São Paulo, domingo, 10 de outubro de 2004

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TONS DE AMEAÇA

APROPRIAÇÃO DOS POEMAS DE CUMMINGS PELO COMPOSITOR AMERICANO MORTON FELDMAN, DISCÍPULO DE JOHN CAGE, ESTABELECE UM CONFRONTO COM OS "EUROPEUS" PIERRE BOULEZ E STOCKHAUSEN QUE SINTETIZA PARTE DA HISTÓRIA DA MÚSICA DO SÉCULO 20

por Augusto de Campos

Para que uma obra tenha sucesso, o seu criador deve fracassar", afirmou Morton Feldman, um dos mais originais compositores do círculo de Cage. "Quantas vezes tive vontade de chegar ao John, depois da audição de um concerto como o de "Atlas Eclipticalis" e dizer: "meus pêsames, John, você compôs uma das coisas mais maravilhosas que eu já ouvi"." De uns anos para cá, Feldman (1926-1987) vem sendo ouvido com crescente interesse. Além do significativo aumento de gravações de suas músicas, várias delas ainda inéditas em disco, foi publicado em 2001 um volume, organizado por B.H. Friedman, "Give My Regards to Eighth Street" (Recomendações à Rua Oito), que reúne um bom número de seus artigos e entrevistas e de onde extraí a citação do início deste artigo. Feldman é uma figura carismática, estranha, polêmica, contraditória, difícil de caracterizar e de avaliar no quadro da música contemporânea, embora sem dúvida provocadora e fascinante. Numa época em que o ruído e a "loudness", a estridência e a explosividade sonora parecem constituir componentes inevitáveis da composição, ele optou por uma música pianíssima, quase indiferenciada, anti-ruído. Sua imagem preferida nos últimos tempos era a da tapeçaria oriental. "Coptic Light" (Luz Cóptica), denominou a uma de suas últimas obras, aludindo aos antigos tapetes dos coptas, egípcios cristãos dos séculos 4º a 7º, que admirara no Louvre. Entre parênteses: a imagem da tapeçaria oriental fora também invocada por Stockhausen a propósito de certas texturas sonoras repetitivas de Ligeti, numa das entrevistas que deu a Jonathan Cott (1974). E, antes de ambos, no começo dos anos 1930, a compositora Ruth Crawford usara a imagem dos desenhos complexos dos tapetes persas para justificar as assimetrias e irregularidades de suas composições, conforme se lê na biografia que sobre ela escreveu Judith Tick (1997). De todo modo, nas derradeiras obras de Feldman o símile é levado às conseqüências as mais radicais. E, se Cage, seu reconhecido mestre, parecia optar antes pela precipitação de eventos sonoros do que pela composição no sentido de uma obra definidamente elaborada como tal, Feldman, distanciando-se também da idéia de composição, mas afastando-se dos "happenings" de Cage, dirigiu-se para a elaboração de intrincadas texturas ou, quem sabe, contexturas sonoras, que se afiguram sem começo e sem fim.. Há aí algo de um pré-minimalismo, mas onde o minimalismo é também fugidio e extratonal. Embora considerado por todos um compositor "do círculo de Cage", como mencionado de início, e assim o fosse realmente, tendo ambos adotado métodos de indeterminação musical, Feldman afirmava não aceitar o lema cagiano de que "todos podem compor" e pretendia, paradoxalmente, uma personalíssima intervenção nos modos de compor, o que Cage não deixava de reconhecer ao afirmar que a música das composições predeterminadas da primeira fase de Feldman é Feldman executando a sua música indeterminada.

Divergências
Uma das marcas de sua personalidade é o enfrentamento com os europeus, especialmente Boulez e Stockhausen, que constituem a sua "bête noire". Insurge-se contra a perfectibilidade do primeiro, seu profissionalismo e sua ortodoxia, e contra o brilho e a onívora criatividade do segundo, chegando a considerá-los, numa evidente provocação, "popularizadores" da música contemporânea. Tal como Gertrude Stein afirmava de Joyce que ele era o incompreendido que todos compreendiam, embora ao mesmo tempo sugerisse que os três maiores prosadores modernos eram Proust, Joyce e ela.
Por trás dessa postura, evidentemente, está a divergência com a idéia de obra estruturada, que, bem ou mal, Boulez e Stockhausen não abandonam, mesmo nas composições mais livres. Única exceção, no caso deste último, a experiência de "Aus den Sieben Tagen" (Dos Sete Dias), em que o músico alemão não oferece partitura, mas apenas alguns lemas, aos executantes. Mas há também um laivo de ressentimento pela rápida notoriedade dos dois compositores europeus no cenário dos anos 50 e nas décadas seguintes, quando Feldman era ainda pouco reconhecido.
E, certamente, terá pesado em seu comportamento o desdém -manifesto na correspondência Boulez/ Cage- com que sua música foi acolhida pelo compositor francês. Mas o fato é que os europeus, especialmente Boulez, mesmo nas obras programaticamente "abertas", se orientam por conceitos de "composição" e de "estrutura" que não parecem caber nos projetos feldmanianos, propensos a desencadear antes manchas sonoras do que nítidas configurações.
É curioso que Feldman e Boulez, personalidades tão antagônicas, tenham, em diferentes fases, musicado textos do mesmo poeta -Cummings-, elegendo, dentre os seus poemas, alguns dos mais espaciais e "tortográficos" e aparentemente mais refratários à musicalização: Feldman, para "Four Songs to E.E. Cummings (1951)" [Quatro Canções para E.E. Cummings], escolheu os poemas "!Blac", "Air", "(sitting in a tree-)" e "moan", do livro "50 Poems" [50 Poemas] (1940); Boulez, para "Cummings Is der Dichter" (1970), o poema "Birds", de "No Thanks" [Não, Obrigado] (1935). Num artigo intitulado "Poems of Cummings set to Music" [Poemas de Cummings Musicados], publicado no nº 4 (outubro de 1995) da revista "Spring", dedicada aos estudos cummingsianos, Norma Pollack, que afirma ter levantado até então cerca de 370 obras musicais de aproximadamente 143 compositores sobre poemas de Cummings, menciona a ambos na área dos vanguardistas, ao lado de Cage e Berio.
Feldman conheceu Cage em 1949 num concerto em que se apresentava a "Sinfonia op. 21", de Webern. "Nenhuma obra que ouvi antes ou depois me causou tão grande impressão", comentaria anos mais tarde. Foi certamente Cage que lhe chamou a atenção para os poemas de Cummings, como o faria também, mais adiante, com Boulez. Os textos não-convencionais do poeta já tinham sido musicados por Cage: o ciclo das "Chansons Innocentes", ao qual pertencem "In Just-" , "Hist Whist", "Little Tree", "Why Did You Go" e "Tumbling-Hair", do livro "Tulips and Chimneys" [Tulipas e Chaminés] (1923), em "Five Songs for Contralto" [Cinco Canções para Contralto] (1938); o poema "Wherelings Whenlings", também de "50 Poems" (1940) -o mesmo livro de que Feldman extrairia os textos para as suas canções-, em "Forever and Sunsmell" (1942); e "X It Is at Moments After I Have Dreamed", do conjunto "Sonnets Unrealities", outra vez de "Tulipas e Chaminés", em "Experiments nº 2", para voz solista (1945-48). Mas os poemas escolhidos por Feldman e Boulez são ainda mais desafiadores, por sua fragmentação tipográfica.
Nas "Cinco Canções para Contralto", que o próprio Cage descreve como "canções cromáticas em que emprega processos não-ortodoxos de composição dodecafônica", já se antevê, pela parcimônia da tessitura melódica e da harmonia, o ascetismo melódico que caracterizaria as suas posteriores musicalizações de textos cummingsianos. É como um melodista à Schoenberg/Webern simplificado por Satie. Nas demais obras, já despidas de preocupações dodecafônicas, esse processo se acentua. Assim como fez com outras composições, como "A Viúva das 18 Primaveras", com texto extraído do "Finnegans Wake" [de Joyce], Cage adota para a musicalização dos textos cummingsianos uma tessitura ainda mais curta, algumas vezes de apenas duas ou três notas, que aproxima o canto da linguagem natural da fala, numa linha melódica modal, dir-se-ia quase trovadoresca. Em "Forever and Sunsmell", talvez a mais notável dessas composições, ele mantém basicamente esse procedimento. Dividida em duas partes e em cinco seções, com um interlúdio de boca fechada, a melodia se desenvolve nas duas primeiras seções com apenas duas notas, seguidas no interlúdio por uma escala pentatônica, em que se integram as mesmas notas, e que serve de base às seções finais, diminuídas de uma. A tessitura intervalar da melodia, ainda que alçada a uma oitava, é mantida em limites estritos e estreitos: ré-mi-sol-lá-si. "Experiences nº 2", a última composição de Cage sobre texto de Cummings, mantém essa linha de sobriedade, reprisando o uso da "bocca chiusa", que se entremescla às linhas do poema, cantadas numa singela melodia tonal, entre longas pausas. Diametralmente diversa é a abordagem de Feldman.
É sabido que a obra de Morton Feldman se divide em duas fases -a da obra escrita, totalmente predeterminada, e a da não-escrita em partitura, reduzida a diagramas, em larga medida indeterminada. A musicalização dos poemas de Cummings é da primeira fase de Feldman e traz ainda a marca dos seus estudos com Stephan Wolpe (discípulo de Schoenberg radicado nos EUA). Embora Feldman goste de relativizar o influxo desses estudos, dizendo que passava o tempo todo brigando com Wolpe, este, sem dúvida, terá sido a matriz do Webern que evocam as suas musicalizações assim como outras peças instrumentais suas do mesmo período. De fato, é a depuração extrema, a par dos saltos intervalares da linha melódica, de molde serial, em registros agudos, traços característicos do compositor vienense, o que mais ressalta nas transposições de Feldman dos textos cummingsianos.
A sua adoção, com tais formas e inflexões, acaba adquirindo um caráter pioneiro, se se considerar a data em que foram criadas essas peças musicais -1951, época que Boulez buscava em René Char a matriz textual das suas composições, sem se convencer da pertinência de sua escolha, apesar dos extraordinários méritos musicais de obras como "Le Visage Nupcial" [O Rosto Nupcial] (1946-47), "Le Soleil des Eaux" [O Sol das Águas] (1948) e, pouco adiante, do magistral "Le Marteau Sans Maître" [O Martelo sem Mestre].
Com notável intuição, como que corrigindo a defasagem que sempre se verificara entre os textos e a música dos protagonistas da Segunda Escola de Viena e seus novos seguidores europeus, parece que Feldman, já àquela altura, encontrara o poeta certo para a música certa. Pois aqui, com naturalidade, ele faz coincidir os característicos saltos intervalares webernianos com as desconstruções tipográficas da poesia de Cummings, recortando a linha melódica em sílabas e mesmo em fonemas, em evidente isomorfia com o texto.
Entre as composições de Feldman e Boulez emerge, com particular brilhantismo, a de Luciano Berio, "Circles" [Círculos] (1960), para voz, harpa e dois percussionistas, que utiliza os poemas "Singing" (de "Tulipas e Chaminés", 1923) "Riverly" (de "&", 1925) e "N(o)w" (de "W", 1931). Diferentemente de todos os outros, Berio dá aos poemas de Cummings a dimensão de uma cantata, explorando ao máximo, em particular no caso do poema "N(o)w", de complexa fatura tipográfica, as virtualidades fonêmicas sugeridas pela fragmentação vocabular, a ponto de incluir as pontuações não-ortodoxas e até mesmo os parênteses na transposição sonora. Para isso, além de contar com uma intérprete excepcional, a cantora Cathy Berberian, cercou a sua voz de um numeroso conjunto de instrumentos de percussão que respondem gestual, minuciosa e precisamente às provocações e sugestões do texto, articulando e desarticulando o discurso musical em fase com o discurso verbal. Sendo a mais longa de todas as composições aqui consideradas, chegando a quase 20 minutos, a composição de Berio contrasta, sob esse aspecto, sobretudo com a de Feldman, a mais econômica, cujas transposições musicais, à maneira weberniana, duram em média menos de um minuto.
Foi Cage também quem levou Boulez a conhecer a poesia de Cummings, em 1952. Em contrapartida, foi Boulez quem o fez conhecer o "Lance de Dados", de Mallarmé, que o músico americano chegou a pensar em musicar. "Cummings Is der Dichter" para coro misto e pequena orquestra, escrita tantos anos depois, é peça extremamente complexa, com duração de cerca de 14 minutos. ("Cummings É o Poeta" -o título surgiu por equívoco a partir de uma conversa telefônica de Boulez com uma secretária, que indagara o título da obra para o catálogo da sua estréia em Ulm, pela Schola Cantorum de Stuttgart, em 1970). De todas as transposições aqui consideradas é, por certo, a menos "inteligível". É pouco provável que o ouvinte, a menos que disponha da partitura, consiga captar mais do que uma ou outra palavra do texto. Contraria, à evidência, a pecha de "popularizador" que Feldman pretendeu impor ao músico francês, mas não as teses de Boulez sobre musicalização de poemas.
Em seu ensaio, "Som e Verbo" afirma ele não querer competir com a musicalidade intrínseca do texto poético, pretendendo utilizá-lo antes como pretexto para a pura especulação musical. Assim, é um vôo livre coral-orquestral o que exsurge da transposição bouleziana do poema "Birds", se é que se pode falar aqui de transposição. O texto é tratado em complicadas polifonias vocais atravessadas de acordes em trilo ou em bloco, em que as vozes femininas e masculinas se interceptam ou se fundem, prolongando-se nos próprios sons instrumentais e confundindo-se com estes.
Um vôo conflitual, que flui musicalmente para além do texto, em sombras evasivas de vozes, interrompidas por explosões sonoras -uma obra de grande beleza, por certo, mas aparentemente estranha à fenomenologia visual do poema, onde a aparição e desaparição das palavras-pássaros, isomorfizadas com a rarefação tipográfica no branco da página, a desarticulação microestrutural dos vocábulos, tudo, enfim, pareceria sugerir uma tradução musical de maior transparência e claridade e de menor densidade musical.
É onde o webernianismo explícito das peças, musicalmente muito mais modestas, de Feldman, se mostra mais consentâneo com os textos de Cummings. De todo modo, há uma convergência na escolha do poeta americano, a demonstrar que as contradições artísticas nem sempre são tão antagônicas quanto parecem. Como no caso Schoenberg x Stravinski, o mediador é Webern, já que nas suas transposições Feldman parece -via Webern- mais bouleziano que Boulez.
Vistos à distância e no caso, ainda mais, considerado o pequeno número de receptores da música contemporânea, certos conflitos estéticos nos fazem lembrar o conto "Os Teólogos", de Borges. Em resumo, dois religiosos se confrontam. Um deles, invejoso do brilho do antagonista, consegue ardilosamente inculpá-lo perante a Inquisição e fazer com que seja queimado por supostas heresias. Liquidado o rival, o remorso o tortura. Anos depois, morre ele próprio, queimado acidentalmente numa choupana monástica atingida por um raio. Entra no reino dos céus. Ao dirigir-se a Deus, verifica que este se interessa tão pouco pelas diferenças religiosas que o toma pelo seu oponente. Melhor dizendo, para Deus o acusador e a vítima formavam uma só pessoa.


Augusto de Campos é poeta, tradutor e ensaísta, autor de "Música de Invenção" e "Despoesia" (ed. Perspectiva), entre outros livros.


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