São Paulo, domingo, 10 de outubro de 2004

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DEVORANDO OSWALD

DO OSTRACISMO À POPULARIZAÇÃO NOS ANOS 60, AUTOR DE "MEMÓRIAS SENTIMENTAIS DE JOÃO MIRAMAR" TEM PRESENÇA CONSISTENTE EM MÚSICAS, PEÇAS E FILMES, MAS É DILUÍDO EM ROMANCES E ATÉ GUIAS DE TURISMO

por João Cezar Castro Rocha

O conhecido provérbio latino assegura que os livros têm seu destino. Assim como os autores. A fortuna crítica de Oswald de Andrade, aliás, é tão irrequieta e irreverente como o próprio poeta. Por isso, para avaliar a presença do antropófago na cultura brasileira contemporânea, vale recordar a história de sua recepção. Leia-se a crônica que Carlos Drummond de Andrade dedicou-lhe após a notícia de sua morte: "A grande queixa de Oswald com relação a seus companheiros de aventura era que o omitiam sempre. E porque o omitissem passava à ofensiva mais rude". A crônica intitulava-se "O Antropófago". Nela, os elogios e as ressalvas dão-se as mãos, compondo um painel involuntário da recepção de Oswald. No primeiro instante, ele foi celebrado como o verdadeiro dínamo do movimento modernista: catalisador de alianças; usina de idéias. Muito em breve, porém, passou a ser visto como o eterno "adolescente", sempre disposto a perder amigos para não sacrificar a boutade da ocasião. Ele mesmo, com o excesso que o caracterizava, lançou lenha na fogueira. No prefácio a "Serafim Ponte Grande", fez impiedosa autocrítica, que de modo ainda mais impiedoso foi levada a sério pelos companheiros de geração: "Fui (...) um palhaço de classe. (...) Eu prefiro simplesmente me declarar enojado de tudo. E possuído de uma única vontade. Ser, pelo menos, casaca de ferro na Revolução Proletária". O autor de "Memórias Sentimentais de João Miramar" reconhecia que o caráter iconoclasta da Semana de Arte Moderna não deveria constituir um fim em si mesmo, mas passo necessário para a reinvenção do país. Ademais, a politização dos anos anteriores à Revolução de 1930 e as tomadas de posição naquele "tempo de partido, tempo de homens partidos", determinaram uma atitude muito diversa da estetização da vida proposta pelo modernismo. Esse movimento prejudicou a recepção posterior da obra de Oswald. O testemunho da filha, Marília de Andrade, é eloqüente: "Ouvi-o queixar-se muitas vezes, desencorajado, de que suas idéias não eram aceitas, sua obra não era lida e talvez seu valor nunca chegasse a ser reconhecido. Sentia-se abandonado e sem grandes esperanças". O encontro com os jovens poetas do grupo Noigandres representou o divisor de águas. Décio Pignatari, Augusto e Haroldo de Campos escreveram relatos reveladores sobre o desencanto de Oswald. A imagem que pintaram é incisiva: solitário em sua casa, cercado de caixas repletas de exemplares de seus próprios livros, cujos leitores, em aparência, eram ainda mais raros do que os amigos ainda leais. Os jovens poetas receberam edições autografadas e compreenderam perfeitamente o recado do antropófago: repor em circulação sua obra.

Oswald rebatizado
Um dos frutos mais fecundos desse encontro foi a reedição de seus textos, numa iniciativa da Civilização Brasileira, com estudos fundamentais tanto de Haroldo de Campos, sobre a radicalidade da poesia oswaldiana, quanto de Benedito Nunes, sobre a dimensão filosófica da antropofagia.
Na atmosfera tensa, porém fecunda, dos anos 60, as idéias de Oswald encontraram terreno propício. Em pouco tempo, o ostracismo foi transformado em êxito popular. Antonio Candido assinalou a mudança: "Oswald subiu de repente ao patamar dos mitos. (...) Mais que tudo, no entanto, surpreende-me o acento que inventaram para o próprio nome de Oswald, de origem francesa, que virou Ôswald de uma hora para outra. (...) Oswald foi rebatizado, quando iniciou sua carreira de herói popular".
E hoje em dia? Como avaliar a presença de Oswald de Andrade?
No fundo, permanece a situação descrita por Candido. O rito de passagem que conduziu Oswald do exílio em sua própria terra à renomeação mítica foi recordado por Caetano Veloso. Em "Verdade Tropical" [Cia. das Letras], dedicou um capítulo à importância da antropofagia para o tropicalismo. A obra de Oswald tornou-se mais conhecida depois da antológica encenação de "O Rei da Vela", realizada em 1967 por José Celso Martinez Corrêa.
Na circunstância dos anos 60, o estímulo representado pela antropofagia foi decisivo. Nas palavras de Caetano: "Nós, brasileiros, não deveríamos imitar, e sim devorar a informação nova, viesse de onde viesse (...). A idéia do canibalismo cultural servia-nos, aos tropicalistas, como uma luva. Estávamos "comendo" os Beatles e Jimi Hendrix".
Há uma outra apropriação de grande importância, embora menos popular. Penso no trabalho realizado pelo concretismo, no plano criativo, e por Benedito Nunes, no plano reflexivo. Ainda na literatura, a "poesia marginal" revigorou a tradição do poema-piada, fazendo da boutade um autêntico procedimento poético. Utilizou-se fartamente da matéria cotidiana, no tom bem-humorado e irreverente de Oswald. Hoje, entretanto, sua presença é menos clara. E isso ocorre porque os achados oswaldianos já se encontram incorporados ao repertório da cultura brasileira, tornando desnecessária a menção de seu inventor.
Destaca-se também a obra de Julio Bressane, cujo cinema de poesia guarda afinidades eletivas com a experimentação oswaldiana. A transcriação cinematográfica das "Memórias Sentimentais de João Miramar" representa um dos momentos mais importantes na recepção de Oswald.
Nesse sentido, a própria base teórica da Bienal de São Paulo de 1998 foi oswaldiana, como reconheceu o curador, Paulo Herkenhoff: "A antropofagia, enquanto conceito de estratégia cultural, (...) ofereceu um modelo de diálogo: o banquete antropofágico para a interpretação". Em 2000, na Espanha, [o crítico] Jorge Schwartz organizou a mais completa exposição sobre o tema: "De la Antropofagia a Brasília", permitindo a discussão de questões fundamentais. Por fim, no mesmo ano, Edward Sullivan, o curador da exposição realizada no Museu Guggenheim, "Brazil -Body and Soul", serviu-se da antropofagia como fio condutor da narrativa da modernidade brasileira.
No tocante à indústria cultural, as referências a Oswald são constantes. Mas, via de regra, ocorre uma apropriação rala, que, na maior parte das vezes, faz supor que nem mesmo o "Manifesto Antropófago" foi lido. Os resultados dessa apropriação são os mais variados.
Em "Vamos Comer Caetano", canção do CD "Maritmo", Adriana Calcanhoto uniu, numa admirável síntese, a antropofagia oswaldiana à encenação das "Bacantes". Na encenação do diretor José Celso Martinez Corrêa, no Rio de Janeiro, na década de 90, "devorou-se" o cantor presente na platéia: "Vamos comer Caetano/ Vamos devorá-lo/ Degluti-lo, mastigá-lo/ Vamos lamber a língua (...)". Aliás, vários dos movimentos musicais surgidos nas últimas décadas reivindicam a inspiração oswaldiana, como demonstra a curta e intensa trajetória de Chico Science.
Vale mencionar o trabalho de Michel Mellamed, na performance denominada "Regurgitofagia". Ele parte do princípio de que, no mundo contemporâneo, a antropofagia deve ser repensada: trata-se de "expelir o excedente"; afinal, já deglutimos demais. Talvez sem sabê-lo, Mellamed retoma o projeto machadiano de valorização do ato de ruminar, visto como o gesto supremo da inteligência.
Aliás, [o crítico] Kenneth David Jackson já sugeriu que Machado de Assis foi o verdadeiro antropófago da cultura brasileira. De qualquer modo, a contribuição de Mellamed constitui uma das mais criativas releituras de Oswald de Andrade; pois, em lugar de uma adesão anódina, questiona radicalmente os princípios do gesto antropofágico.
Internacionalmente, a fortuna de Oswald em geral não consegue superar o nível da assimilação imediata e, por isso mesmo, pouco reflexiva.
Veja-se o romance da croata Slavenka Drakulic, "The Taste of a Man" (1997). O texto narra o encontro entre Tereza, jovem poeta polonesa, estudante de pós-graduação em Nova York, e José, antropólogo paulista, que pretendia escrever um livro sobre... antropofagia. Na iminência da partida de José, que deve retornar ao Brasil e reencontrar sua mulher, Tereza recorre ao expediente caro aos tupinambás: mata o antropólogo e depois o devora. No final do romance, o propósito do gesto é didaticamente traduzido: "E aqui está ele, dentro de mim, para sempre encerrado em meu corpo, em cada célula de meu corpo. Ele vive dentro de mim. Toca com minhas mãos, respira por minha respiração, vê através de meus olhos". Antropofagia em ligeiras lições, como se percebe. A apropriação pode ser ainda mais divertida (ou melancólica). Abra-se o guia de turismo "Eating Brazil" (1999). É isso mesmo: "Comendo o Brasil". Os autores não se esquecem de explicar: "Comer o Brasil. Eis o credo deste livro. Não tente entender sua cultura, pois isso seria um pequeno absurdo. Não tente compreender sua economia ou sua ordem, pois isso seria inútil. Só há um meio. Coma o Brasil. Consuma suas paisagens. Devore suas cidades".


O biscoito fino que Oswald pretendia servir às massas se transformou em sangrentos nacos de carne, servidos nas churrascarias da indústria cultural contemporânea


Oswald distinguia antropofagia de canibalismo com o seguinte raciocínio: enquanto aquela se definia como um rito de assimilação do outro, este não passava de simples satisfação de um apetite elementar. Na saborosa fórmula de "A Crise da Filosofia Messiânica", canibalismo é "a antropofagia por gula e também a antropofagia por fome".

Festins canibais
De um ponto de vista antropológico, a distinção oswaldiana é uma interessante ficção. Importa, no entanto, para diferenciar uma assimilação crítica, ou seja, potencialmente transformadora da consciência, de uma apropriação consumista, sem maiores conseqüências. A obra de Oswald tem sido o cardápio de festins canibais muito mais do que a iguaria em banquetes antropofágicos. O biscoito fino que pretendia servir às massas se transformou em sangrentos nacos de carne, servidos nas churrascarias da indústria cultural contemporânea.
Gostaria de concluir com uma pergunta: é possível pensar num "futuro" que supere o consumo da obra oswaldiana sem maiores desdobramentos teóricos e criativos?
A resposta deve principiar pela leitura rigorosa de Roberto Schwarz [crítico]: "Oswald propunha uma postura cultural irreverente e sem sentimento de inferioridade, metaforizada na deglutição do alheio: cópia sim, mas regeneradora. A distância no tempo torna visível a parte de ingenuidade e também ufanismo nessas propostas extraordinárias". O crítico tem razão, quando se pensa na freqüente redução da antropofagia à tarefa de travestir a situação objetiva de subordinação (seja econômica, seja cultural) em autovalorização subjetiva, "interpretação ufanista de nosso atraso".
Contudo, mesmo reconhecendo que determinadas passagens do "Manifesto Antropófago" justificam o reparo, pode-se sugerir uma alternativa. Até mesmo por um cuidado metodológico: a crítica à antropofagia não deve limitar-se ao "Manifesto Antropófago", já que Oswald retornou à noção nos anos 50, em textos argumentativos, artigos de jornal, comunicações para congressos e entrevistas.
Ora, se a antropofagia representa um gesto cultural de assimilação contínua, também supõe um processo ininterrupto de mudanças e novas incorporações. Tal estratégia não pode fornecer a estabilidade necessária para a definição de identidades (nacionais). Proponho que se compreenda a antropofagia como uma forma de relacionamento em contextos de assimetria econômica, política e cultural; destacando-se que se trata de forma geralmente adotada pela cultura não-hegemônica.
Um único exemplo: em 1549, [o poeta francês] Joachim du Bellay publicou "Defesa e Ilustração da Língua Francesa", com o intuito de afirmar a dignidade da língua francesa em relação às línguas e literaturas clássicas. Hábil estrategista, recorreu à história de Roma a fim de provar que o francês poderia expressar pensamentos tão complexos quanto os difundidos por meio do latim. Os próprios romanos, recordou Du Bellay, "imitaram os melhores autores gregos, transformando-se neles, devorando-os e, depois de havê-los bem digerido, convertendo-os em sangue e alimento". Salvo engano, pura antropofagia! No século 16, a língua francesa era considerada não somente inferior mas incapaz de alcançar um alto nível de abstração e precisão, encontrando-se assim numa posição assimétrica. Exatamente como os modernistas brasileiros em relação aos vanguardistas europeus. Exatamente como o intelectual de países não-hegemônicos em relação ao pares de países vistos como centrais.
Sem dúvida, é preciso depurar o "Manifesto Antropófago" do ufanismo ingênuo que também o constitui. Porém, hoje, o problema da assimilação do outro vem à tona com intensidade inédita, num mundo em que o fluxo ininterrupto de informações compõe o horizonte cotidiano. A retomada oswaldiana da antropofagia consistiu numa releitura antropológica de seu "Manifesto", que, pela própria dinâmica do olhar antropológico, ultrapassa fronteiras nacionais, oferecendo um modelo fecundo para refletir sobre a transmissão de valores em situações culturais assimétricas. Por que não ver aí uma nova chave de leitura do mundo globalizado? Talvez tenha chegado a hora de abandonar a canibalização da antropofagia. Vamos comer Oswald. Mas com tempero antropofágico.

João Cezar de Castro Rocha é professor de literatura comparada na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e autor de "Literatura e Cordialidade" (Eduerj).


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