São Paulo, domingo, 11 de janeiro de 2004

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A difusão de um clássico

Estudos de "Hannah Arendt - Pensamento, Persuasão e Poder", de Celso Lafer, mostram a centralidade do conceito de liberdade na reflexão da filósofa alemã

Newton Bignotto
especial para a Folha

A primeira publicação de "Hannah Arendt - Pensamento, Persuasão e Poder", de Celso Lafer, data de 1979. Arendt era então uma filósofa praticamente desconhecida no Brasil, citada apenas por uns poucos intelectuais, que haviam tomado contato com seus escritos em inglês ou por meio das traduções de algumas de suas obras, empreendidas graças aos esforços do próprio Lafer junto aos editores brasileiros. Os capítulos publicados na primeira versão, correspondentes à primeira parte da atual, fornecem ao leitor um panorama amplo e claro do percurso da pensadora. Tomando como ponto de apoio seu conhecimento dos escritos de Arendt (1906-1975) e dados colhidos em contatos pessoais, o autor percorre os caminhos que levaram a filósofa das universidades alemãs do começo do século 20 aos campi americanos com clareza e rigor.

Tradição filosófica
O ponto alto dessa parte do livro está no fato de que Lafer soube expor os aspectos fortes do pensamento arendtiano conservando o frescor de suas relações com a tradição filosófica na qual ela foi formada e o vigor de sua interrogação sobre seu tempo. Ao insistir no papel que o conceito de liberdade tem na filosofia de Arendt, ele ofereceu ao leitor uma chave para a compreensão de um percurso que nem sempre é fácil de discernir. Essa chave era essencial à época, sobretudo porque, nos quadros do acirrado debate ideológico que dominava os confrontos de intelectuais no Brasil, o pensamento de Arendt parecia estranho, ou mesmo sem lugar. Difícil de ser apreendida dentro dos muitos "ismos" em voga, ela corria o risco de ser rejeitada por não pertencer a nenhum dos campos, embora muitos insistissem em classificá-la como uma pensadora conservadora. Lafer recusa todos os rótulos e mostra que o essencial da trajetória teórica de Arendt é o fato de que, ao recuperar a dimensão política da liberdade, ela abriu as portas para uma reflexão inovadora sobre a ação e a participação no mundo público. A segunda parte é composta por textos escritos nos últimos anos. A linguagem permanece clara e direta, mas o leitor pode se decepcionar com as repetições, como quando são analisados os critérios segundo os quais a pensadora pode ser considerada um clássico do século 20. Escritos em circunstâncias diversas, os capítulos nem sempre servem para introduzir o leitor nos caminhos principais da obra da autora, embora alguns deles toquem em temas importantes, como é o caso dos direitos humanos. Ao final do volume o autor lista não apenas as traduções das obras de Arendt para o português, mas também as obras consagradas a ela em nossa língua. Pena que esses textos, assim como outros importantes comentários, como é o caso dos escritos de Taminiaux, sejam pouco utilizados ao longo do livro. O recurso a essas fontes enriqueceria em muito a segunda parte, sobretudo diante das profundas mudanças ocorridas no panorama filosófico nacional e internacional nos últimos anos e que permitem uma nova avaliação das contribuições da pensadora.

Arendt x Berlin
As referências autobiográficas da nova edição são saborosas e completam aquelas da primeira parte. É bastante instigante o capítulo sobre a relação de Arendt com Isaiah Berlin, um pensador liberal, que declarava abertamente não gostar da filósofa. Lafer escolhe com propriedade o tema do juízo em sua formulação kantiana para mostrar um traço de união entre os dois pensadores, abrindo com isso uma via diferente para a interpretação de alguns aspectos da relação da pensadora com os meios intelectuais que a acolheram.
No contexto atual dos debates sobre a natureza das sociedades políticas, teria sido produtivo mostrar também as profundas diferenças que os separam. Ao tomar dois escritores do campo democrático, pode o leitor servir-se de um antagonismo conhecido para esclarecer alguns traços essenciais da oposição entre liberais e republicanos. A dificuldade de classificar Arendt sentida anos atrás continua, mas a exposição de suas filiações, assim como dos caminhos que descortinou para além de seus círculos imediatos, é uma tarefa importante para os que se ocupam com a difusão da obra da pensadora.
Decorridos mais de 20 anos, a publicação de uma segunda edição do livro é oportuna, uma vez que serve até hoje como uma boa introdução ao pensamento arendtiano.


Newton Bignotto é professor de filosofia política na Universidade Federal de Minas Gerais e autor de, entre outros, "O Tirano e a Cidade" (Discurso Editorial) e "Origens do Republicanismo Moderno" (Editora da UFMG).


Hannah Arendt - Pensamento, Persuasão e Poder
197 págs., R$ 19,50 de Celso Lafer. Ed. Paz e Terra (r. do Triunfo, 177, CEP 01212-010, SP, tel. 0/xx/11/3337-8399).



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