São Paulo, domingo, 10 de outubro de 2004

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OS DEUSES SEM VOZ

Dan Chung - 12.nov.2002/Reuters
Máscara asteca do século 15 exposta na Academia Real de Artes, em Londres


Crise das linguagens simbólicas está na raiz das grandes catástrofes coletivas, como a extinção das civilizações inca e asteca e o terrorismo atual

Manolo Florentino

Escrever pode engendrar a ambição do livro definitivo, que inclua a todos os outros como uma espécie de arquétipo platônico. Óbvio, o vaticínio borgiano vale inclusive para os historiadores. Por isso admiro os profissionais que, embora consagrados, não cansam de alertar para o quão precário é o estado do conhecimento acerca do que eles próprios estudam. Moses Finley e Georges Duby não perdiam a chance de reiterá-lo sempre que consideravam, no todo, a vida material na Grécia clássica ou na alta Idade Média. Outro membro da casta, o romeno John Murra, depois de haver entregue a vida à obsessão de juntar coerentemente os cacos que restaram do passado andino -sobretudo da economia e do Estado incaicos-, decretou sem pudor: "Milhões haverão lido a "Ode a Machu Picchu", de Pablo Neruda; muitos mais terão visitado o monumento, mas ninguém sabe que setor da sociedade incaica habitava o lugar". Juízos semelhantes podem ser aplicados aos astecas, em que pesem os notáveis avanços obtidos pela arqueologia mexicana ou o que se aprendeu com Alfredo Lopez Austin sobre as relações entre corpo e ideologia em Tenochtítlan. A verdade é que a compreensão das altas culturas pré-hispânicas está longe de ver-se esgotada. E com ela o justo entendimento dos vínculos entre dois dos mais contundentes legados de Colombo ao Novo Mundo -a hecatombe experimentada pelas populações indígenas e a rapidez assumida pela conquista européia. Pode-se ter uma dimensão do primeiro: embora mais de 30 milhões de nativos habitassem o planalto mexicano e os Andes no início do século 16, cem anos bastaram para que ali não restassem mais do que 2 ou 3 milhões de almas (a recuperação demográfica data do século 18, mas por meio de medíocres taxas anuais).

Fratura populacional
Quanto à conquista, as posições espanholas encontravam-se consolidadas em praticamente toda a meso-América e América do Sul apenas 30 anos depois do desembarque dos castelhanos em Vera Cruz (1519), não obstante líderes como Hernán Cortéz, Francisco Pizarro e Diego de Almagro contarem, em conjunto, com poucos milhares de seguidores. Não fosse a profunda fratura populacional e nem 300 anos bastariam para que os ibéricos pudessem exigir em ouro o peso de qualquer mandatário indígena. Suas termópilas eram mais do que um simples desfiladeiro. Semelhante constatação não permite imputar a tragédia demográfica ao exercício de uma espécie de violência atávica, que se apossava dos castelhanos sempre que eles se defrontavam com um índio, o enredo preferido dos epígonos de Bartolomé de Las Casas. Ou -tese muito mais razoável- unicamente à combinação entre os cruéis regimes de trabalho impostos pelo conquistador e a disseminação do tifo, do sarampo, da gripe ou da varíola, frente às quais os nativos estavam totalmente desamparados. É possível, no entanto, que a catástrofe populacional e a conquista veloz encontrassem melhor cimento menos na banalização da morte do que na subtração da linguagem ritual que por séculos estruturava as sociedades pré-hispânicas, hipótese não negligenciada por especialistas como Serge Gruzinski, Natan Wachtel, Carmen Bernand e Tzvetan Todorov. "Os deuses emudeceram" -atestam os melancólicos livros maias de "Chilam Balam" e, de modo algo enviesado, a "História de las Índias de Nueva España", do dominicano Diego Durán. Há indícios de que a mulher indígena respondeu à instauração do caos simbólico por meio de dramática redução em sua fecundidade. Nada mais razoável. Afinal, a linguagem que antes estruturava o mundo operava também por meio do culto à vida, inclusive quando do alto de alguma pirâmide arrancavam-se os corações de seus suportes ainda vivos.

Mistura planetária
De acordo com fragmentos referentes à região de Huánuco, até 1530 as famílias nucleares incaicas juntavam em média seis membros. No século 17, tal cifra alcançava, com esforço, pouco mais de dois parentes. O paroxismo foi alcançado na Nova Granada por volta de 1660, quando metade dos casais não tinha filhos, e, a outra, só dois -com sorte, garantia-se a reposição de apenas 50% dos nativos adultos da geração seguinte. Tratava-se do efeito anunciado da segmentação dos cônjuges pelas demandas da mineração, é certo. Mas também da obstinação indígena em não transformar em legado a sua definitiva desgraça.
As grandes catástrofes coletivas já não produzem nem eunucos nem sátiros. O que confirma a idéia -cara a Marshall Sahlins [antropólogo]- de que a civilização já causou o estrago que podia, restando apenas cadáveres a serem antropologicamente dissecados. Mas a impossibilidade de simbolização viceja e prolifera. No centro do capitalismo avançado, um de seus móveis reside no veloz engajamento das diversas culturas naquilo que um dia foi designado "aldeia global".
Em seu inevitável afã de in-diferenciar, a mistura planetária desarraiga. Como resultado, arranca-se a multidões um "outro" interior, nada infenso à subtração da linguagem. O efeito talvez possa ser mensurado pela quantidade dos que acodem a consultórios em busca de alento para essa espécie de morte em vida. Nas fímbrias do império, a revanche não raro assume feições igualmente patológicas e certamente pode ser medida pelo número dos que esposam fundamentalismos de variados tipos, de religiosos a puramente étnicos. A opção pelo injustificável terrorismo bebe também dessa fonte.


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