São Paulo, Domingo, 10 de Outubro de 1999
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PONTO DE FUGA

As muitas faces de Eva

JORGE COLI
especial para a Folha, em Nova York

É como se Douglas Sirk ressuscitasse num espanhol irrequieto. Em seus últimos filmes, Pedro Almodóvar assume o melodrama muito a sério. Encontra uma profundidade nova, que "Ata-me" ou "Mulheres à Beira de Um Ataque de Nervos", com toda a invenção esfuziante aí contida, não deixavam, na verdade, pressentir.
"Todo Sobre Mi Madre" cerca o mundo feminino, mundo de artifícios. Almodóvar navega entre citações eloquentes: "All About Eve", "Um Bonde Chamado Desejo", Truman Capote, Lorca e, talvez, as sublimes mexicanadas da Pel-Mex. Há alternâncias de dor muito profunda, arrancando lágrimas dos espectadores, e de uma viva alegria, sem que se perceba a transição. O drama e o riso constroem o desejo feminino de ser, ou de ser feminino, por meio do qual vale tudo, de encarnação em encarnação. A maquiagem é mais do que acréscimo ou aparência. São muitas as plásticas que tornam uma mulher autêntica, isto é, aquela que cada qual imagina dentro de si, diz Agrado, uma prostituta que tem o dr. Pintaguy como alto horizonte de referências. O filme é dedicado a Bette Davis, Romy Schneider e outras atrizes que representaram papéis de atrizes. Mas, se o ser feminino surge fabricado por metamorfoses consecutivas, ele guarda o segredo permanente da maternidade, visceral, e inseparável da morte. Fora disso, o falso e o verdadeiro, a carne e o sangue, o passado e o futuro dissolvem-se em generosidade que é humana por ser feminina.

Bastão - "A Simple Plan" mostrou que o cineasta Sam Raimi era capaz de talhar um diamante preciso e perfeito, justo nas emoções, complexo na trama dos sentimentos e dos interesses. Ele escavou ali, sem piedade, o cerne desajeitadamente frágil do que é possível chamar natureza humana.
Seu novo filme, "For Love of the Game", história de um jogador de beisebol em crise de carreira, de idade e de amor, podia facilmente descambar para a mediocridade.
É admirável, no entanto, o modo como Raimi vai armando, etapa por etapa, uma arquitetura nítida e labiríntica ao mesmo tempo, onde certas regras, de vida ou de jogo, tentam, sem conseguir, descobrir método e caminho.
Ele capta a paisagem como ninguém, que isola e distancia os personagens, invadidos, apesar disso, pela mesma comovente fragilidade do filme anterior.
Neutraliza qualquer ocasião de sentimentalismo, mesmo quando os diálogos derrapam para um desastre possível. A contenção daquilo que é meloso leva, num paradoxo, a aguçar-se o poder das emoções.

Aurora - "Tome-a no conceito de uma dor que ri, de um riso que chora, de uma alegria que se lamenta. E, para dizer seu nome, digo que é uma vida mentirosa, uma vida morta, uma morte que expira." Maravilhoso texto, cheio de antíteses e de efeitos preciosos, que foi posto em música por Emilio de Cavalieri. "Rappresentatione di Anima e Corpo", levada à cena pela primeira vez em 1600, anunciou a invenção da ópera e teve uma grande incidência sobre Monteverdi. Há violências e abalos: a música sobre as palavras "eterna, eterna morte" é aterradora. O selo Naxos, cujo catálogo costuma fugir dos lugares-comuns, lançou uma esplêndida gravação da obra, com a Capella Musicale di Bologna.

Frio - Associar Finlândia e Villa-Lobos pode parecer esdrúxulo. Mas o musicólogo finlandês Eero Taarasti é um dos grandes especialistas no nosso compositor. No ano passado, foram finlandeses que gravaram em CD (selo Ondine) uma nova e formidável versão do "Chôros nº 11", obra profusa e dificílima de execução. Ao ouvi-la, um crítico francês comentou: "Webern foi o minimalista de seu tempo. Villa-Lobos foi o maximalista".


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: coli20@hotmail.com


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