São Paulo, domingo, 10 de novembro de 2002

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Ponto de fuga

Os espíritos do vento

Divulgação
O diretor John Woo (dir.) com Nicolas Cage durante as filmagens de "Códigos de Honra", que está em cartaz em SP


John Woo transfigurou, em seus filmes, a violência dos combates e dos conflitos. Inflou o espetáculo da luta com efeitos quase metafóricos. Criou uma ênfase coreográfica, em que a brutalidade tende para abstração. Cineasta barroco, já disseram, ou maneirista. Nesse sentido, "Códigos de Honra" ("Windtalkers") toma outro caminho. O grafismo lírico dos gestos e dos projéteis está ausente ali e dá lugar a um tom mais contido.
As batalhas, no entanto, conservam um sentido do espetáculo não muito fácil de explicitar. "O Resgate do Soldado Ryan", de Spielberg, assentou-se em um naturalismo arrepiante, em que o espectador se atordoava ao ver-se atirado no meio da carnificina.
"Códigos de Honra", ao contrário, narra. As cenas comovem e convencem, mas as imagens como que se transformam em língua e fazem surgir, primeiro, uma compreensão intelectiva que distancia levemente o visível. Esta fissura areja as sequências, retirando todo o peso do tecido narrativo.
John Woo não sublinha. Mal esboça situações sentimentais e logo as desmonta: o romance do protagonista se esgarça e termina antes mesmo de ter começado; o dilema central opondo afetos fraternos e desobediência às ordens, tão caro ao cineasta, dilui-se aos poucos. As batalhas mostradas são como o eco de uma outra, pressuposta, primordial, vivida na memória do protagonista. Assim, o "buddy movie" modifica-se. Questões que se encontravam em segundo plano vão se ramificando numa capilaridade, tênue à primeira vista, para recobrir aquilo que surgia, no início, como núcleo principal.
Agonia e glória - "Códigos de Honra" não duvida do heroísmo. Nesse sentido, ele é capaz de suscitar antigas emoções, presentes nos filmes de guerra de outros tempos, em que a candura fecundava a ação.
Porém "Códigos de Honra" enxerta em si o índio, personagem de outro gênero, o western. Como a língua difícil dos navajos podia ser empregada, na Segunda Guerra Mundial, para códigos indecifráveis, foi preciso que navajos se tornassem "marines". Ou seja, uma minoria desfavorecida se encontrava entre americanos brancos, mas isolada num modo "instrumental", utilitário, descartável, por assim dizer.
No filme, o encontro das diferenças, os afetos que brotam, os silêncios implícitos, tudo vai, aos poucos, conduzindo para uma fusão não autorizada de culturas.
Joe Enders (Nicolas Cage) é descendente de imigrantes italianos, cuja família, católica, reduziu o sobrenome, transformado-o para melhor inserir-se numa sociedade anglo-saxônica e protestante. Ben Yazee, o navajo (Adam Beach), deu a seu filho o nome de George Washington.
Impõem-se mais fortes, contudo, as crenças originais, as orações, os ritos, os afetos que brotam das circunstâncias. Eles se fundem para além da guerra, sentida, apesar de todo o seu horror, como episódica: uma situação destinada a adquirir significado muito relativo com o passar da história.
Guerra que é, também, o momento decisivo para quem se encontra nos campos de batalha, que são campos de morte.
Mme. Bovary - "The Good Girl" ("Por um Sentido na Vida"), filme de Miguel Arteta, jovem diretor porto-riquenho, faz emergir comportamentos involuntariamente sórdidos em vidas estreitas, abatidas pelo tédio e pela falta de horizontes. O lugar das angústias é um hipermercado numa cidadezinha do Texas. A boa moça em questão não resiste ao adultério, mas não tem forças para cortar laços. Todos os personagens são simpáticos, o que torna o espectador um cúmplice na sordidez.
Mrs. Pitt - A estrela de "Por um Sentido na Vida" é Jennifer Aniston, que ganha US$ 1 milhão por episódio da série "Friends". Isso não satisfez suas ambições de atriz. Para mostrar do que é capaz, embarcou nessa produção modesta, mas intelectual e complexa. Está admirável, num filme muito sutil que a crítica e o público trataram com indiferença. A publicidade, querendo se beneficiar do sucesso de "Friends", classificou "Por um Sentido na Vida" como "comédia sentimental". Nem sentimental nem comédia: é um olhar agudo e amargo sobre os vínculos humanos num mundo mesquinho.

Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br



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