São Paulo, domingo, 10 de outubro de 2004

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+ brasil 505 d.C.

O JOGO DA REPRESENTAÇÃO

Hiato entre sociedade civil e sociedade política faz parte da democracia e só poderia ser superado por um Estado totalitário

José Arthur Giannotti

Costuma-se afirmar que as formas da representação política se situam num contínuo entre a democracia direta, ou melhor, a ausência de representação, e os modos mais sofisticados pelos quais os eleitores transferem direitos, deveres e expectativas a determinados profissionais. Esta, porém, seria a melhor maneira de pensar a democracia representativa? Parte-se da idéia de que, sendo a democracia, por definição, o regime político no qual cada cidadão participaria da elaboração das leis a que ele mesmo se submeterá, nada mais natural imaginar que a assembléia de todos os homens livres seria o paradigma do sistema democrático. Mas assim se considera a política a partir de um momento em que ela ainda não está inteiramente institucionalizada, o poder do representante emanando diretamente da vontade dos representados. Há um pressuposto obscuro nesse modo de pensar, pois o cidadão é, desde logo, tomado como elemento cujas ações se reportariam ao núcleo autônomo do eu, originalmente desligado do outro. Marx o nega, retoma aquela idéia grega segundo a qual o ser humano seria antes de tudo ser social, vale dizer, vinculado por regras regendo a vida em sociedade; mas, levado por certo hegelianismo, termina colocando como ideal socialista a abolição da política graças à instalação de uma democracia social, como se a nova sociedade pudesse ser medida por uma amizade, uma "philia", inteiramente transparente. Não haveria, porém, outra maneira de negar esse novo postulado mostrando como o indivíduo político possui um princípio de individuação próprio, diferente daquele que o faz individualidade social?

Indivíduo como agente
Quando se pensa a democracia como se ela pudesse funcionar desprovida de processos de representação é porque se considera o indivíduo antes de tudo como eu agente, "cogito" dotado de vontade, cuja atuação primeira independe do outro. É sintomático que as invocações da democracia direta comecem a servir ao pensamento político a partir do momento em que se imagina a unidade política de um grupo na base de um contrato, isto é, junção de vontades individuais constituindo uma vontade geral, representada por um soberano decisório, que livre os indivíduos do medo, assegure a propriedade e assim por diante. A luta pela democracia se resume então, ao menos no seu aspecto mais formal, no esforço de colocar a entidade abstrata povo no lugar do monarca soberano idealizado. Mas essa noção de vontade sobreviveria às críticas que lhe fizeram filósofos como Nietzsche, Heidegger ou Wittgenstein? Vale a pena tentar esboçar essas críticas. O indivíduo nunca é agente autônomo reflexionante, pois não há expressão que o denote como tal. O pronome "eu" é muito diferente de um nome, pois, como nos ensinam os lingüistas, é ele próprio uma instância do discurso, ato único e discreto no qual toda uma língua se atualiza. O pronome "eu" não denota fora daquele ângulo no qual um sujeito se individualiza focando a linguagem sob um aspecto e atuando em vista de sistemas de ação já "preexistentes". Quando digo "eu penso", estou enunciando que sou o indivíduo que enuncia a presente instância do discurso que contém a palavra "eu". A reflexão passa necessariamente pelos canais da linguagem. Obviamente essa dimensão de qualquer indivíduo falante altera a noção clássica de vontade. Ao querer uma maçã -visto que só quero me exprimindo numa língua, ainda que virtualmente-, quero também tanto os meios que me levem a essa fruta quanto as leis que não alteram seu sabor etc. O que significa "querer uma lei", particularmente aquelas que os indivíduos precisam para viver em sociedade? Mais do que desejar uma fruta, pois, no nível mais elementar da relação pai e filho, esposo e mulher e assim por diante, esse querer está imbricado em tudo aquilo que diz respeito à manutenção da lei. O que dizer das leis que regem relacionamentos indiretos? No fundo, querer a lei implica igualmente querer o curador da lei. Note-se que essa dimensão escapava ao pensamento clássico na medida em que estabelecia uma continuidade entre formular uma lei e segui-la. Nunca, porém, estarei certo de que, ao formular uma regra, outrem a entenda como eu, a despeito de estarmos agindo juntos de forma convergente; os erros de sentido são irrelevantes para nossa ação comum. Segue-se que a vontade não é um ato solitário, mas, igualmente, querer manter um sistema normativo, mesmo que para reformá-lo. Suponhamos crianças jogando futebol. Se pretenderem continuar jogando juntas, necessitam admitir uma forma qualquer de arbitragem que venha dirimir um dissenso incontornável. A não ser que se pressuponha que todo dissenso possa ser superado na base da discussão e da deliberação. Mas assim não pressupõem que as diferenças de entendimento da regra "devam" ser superadas, posto que, em algum lugar de nosso espírito, teríamos o segredo do sentido das palavras, por conseguinte a medida "precisa" de nossas ações coletivas? No fundo, estaríamos pressupondo uma linguagem adâmica e os mecanismos da razão clássica. Ora, basta reconhecer que o querer da lei se entrelaça ao querer da curadoria da lei -é sintomático que o poder do soberano tenha sido comparado ao trabalho do pastor- para que o paradigma da democracia direta deixe de ter sentido. Para realizarem o contrato civil, os futuros cidadãos precisariam ainda contratar nova instância curadora, que por sua vez demandaria outra mais alta e assim por diante. Noutras palavras, não fariam contrato nenhum. Desse modo, não se pode deliberar e decidir sem que se pressuponha ao lado, já "instituído", um poder regulador que venha ajustar o comportamento coletivo quando se forma um dissenso factualmente irredutível. Que esse poder se reformule conforme sua eficácia nem é preciso mencionar. Mas importa essa dobra entre o querer a lei e o querer a arbitragem implícita no simples querer da lei. O que estou querendo demonstrar? Que mesmo quando se quer relações sociais como aquelas vigentes na chamada sociedade civil, essa vontade fica na dependência de outra vontade curadora que há de desaguar no limite que hoje se chama sistema político. Desde que a soberania não resida num único monarca, desde que não se resuma na capacidade individual de decidir sobre questões de exceção, desde, por fim, que há de nascer do próprio movimento dos representados e dos representantes, segue-se que qualquer escolha de um representante "político" implica atribuir-lhe uma identidade compatível com sua atuação nesses dois níveis.

Autonomia relativa
Por isso a prática da política se resume num "jogo" em que o lado do representado e o lado do representante são mantidos soberanos graças à sustentação relativa de suas próprias regras. A escalada ao infinito da regra e seu pastoreio se resolve, numa democracia representativa, naquele jogo do próprio sistema político que vem a ser capaz de legislar sobre si mesmo e controlar suas atividades, na medida em que ele é jogo e especifica suas funções nos três poderes: Legislativo, Executivo e Judiciário.
Isso posto, como abolir o hiato entre a sociedade civil e a sociedade política? Essa distância só pode ser coberta por um Estado totalitário.
É graças a esse jogo que se explica a possibilidade de o representante votar uma lei a que "todos" os representados se furtariam se o pudessem. Não é o que acontece com os impostos? Consenso e dissenso andam juntos sem nunca se fundirem. Por isso é que me preocupo com tendências, muito presentes na sociedade brasileira, de subordinar o sistema político às necessidades da sociedade civil, como se questões de direito e de liberdade fossem de somenos. No limite, essa subordinação somente seria possível se o curador fosse o soberano absoluto, ainda que hoje em dia possa se chamar "partido".
O grau de democracia de uma sociedade não se mede apenas pela multiplicação das instâncias deliberativas, mas ainda, creio eu, pela autonomia relativa que assume o jogo político com suas regras e suas práticas, embora sempre careça de mudança, para melhor ou para pior.


José Arthur Giannotti é professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e coordenador da área de filosofia do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento). É autor de "Certa Herança Marxista" (Cia. das Letras). Escreve na seção "Brasil 505 d.C.", do Mais!.


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