São Paulo, domingo, 10 de outubro de 2004

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Ponto de fuga

Jorge Coli
especial para a Folha

O outro pianista

É bem possível que não haja caso parecido na história da música. Martha Argerich e Nelson Freire são amigos há quase meio século, desde quando estudavam em Viena. Tornaram-se os estupendos pianistas que se sabe, maiores entre os maiores. O sucesso de ambos, no entanto, não seguiu a mesma trajetória. Martha Argerich impôs-se de imediato, arrebatando os maiores prêmios internacionais, triunfando no concurso Chopin de Varsóvia, em 1965. O público, desde o início, entusiasmou-se com suas interpretações embriagadas, dionisíacas. Nelson Freire teve um percurso mais discreto. Se hoje os ingressos para os seus recitais e concertos se disputam com semanas de antecedência, há 20 anos não era bem assim. Ele podia interpretar Beethoven com a Orquestra Sinfônica Brasileira, no Rio, e o teatro ficava meio vazio. Tocava para 250 pessoas em sala de 500 lugares, no interior de São Paulo.
O comportamento discreto de Nelson Freire, arredio diante de jornalistas e de qualquer publicidade, teve, é provável, responsabilidade nisso. Mas, por fim, a crítica internacional passou a proclamar, de modo amplo e forte, seu gênio. Veio o reconhecimento. Nelson Freire e Martha Argerich sempre demonstraram duas personalidades pianísticas muito diversas, quase opostas, admiráveis ambas. Há algo assim de miraculoso em suas apresentações conjuntas, a quatro mãos ou a dois pianos, como fizeram recentemente no Brasil. Deixam de ser cada um, para integrarem uma fusão absoluta. Ela engendra como que um terceiro intérprete feito de ambos e para além de ambos.

Glacê - A editora Record tem uma coleção em que recolhe o testemunho de um determinado profissional sobre sua carreira. Em um dos volumes, Isaac Karabtchevsky conta "O Que É Ser Maestro". Os episódios narrados e os enfoques são estimulantes. Entre várias questões, uma, freqüente no Brasil, surge: a relação entre a música "clássica" e "popular". Karabtchevsky assinala as críticas que recebeu por tentar uni-las. Está claro que esse projeto é generoso e, de fato, os dois campos mantiveram relações complexas ao longo da história. Porém, como se sabe, o inferno está atapetado de boas intenções.
O musicólogo Flávio Silva, num livro que ele ainda está por escrever, formulou com a limpidez do ovo de Colombo: a diferença entre esses dois domínios musicais do Ocidente é a escrita. A música "clássica" constrói-se e evolui com grande complexidade abstrata porque é criada e fixada em textos. Ela encontra na escrita a essência mesma de seus processos construtivos. A música "popular" não é, ou não precisa, ser escrita. Há aqui diferença de natureza: uma não pode ser ouvida com os parâmetros e critérios da outra. As tentativas de junta-las nem sempre dão certo. Sobretudo quando se tenta "enobrecer" o "popular", em arranjos sinfônicos destinados a seduzir um público indiferente. Ouve-se, em meio a sonoridades lambidas, uma melodia reconhecível. Aplaude-se educadamente. É como bolo de aniversário: todo mundo bate palmas, come um pedaço. Mas nunca ninguém pensa: "Ah, que vontade de comer bolo de aniversário!".

Cocar - Foi apresentada, em Campinas (SP) a ópera "Lo Schiavo", de Carlos Gomes, sob a regência de Cláudio Cruz, com a nata dos cantores brasileiros: Portari, Gallisa, Lamosa, os protagonistas encarnados por Sebastião Teixeira e Eiko Senda. Esplêndidos todos, num espetáculo digno, que deveria percorrer outras cidades, ser gravado em CD e DVD.

Secreto - Descoberta inesperada numa livraria do Rio de Janeiro: "Paulo Fortes", de Rogério Barbosa Lima, pela editora Antigo Leblon. Paulo Fortes foi um barítono fenomenal, cantor de primeiríssima grandeza, completado pelas melhores qualidades humanas. Deixou um arquivo meticuloso de documentos e gravações, verdadeiro tesouro. O livro contém memórias do cantor, evocações de amigos, colegas e críticos. Paulo Fortes merece isso e mais. Porém alguns colaboradores involuntários, com textos e mesmo fotografias, ignoravam tudo do livro e de suas participações nele! Questão irrelevante, porém, diante da sombra imensa do grande cantor.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


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