São Paulo, domingo, 10 de novembro de 2002

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A história dos medos alimentares

Histoire des Peurs Alimentaires
480 págs., 25 euros de Madeleine Ferrières. Ed. du Seuil (França).

Onde encomendar
Livros em francês podem ser encomendados, em SP, na livraria Francesa (0/xx/11/3231-4555).

Philippe-Jean Catinchi
do "Le Monde"

Mistura sem dosagem de temor preciso e ansiedade difusa", em que razão e irracionalidade estão inextricavelmente ligados, o medo tornou-se recentemente objeto de história por si só, apesar de os trabalhos pioneiros de Jean Delumeau ["O Medo no Ocidente", Cia. das Letras" terem negligenciado a noção de risco alimentar. Os trabalhos iniciados por instigação de Jean-Louis Flandrin ["História da Alimentação", ed. Estação Liberdade", dos quais o alimento -produções, códigos e ritos- foi o último campo de estudo, certamente estabeleceram que, ao medo da fome, substituiu-se o do alimento insalubre. Mas se deve aceitar essa lógica simplista e recusar aos homens ameaçados em sua subsistência a consciência da nocividade do produto avariado, impuro, corrompido?
Tentando trazer elementos para uma resposta a essa interrogação, Madeleine Ferrières, em "Histoire des Peurs Alimentaires" [História dos Medos Alimentares", não teve medo de ultrapassar os sacrossantos limites de sua especialidade. Tendo o cuidado de evitar qualquer transposição apressada, a professora de história social na Universidade de Avignon recusa a lógica do "perigo certeiro" antes da revolução de Pasteur, já que até lá "quase tudo é risco".
Para se convencer disso, basta acompanhar a autora quando estuda os regulamentos medievais dos açougues. O apaixonante estudo da tabela de Mirepoix permite traçar os contornos das proibições alimentares, estabelecer o consumo de carne fresca (carneiro, boi e porco), descobrir que controles sanitários determinam a qualidade das carnes... e avaliar a parte que a fantasia exerce na representação do contágio entre o animal e o homem.
A pesquisa confirma a estreita vigilância de uma corporação que deve assegurar o frescor da carne e responder ao triplo tabu do sangue derramado, do temor da lepra e do risco de impureza se os onívoros se alimentarem de carne animal; daí a suspeita tenaz em relação ao porco, cujo nome serve paradoxalmente para discriminar os judeus, que o classificam entre suas proibições alimentares.
A carne não é o único alimento questionado: as novas plantas preocupam, e as recomendações científicas nada podem contra a prevenção em relação ao desconhecido. As principais vítimas são a batata e o chocolate. Mas aí é preciso falar em aversão, mais que medo.
A fábula assustadora dá lugar no século 19 aos requisitos higienistas que pesam ainda mais porque a imprensa, novo poder, dita e amplia os temores, na época ainda frequentemente mudos.
Ao oferecer uma perspectiva tão nova quanto convincente, Ferrières traz uma chave capital para compreender os desafios contemporâneos. E, ao fazê-lo, cruza as heranças historiográficas com inteligência e uma rara pertinência.


Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


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