis Barbosa no estudo introdutório do seu perfil
parlamentar de deputado e senador no Legislativo do Império (cf.
José Bonifácio, o moço, "Discursos Parlamentares", seleção e introdução de Francisco de Assis
Barbosa, Brasília, Câmara dos Deputados, 1979, pág. 21).
Era, como relataram Joaquim
Serra e Joaquim Nabuco, um orador que arrebatava pela palavra
associada à probidade do caráter
(cf. Spencer Vampré, "Memórias
para a História da Academia de
São Paulo", São Paulo, Saraiva,
1924, vol. 2, págs. 20 e 24). Magnetizava os seus alunos na admiração e no êxtase com o sopro de
sua inspiração, como disse Ruy
Barbosa, dando um testemunho
do que foi o seu magistério (Spencer Vampré, op. cit., vol. 2, pág.
21). "Era amável e cavalheiro no
trato com os alunos", como registra Almeida Nogueira em "Tradições e Reminiscências" (Segunda
Série - São Paulo, 1907, pág. 178).
Lidou com a sociedade do seu
tempo, nas palavras de Ruy Barbosa, "pela eloquência na tribuna;
pela mocidade, na cátedra; pela
controvérsia, na imprensa; pela
política, no parlamento" (cf.
Spencer Vampré, op. cit. vol. 2,
pág. 26).
Assim também o professor Goffredo vem lidando com a sociedade do nosso tempo com a luminosidade de sua presença, à qual "A
Folha Dobrada" dá um acesso
privilegiado.
A OBRA
A Folha Dobrada - Goffredo
da Silva Telles Junior. Nova Fronteira (r. Bambina, 25, CEP 22251-050, RJ, tel. 0/xx/21/537-8770).
990 págs. R$ 49,00.
Celso Lafer é professor titular da Faculdade
de Direito da USP; foi ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio e ministro das
Relações Exteriores; é autor, entre outros, de
"Ensaios Liberais".
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