São Paulo, domingo, 10 de outubro de 2004

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O GRANADEIRO BITTENCOURT

LEIA UMA CRÔNICA DE OSWALD DE ANDRADE PUBLICADA NO "CORREIO DA MANHÃ", EM 1943, E SÓ AGORA RECOLHIDA EM LIVRO

por Oswad de Andrade

D. Amália estacou diante de mim no corredor. Tinha os olhos tristes e baixos. Mas brilhava neles a certeza de que aquele homem, que lá dentro agonizava no quarto da Casa de Saúde, tinha uma imortalidade a protegê-lo contra o destino inevitável. Era a imortalidade mais simples desta terra -a do dever cumprido. Minhas recordações passaram rapidamente ao Edmundo Bittencourt que eu visitara no acidente que o prendia à cama, anos atrás, estiolando-lhe as energias. Mesmo a tortura sedentária não lhe quebrantara o ânimo. O simples nome enunciado, do interventor do momento em meu Estado, fizera voar tudo pela janela, a cama, o aparelho de gesso que retinha a perna, a Casa de Saúde, o mundo -São Paulo só pode ser governado por imbecis. A fórmula não é mais civil e paulista... E minhas recordações atingiram aquela trégua de Paris onde conheci a família Edmundo Bittencourt justamente num momento de desolação, quando morria Aloísio, irmão de Paulo. Edmundo Bittencourt era o debate em pessoa. Na ocasião, quando a trégua entre duas guerras decisivas para a humanidade parecia transformar o mundo numa escola de dancing ao jazz do cubismo, o debate se cerrava cândido nas questões de arte e de literatura. E vejo ainda Edmundo Bittencourt, no verdor dos seus 60 anos, galgar as escadas de cinco andares de uma casa da velha Montmartre para opinar e discutir. E minhas recordações me levam mais longe, bem mais longe ainda, quando a minha mocidade de estudante mais de uma vez estremeceu ante a atuação desassombrada e ferina desse vulto que encimava de dignidade profissional o jornalismo brasileiro. Grande época aquela em que o poder descia para enfrentar, no campo de honra dos duelos, o acusador indomável que o atingia. Nunca mais da memória de alguém que tivesse vivido esses traumas do civismo republicano poderá sair essa atitude do jornalista Edmundo Bittencourt, aceitando numa evidente inferioridade o repto com que pretendia intimidá-lo o ditador Pinheiro Machado. A voz da acusação que não media sacrifícios de vida tornou-se então a esperança dos desiludidos, o estímulo dos hesitantes, a coragem dos fracos. O heroísmo ditado pela dignidade profissional de Edmundo Bittencourt abria uma estrela na noite que descera sobre a consciência nacional. E daí por diante sua vida foi estimular e defender a oposição contra todas as arbitrariedades emanadas do gosto do mando e da inconsciência dos mandantes.

Ordem e progresso em Gilberto Freyre
Gilberto Freyre, que sofre como tantas consciências retas, as conseqüências metastáticas do câncer fascista, perguntava-me um dia sobre essa época da Primeira República que ele pretendia estudar sob a epígrafe amável de "Ordem e Progresso". Se alguma coisa pode mandar-lhe o meu depoimento, é a saudade dessa caminhada da liberdade que produziu os grandes homens da Primeira República. Sem dúvida não serei eu quem vá esquecer que, sob o lençol constitucional dos direitos cívicos, uma sombria feudalidade dominou o primeiro quarto do século esgotando as massas laboriosas nacionais e emigradas na primeira construção econômica do país. Mas quem negará a vitalidade idealista que norteou as grandes campanhas eleitorais republicanas? Ligado ao jornalista, Edmundo Bittencourt, avulta o do apóstolo do direito que foi Rui Barbosa.
Se alguma memória se deve cultuar no momento em que foi historicamente posta à prova a incapacidade monstruosa do fascismo, é essa do homem que galvanizou o Brasil em nome das garantias públicas de viver que todos pretendem. O livro que Gilberto Freyre anuncia com esse doce nome "Ordem e Progresso" deve constituir mais do que uma coroa piedosa depositada no túmulo de um pacífico programa ideológico. Onde há Ordem não há Progresso, dizia-me um amigo paradoxal e inteligente. Conforme a Ordem e conforme o Progresso.
Que esse álbum de um passado recente, onde vão guardar-se as memórias da gente livre e digna, que lutou pelo desenvolvimento superior do Brasil, constitua uma fonte de reservas na luta que mantemos contra as felonias e os desacertos do fascismo. Que lhe seja um breviário para as horas amargas da nacionalidade em guerra contra os que querem fazer do apodrecimento uma ética e da cumplicidade com o mal um roteiro. E que nele figure entre os maiores defensores do Brasil, do grande Brasil que se anuncia nas esparsas dignidades do presente o nome honrado de Edmundo Bittencourt.


A crônica acima foi publicada no "Correio da Manhã" em 28 de novembro de 1943 e incluída no livro "Feira das Sextas" (ed. Globo).


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