São Paulo, domingo, 10 de outubro de 2004

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O BALÉ DA MAIS-VALIA

AUTOR SERÁ LEMBRADO POR DESEJAR QUE O BRASILEIRO ADOTE O PRIMITIVISMO ANTROPOFÁGICO COMO VISÃO DE MUNDO

Lido e curtido por onde andar o sol nos trópicos sob a cobiça das potências imperialistas do hemisfério Norte quando findar a última gota de petróleo no Oriente Médio. Sol Oswald. Sol Oswald. Sol Oswald. Só o escritor interessado poderá interessar. Quem teve a ousadia de viver e criar "para lá do trapézio sem rede". De si falou que sofreu como Dostoiévski e arriscou como Nietzsche. Antes de morrer, diabético, cardíaco e sem grana, deu o recado para os brasileiros do futuro: "Avancem para o sol!". O homem equatorial em meio à cópula do sol com a água doce haveria de filosofar com a sua antropofagia de vanguarda. É que somente a vegetal biomassa energética nos une ou perderemos o território juntamente com o último sobrevivente envenenado pelo bandejão transgênico. A marcha do genocídio. A paz no latifúndio multinacional. Se a memória não for para o tombo, Oswald de Andrade será lembrado por querer o povo brasileiro adotando o primitivismo antropofágico como visão de mundo.

Movimento antiimperialista
O dilema "tupy or not tupy, that's the question" não é apenas um achado paródico movido pela feijoada do significante. Ele definiu a antropofagia de 1928 como o primeiro movimento cultural antiimperialista da história do Brasil, valendo-se da manducação ritual dos amerabas e o sentimento de vingança. Não se trata de gula porque não havia fome entre os índios. Tal qual a Aids, a fome veio trazida de fora. Da coordenada religiosa do endocanibalismo (aborígene comendo carne de aborígene) ao dispositivo político do exocanibalismo, isto é: nativo devorando estrangeiro. Gastrocolonialismo. Lá pelo Brasil de 2054 haverá a curiosidade em saber o motivo de Oswald de Andrade ter encasquetado com a antropofagia. Ele foi descolar esse conceito antigo ("anthropo-fagos") dos estudos etnológicos acerca do costume de comer carne humana, que tanto impressionou e chocou (junto com a poligamia) os padres de Loyola, militantes da catequese cristã. Essa contumácia antropofágica dos índios, embora exagerada pela ótica dos missionários do século 16, rangou o bispo Sardinha e quase vitimou Hans Staden. O modernista Oswald de Andrade deu à palavra antropofagia conotação polissêmica, simbólica, metafórica, figurativa: um tropo de barricada, de guerrilha e de estratégia midiática. O pessoal da arquibancada literária abusou do termo "deglutição" para caracterizar a atitude antropofágica, na acepção de quem se apropria das idéias e formas estrangeiras para adaptá-las em razão do contexto local. Isso, no entanto, não a define como traço específico, pois qualquer autor que não seja um alienado nefelibata deverá fazer essa operação mental, sobretudo na etapa globalizada do cibercapitalismo, que dispõe de uma alfândega espiritual "frixópi" e internacionalizada.

"Burguesia e besteira"
Vício preguiçoso e colonizado é o de tentar compreender a complexidade do pensamento oswaldiano a partir da influência determinante dos "ismos" europeus de vanguarda. Acontece, porém, que o índio da antropofagia não é o índio convertido nem o de lata de borracha. Oswald de Andrade queria fazer de "O Capital", de Karl Marx, um balé intitulado "A Maior Valia", com o binômio "burguesia e besteira".
Da madeira "pau-brasil" de tingir pano à antropofagia como antropofotossíntese, eis o que o levou a tornar-se comunista na década getuliana de 1930, com Pagu a seu lado, mas o começo é a floresta anterior à relação trabalho e capital. "O Chão" é título de um de seus romances. Pouco importa se foi mais a floresta ouvida sob o mimo de mamãe em São Paulo do que a floresta que houve. A selva selvagem regida pelo regime do matriarcado sem propriedade privada e herança, sendo o filho educado no superego grupal, é um mito fundador tanto quanto a hipótese freudiana sobre o parricídio e o desmame do leite materno. "As amazonas do tipo bancário". As moças das Lojas Americanas. O matriarcado de Pindorama virá à tona do inconsciente conforme aumenta o declínio do fóssil combustível. Com o detalhe: já tínhamos o comunismo. Catiti. Catiti. Catiti. A tecnologia local. O índio autodesenvolvido cuspia as enzimas da saliva fermentando a mandioca barroca dos trópicos.
Oswald de Andrade caminhou em direção à energia das plantas verdes, e não às forças produtivas nucleares do átomo. É o único filósofo marxista da floresta. O "instinto caraíba", base de seu pensamento a céu aberto, não embarcou na miragem do carvão de pedra inglês nem no petrodólar do "tamanduá ianque".


Gilberto Felisberto Vasconcellos é professor de ciências sociais na Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) e autor de, entre outros livros, "Brazil no Prego" (Revan).


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