São Paulo, domingo, 10 de outubro de 2004

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A FAMÍLIA EM TRAPOS

Dos personagens de Homero, Dante e Faulkner até Sherlock Holmes, relações entre pais e filhos, irmãos e irmãs definem parte significativa da história da literatura

Juan José Saer

É bom lembrar que Sherlock Holmes tinha um irmão mais velho, Mycroft Holmes, alto e discreto funcionário do Departamento de Assuntos Estrangeiros, que o detetive se via obrigado a consultar nos casos mais difíceis, porque era mais inteligente do que ele, a verdadeira mente dedutiva da família. Quanto ao doutor Watson, que, ao voltar do Afeganistão, bateu por acaso no número 221B da Baker Street porque alguém lhe dissera que um tal Holmes estava procurando alguém para dividir o aluguel, depois de compartilhar a vida com seu admirado amigo por algum tempo, casou-se e foi viver com a mulher em um subúrbio de Londres, e então perdeu de vista o grande detetive durante muitos anos. Esses detalhes confirmam que nem mesmo os mitos de papel, unidimensionais e concebidos segundo o mais estrito funcionalismo, que os obriga a repetir indefinidamente a mesma série de ações que o leitor espera deles, nem mesmo eles podem escapar do "princípio de realidade" que significa pertencer a uma família. A família é problemática até para quem não a tem: o monstro remendado pelo Dr. Frankenstein, Cinderela e Jean Genet (que em alguns textos se apresenta como uma espécie de mistura dos outros dois) revelam até que ponto a falta de uma verdadeira família pode alimentar uma consciência infeliz. Na literatura, de ficção ou não, o lugar da família é sempre significativo, e até se poderia conceber uma tipologia para os textos de ficção a partir do modo como neles aparece o tópico familiar, que em muitos autores é onipresente e, em outros, vago e até ausente, o que não deixa de ser intrigante. Os personagens de Borges, por exemplo, raramente têm família; e o Borges poeta, embora às vezes evoque o pai, parece ter somente antepassados. Nas poucas ocasiões em que as relações familiares aparecem em seus contos ("Emma Zunz" e "A Intrusa", entre outros), quase sempre é para resolver algum conflito por meio da violência: Emma se faz violentar e mata um homem para vingar o suicídio de seu pai, enquanto em "A Intrusa", dois irmãos apaixonados pela mesma mulher decidem assassiná-la para preservar seus laços familiares. O caso de Hemingway é semelhante ao de Borges: os temas familiares são vagos e esporádicos em seus textos, e o único parente que às vezes se distingue neles é, também, como em Borges, o pai. Em Faulkner, ao contrário, os personagens familiares são onipresentes e representam uma etapa decisiva desse gênero surrado que a crítica pôs em voga há mais de meio século, denominando-o "decadência de uma família". Fundada por Émile Zola, que também concebeu a "literatura experimental", inspirado nas teorias de Claude Bernard, a saga familiar povoou sem trégua as bibliotecas do mundo ao longo de várias décadas: os Rougon-Macquart, os Thibault, os Malavoglia, os Forsythe, os Buddenbrook, etc. e, no Caribe, já com um certo atraso, os Buendía. Para diagnosticar a decadência, Zola baseou suas histórias familiares em dados biológicos e sociais, tendo em vista a teoria da herança e da influência do meio. Freud descobriu que as crianças, aos dois ou três anos, quando começam a perceber que seus pais não são perfeitos, inventam pais ideais (um rei e uma rainha, por exemplo) para suplantá-los, imaginando que os que fingem ser seus pais não passam de um par de malvados que as compraram de algum cigano ou simplesmente as roubaram. Freud chamou essa curiosa fantasia infantil de "romance familiar". A partir desse conceito, Marthe Robert elaborou mais tarde a teoria de que toda a ficção seria uma espécie de romance familiar, um jeito de abolir o princípio de realidade para construir outra mais gratificante. Pode-se detectar um vislumbre desse mecanismo na "Divina Comédia": na vida adversa de Dante, exilado de Florença até a morte, seu livro foi um modo de reconstruir o universo segundo leis estabelecidas por ele mesmo, distribuindo castigos e recompensas a partir de suas idéias e de suas paixões. Adotou um pai espiritual, Virgílio, que o guiou pelo Inferno e pelo Purgatório, e uma mãe ou amante mística, Beatriz, que o levou pela mão para percorrer o Paraíso, em cujo exato centro instalou seu tataravô, Cacciaguida, que lhe contou a história de sua família identificando-a com a de Florença e predisse seu futuro, anunciando que, para além das vicissitudes que o esperavam -pobreza, escárnio, exílio (na realidade, quando escrevia esse fragmento, muitas já o tinham atingido fazia tempo)-, acabaria prevalecendo sobre elas e sobre seus inimigos.

Essência tenebrosa
As que poderíamos chamar de "famílias canibais" são freqüentíssimas na literatura. Os acertos de contas que nelas se perpetuam denotam, em sua sanha desmedida, mais do que qualquer outra situação dramática, a essência tenebrosa da espécie humana. Essas disputas truculentas entre pais e filhos, entre irmãos, entre ramos de um mesmo tronco familiar, projetam em escala monumental as pulsões que palpitam em cada um de nós, por baixo dos nossos instintos mais ou menos domesticados. Os Lear, os Hamlet e seus parentes, os Karamazóv, os Sutpen de "Absalão, Absalão" ou o pai que carrega o filho moribundo, como uma cruz, enquanto o repreende por todos seus crimes no conto "Não Ouves Latir os Cães?", de Juan Rulfo, são bons exemplos do desmesurado "grand guignol" que uma família pode representar. Mas às vezes os conflitos podem ser mais sutis, embora não menos tortuosos: Ulrich e sua irmã Agata, em "O Homem sem Qualidades", de Robert Musil, iniciam um incesto carnal e místico no próprio dia em que assistem ao velório do pai; no delicadíssimo "Primeiro Amor", de Turguêniev, o pai e seu filho adolescente se apaixonam pela mesma moça e, em "A Metamorfose", de Kafka, é quase menos embaraçoso para o herói ver-se transformado em um inseto do que lidar com as iniciativas de sua família, o que dá ao texto uma comicidade surda e opressiva. Alguns leitores já devem ter notado a ausência dos gregos no que foi dito até agora: acontece que, assim como em relação a quase tudo, o tema da família entre os gregos merece um parágrafo à parte. Desde a rainha Medéia, a estrangeira, que por despeito amoroso mata os filhos para se vingar do marido, até os atridas, rancorosos e sangrentos, de cujas mulheres Pavese dizia que tratavam seus homens como cavalos e para os quais todo litígio familiar se resolvia com um brutal homicídio, passando pelo parricídio de Édipo, pelos filhos que teve com a própria mãe, Etéocles e Polinice, que se mataram entre eles, e por sua filha Antígona, que foi enterrada viva por querer dar-lhes sepultura, os personagens primitivos e torvos da tragédia mostram em claro-escuro as águas pantanosas em que chafurda o pretenso "valor-refúgio" do conformismo atual. Porque o mito e a tragédia não são esquemas abstratos nem letra morta, e sim palavras vivas que falam eternamente de cada um de nós: o crime abominável de Medéia reaparece com bastante freqüência nas páginas policiais, e, quanto às famílias reinantes, vale a pena citar esta frase de Plutarco em sua "Vida de Demétrio" (III, 1): "Quase todas as dinastias têm muitos príncipes que mataram os filhos, a mãe ou a mulher; quanto ao fratricídio, era considerado, assim como os postulados dos geômetras, uma regra usualmente admitida, necessária para a segurança dos reis".

Ambigüidade grega
Já em relação a Ulisses, um comentarista medieval declarou que, embora tenha ficado mais que o devido na ilha de Circe, "amava a pátria, a mulher, o filho, o pai e os amigos". Como se sabe, sua mulher, Penélope, foi assediada por 129 pretendentes que, considerando-a viúva, se instalaram em sua casa e exigiram que escolhesse um deles para se casar de novo. Mas conseguiu adiar a decisão valendo-se de um ardil, até o regresso do marido, que, disfarçado de mendigo, pôde estudar secretamente a situação e comprovar a fidelidade da mulher. Com a ajuda do filho, Telêmaco, massacrou os pretendentes e recuperou sua família e seus bens.
Mas a saudável ambigüidade grega raras vezes se contenta com a mensagem edificante. Várias tradições sustentam que Penélope foi infiel, antes e depois da volta de Ulisses. A mais sugestiva é a que afirma que, durante sua ausência, Penélope se deitou com os 129 pretendentes, e que dessa união populosa nasceu o deus Pan -"Tudo". Essa versão parece identificar Penélope com a Deusa Branca, a Grande Mãe, figura central nos cultos pré-históricos, de cujo ventre fecundo saiu à luz do dia, inacabada e sangrenta, a família humana.


Juan José Saer é escritor e ensaísta argentino, autor de, entre outros, "O Enteado" (ed. Iluminuras). Escreve mensalmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Sergio Molina.


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