São Paulo, domingo, 10 de dezembro de 2006

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Relaxamento transatlântico

Miscigenação no Brasil deriva de uma moral sexual genuinamente africana, e não só da plasticidade dos portugueses

MANOLO FLORENTINO
COLUNISTA DA FOLHA

Há 30 anos, Nagisa Oshima abalava Cannes com o seu polêmico "O Império dos Sentidos".
Filme erótico mas sobretudo político, dele afirmou o cineasta japonês tratar-se de uma homenagem a certa forma de amar em franca extinção no Japão contemporâneo. Que seja.
Mas os usos do sexo que hoje igualmente não passam de privilégio de aldeotas perdidas nos confins da África certamente nos são mais afeitos do que os que ora fenecem no Japão. Sabe-se que, para grande parte das sociedades ditas primitivas, o sexo era tido como grande depurador social. Por seu intermédio, as comunidades voltavam à normalidade após a morte de algum notável ou quando do traslado das aldeias.
Daí as periódicas festas purificadoras, momentos de culto à fertilidade e de relaxamento das normas, ocasiões em que os casados eram convidados a copular e trocar de parceiros em público e, os adolescentes, incentivados ao exercício do "coitus interruptus". Não era diferente entre os bantus da África meridional assim como, de resto, na maior parte das sociedades bantus tradicionais.
Em pelo menos uma delas, a dos sotos do sul, o sexo também era considerado um ato de boa educação, devendo o marido oferecer a sua mulher, que jamais se ofendia, aos seus irmãos de idade como prova de afetuoso acolhimento.
Na contramão do Ocidente europeu moderno, as expressões assumidas pela sexualidade bantu até a puberdade se encontravam menos encobertas pelo mistério e pela interdição culposa, quando menos porque a naturalidade com que os filhos viam os seus pais, parentes e amigos copulando guiava a sua aprendizagem nos assuntos de Eros. O corpo não era considerado uma "fonte de imundícies", conforme o postulado pela evangelização contra-reformista na América, remanescendo o incesto como severo tabu.
Ainda que os vendas proibissem qualquer jogo erótico na fase pré-pubere, o comportamento infantil era, em geral, objeto de grande indiferença por parte dos adultos. Assim, abria-se espaço para práticas como a masturbação pública ou privada, individual ou coletiva, além de outros jogos entre jovens pares hetero e homossexuais, de acordo com a clássica descrição do suíço Henrique Junod ("Usos e Costumes dos Bantus") no século 19.

Festa para a puberdade
Entre diversos povos, a menarca era acompanhada por festas para toda a comunidade e incluía interlocuções pedagógicas com os mais velhos, nas quais se ensinava aos jovens as formas de se conduzirem nos assuntos referentes ao sexo.
A chegada da puberdade era expressa no próprio corpo, seja por meio da circuncisão, entre os xhosas, thembus, bomvanas, suazis, lembas, ndebeles e tsongas, seja por meio da excisão parcial ou total do clitóris, prática comum entre os sotos do sul, lobedus, tsongas e tsuanas.
A puberdade podia reiterar uma etapa de liberdade sexual apenas encontrada entre certas camadas urbanas de cidades ocidentais contemporâneas. Sua chegada podia implicar a simultânea efetivação de matrimônios arranjados, embora não raro a puberdade incentivasse os adolescentes a desfrutarem ainda mais plenamente dos prazeres eróticos, com a absoluta complacência dos pais. A única condição era que as moças não engravidassem, pois a prenhez comprometia as futuras negociações matrimoniais entre famílias, clãs e subclãs -ou seja, a virgindade feminina não era atributo necessariamente requerido por todos os bantus.
Tingani ou ukujuma entre os suazis, gunguissa entre os tsongas, ukuhlobonga entre os zulus e intlombe entre os xhosas -eis alguns dos nomes assumidos pelos jogos sexuais na adolescência, realizados de acordo com o modelo do "coitus interruptus".
Após as usuais práticas de sedução, que podiam incluir mostrar as tatuagens e o tamanho dos lábios vaginais, o rapaz e a moça se dirigiam à palhoça mais próxima ou a rincões perdidos das florestas para, não raro sob a discreta vigilância de alguns companheiros, entregarem-se a seus intercursos.
O ato sexual pleno, com defloramento e ejaculação, era na maioria das vezes substituído por masturbações mútuas, embora nem todos os povos o proibissem -desde que não resultasse em gravidez, repita-se, evitada mediante ejaculações externas e por meio do uso de ervas contraceptivas ou de tampões especiais.
Mesmo onde o virgo intacto representasse a norma, mil e um artifícios driblavam-na -sabe-se que moças chopes, do sul de Moçambique, burlavam o tabu por meio da utilização de frutos que apertavam os lábios vaginais e expeliam líquidos vermelhos.

Inspeção da virgindade
A etnologia não sugere que a liberdade sexual entre os jovens bantus chegasse ao nível da desfrutada nas ilhas Trobriand, tão bem descritas por Bronislaw Malinowski no início do século 20. As mães vendas, por exemplo, cripto-repressoras, periodicamente verificavam se suas filhas permaneciam virgens -a inspeção era realizada pela mais velha aldeã e, confirmada a virgindade, a menina era carregada em triunfo pelas vielas nas costas das mulheres adultas.
Entre os xhosas, ainda quando os jogos amorosos fossem incentivados pelos próprios jovens, eles mesmos se incumbiam de controlá-los, não permitindo exclusividade sexual entre os adolescentes, o que sempre tornava públicos os casos de ausência de hímen ou de gravidez. Os xhosas também castigavam as solteiras grávidas, determinando que elas jamais poderiam casar, o que as condenava ao eterno desterro para o mundo das inkazanas (rameiras).
A relativa liberdade sexual da adolescência bantu terminava com o matrimônio, sobretudo para as mulheres. Mas, se é certo que o menino é o suporte do homem -e o tráfico atlântico, o suporte da presença africana no Brasil-, não é implausível que, por caminhos muitas vezes enviesados, tenhamos herdado um bom bocado da concepção bantu sobre o lugar do sexo.
A hipótese é simples, embora de difícil comprovação: nossa miscigenação deriva não apenas da plasticidade que Gilberto Freyre capturou no português, mas igualmente de uma moral sexual genuinamente africana que, longe de ver-se pulverizada pela depravação própria do cativeiro -como queria o mestre de Apipucos-, contribuiu para o relaxamento dos costumes que tanto chamou a atenção de cronistas e viajantes que passaram pela América portuguesa.


MANOLO FLORENTINO é professor no departamento de história da Universidade Federal do Rio de Janeiro e autor de "Tráfico, Cativeiro e Liberdade" (ed. Civilização Brasileira). Escreve na seção "Autores", do Mais!.


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