São Paulo, domingo, 10 de dezembro de 2006

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Artaud, um mito em revisão

Mostra e livros defendem loucura do artista como forma de alienação e rechaçam interpretações anarquistas

PATRICK KÉCHICHIAN

Chegou a hora de abandonar diversas das imagens vinculadas ao nome de Antonin Artaud. Não para que esse nome venha a ser reintroduzido na história da literatura bem-pensante do século 20, mas para desemaranhar a confusão entre o verdadeiro poder de subversão de seu trabalho e o mito que este terminou por gerar.
Um dos efeitos dessa fascinação foi não perceber a loucura de Artaud, acima de tudo, como forma de alienação e sofrimento, mas como puro poder de criação e anarquia. A extraordinária singularidade de Artaud se viu, por isso, diluída de maneira severa, em prol da generalização sem contornos e também dos grupos que dela se apropriaram: os praticantes da antipsiquiatria, os rebeldes do Maio de 68 ou os poetas da geração beat.
Chegou a hora de avaliar essa perturbação de maneira consciente, deixando de lado o fanatismo e as imprecações que imitam de maneira estéril a atitude do poeta. Em relativamente pouco tempo, com brilhantismo incomparável, Artaud propôs como necessidade absoluta a integração entre seu eu -ou os seres em geral- e a literatura.
O primeiro ato foi sua correspondência com Jacques Rivière, diretor-geral da "Nouvelle Revue Française", publicada em 1924 -testemunho de impotência e prova de uma "lucidez absolutamente anormal".

Modelo de lucidez
Todos os escritos que viriam posteriormente, quer fossem marcados pela loucura, quer não, seriam invariavelmente exemplos da mesma terrível lucidez. Quando da publicação de "L'Ombilic des Limbes" [O Umbílico dos Limbos], em 1925, Roger Vitrac já sublinhava o fato de que "a cadeira jamais esteve postada tão longe da exploração do pensamento".
Uma avaliação que se aplica a toda a obra de Artaud. A notável edição das obras coligidas do escritor, em 2004 [ed. Gallimard], com edição de Evelyne Grossman, permitiu que retornássemos aos livros e aos textos em si, esclarecidos por uma seleção ponderada de cartas e documentos.
A exposição da Biblioteca Nacional francesa, em Paris, sobre Artaud e a grande biografia de Florence de Mèredieu ("C'Était Antonin Artaud", Isto Era Antonin Artaud, ed. Fayard, 1.090 págs., 35, R$ 101) constituem as outras peças desse processo que poderia ser definido como "reabilitação".
A elas devemos acrescentar um ensaio inédito e inacabado de Paule Thévenin ("Antonin Artaud - Fin de l'Ère Chrétienne", O Fim da Era Cristã, ed. Ligne/Léo Scheer, 300 págs., 19, R$ 55).

Eletrochoques
Thévenin aborda a questão do relacionamento entre Artaud, o surrealismo e André Breton. Mèridieu se baseia no trabalho de Michel Foucault para analisar as relações entre Artaud, a psiquiatria e as instituições de saúde mental bem como o papel dos psiquiatras e de suas mulheres!
Desde os 17 anos de idade, em 1914, em Marselha, o jovem Artaud começou a sentir os primeiros sintomas de sua doença. "A catástrofe da guerra correspondeu, para mim, a uma catástrofe íntima do ser, a uma desorientação da sexualidade", explicaria o poeta em 1945, ao final de uma nova guerra passada em hospícios, em Ville-Evrard e Rodez, onde recebeu tratamento por eletrochoque.
Foi em sua enfermidade que Artaud lançou "feitiços" e "sortilégios" contra diversas pessoas, entre as quais "Hitler, chanceler do Reich", para exorcizar as maldições que elas representavam. O contexto familiar (mais positivo do que se costumava retratar) e as afiliações literárias de Artaud são analisados com igual atenção aos detalhes. Nos dois casos, não se pode afirmar que Artaud tenha surgido do nada. Um dos méritos do trabalho de Mèredieu é garantir que nos lembremos disso. E essa constatação em nada diminui a estatura do escritor.


A íntegra deste texto saiu no "Le Monde".
Tradução de Paulo Migliacci.

ONDE ENCOMENDAR - Livros em francês podem ser encomendados no site www.alapage.com

NO BRASIL - Traduções de Artaud disponíveis: "O Teatro e Seu Duplo" (ed. Martins Fontes), "Linguagem e Vida" (ed. Perspectiva) e "Van Gogh -O Suicida da Sociedade" (ed. José Olympio).


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