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PONTO DE FUGA
As muitas faces de Eva
JORGE COLI
especial para a Folha, em Nova York
É como se Douglas Sirk ressuscitasse num espanhol irrequieto. Em seus últimos filmes,
Pedro Almodóvar assume o
melodrama muito a sério. Encontra uma profundidade nova, que "Ata-me" ou "Mulheres à Beira de Um Ataque de
Nervos", com toda a invenção
esfuziante aí contida, não deixavam, na verdade, pressentir.
"Todo Sobre Mi Madre" cerca o mundo feminino, mundo
de artifícios. Almodóvar navega entre citações eloquentes:
"All About Eve", "Um Bonde
Chamado Desejo", Truman
Capote, Lorca e, talvez, as sublimes mexicanadas da Pel-Mex. Há alternâncias de dor
muito profunda, arrancando
lágrimas dos espectadores, e
de uma viva alegria, sem que se
perceba a transição. O drama e
o riso constroem o desejo feminino de ser, ou de ser feminino, por meio do qual vale tudo, de encarnação em encarnação. A maquiagem é mais do
que acréscimo ou aparência.
São muitas as plásticas que tornam uma mulher autêntica, isto é, aquela que cada qual imagina dentro de si, diz Agrado,
uma prostituta que tem o dr.
Pintaguy como alto horizonte
de referências. O filme é dedicado a Bette Davis, Romy
Schneider e outras atrizes que
representaram papéis de atrizes. Mas, se o ser feminino surge fabricado por metamorfoses consecutivas, ele guarda o
segredo permanente da maternidade, visceral, e inseparável
da morte. Fora disso, o falso e o
verdadeiro, a carne e o sangue,
o passado e o futuro dissolvem-se em generosidade que é
humana por ser feminina.
Bastão - "A Simple Plan"
mostrou que o cineasta Sam
Raimi era capaz de talhar um
diamante preciso e perfeito,
justo nas emoções, complexo na trama dos sentimentos
e dos interesses. Ele escavou
ali, sem piedade, o cerne desajeitadamente frágil do que
é possível chamar natureza
humana.
Seu novo filme, "For Love
of the Game", história de um
jogador de beisebol em crise
de carreira, de idade e de
amor, podia facilmente descambar para a mediocridade.
É admirável, no entanto, o
modo como Raimi vai armando, etapa por etapa,
uma arquitetura nítida e labiríntica ao mesmo tempo,
onde certas regras, de vida
ou de jogo, tentam, sem conseguir, descobrir método e
caminho.
Ele capta a paisagem como
ninguém, que isola e distancia os personagens, invadidos, apesar disso, pela mesma comovente fragilidade
do filme anterior.
Neutraliza qualquer ocasião de sentimentalismo,
mesmo quando os diálogos
derrapam para um desastre
possível. A contenção daquilo que é meloso leva, num
paradoxo, a aguçar-se o poder das emoções.
Aurora - "Tome-a no conceito de uma dor que ri, de um riso que chora, de uma alegria
que se lamenta. E, para dizer
seu nome, digo que é uma vida
mentirosa, uma vida morta,
uma morte que expira." Maravilhoso texto, cheio de antíteses e de efeitos preciosos, que
foi posto em música por Emilio
de Cavalieri. "Rappresentatione di Anima e Corpo", levada à
cena pela primeira vez em
1600, anunciou a invenção da
ópera e teve uma grande incidência sobre Monteverdi. Há
violências e abalos: a música
sobre as palavras "eterna, eterna morte" é aterradora. O selo
Naxos, cujo catálogo costuma
fugir dos lugares-comuns, lançou uma esplêndida gravação
da obra, com a Capella Musicale di Bologna.
Frio - Associar Finlândia e
Villa-Lobos pode parecer esdrúxulo. Mas o musicólogo finlandês Eero Taarasti é um dos
grandes especialistas no nosso
compositor. No ano passado,
foram finlandeses que gravaram em CD (selo Ondine) uma
nova e formidável versão do
"Chôros nº 11", obra profusa e
dificílima de execução. Ao ouvi-la, um crítico francês comentou: "Webern foi o minimalista de seu tempo. Villa-Lobos foi o maximalista".
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: coli20@hotmail.com
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