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+ música
A versatilidade da missa
Enquanto a cantata
domina o cenário
durante o barroco
e sucumbe
com o classicismo,
a missa, que impera
no Renascimento,
se adapta a várias
mudanças de gosto
e chega até
a modernidade
Rogério Cezar de Cerqueira Leite
do Conselho Editorial
A natureza dispõe de duas estratégias básicas para a sobrevivência
das espécies. A especialização e,
alternativamente, a adaptabilidade. No primeiro caso, a especialização
aumenta a eficiência da espécie para
atuar em um meio ambiente específico,
mas pode comprometer a sua sobrevivência quando o ambiente muda. No segundo, a eficiência da espécie é reduzida,
porém, havendo adaptação fácil à mudanças do meio, a espécie tem maior
probabilidade de sobrevivência. A missa,
como forma musical, é a demonstração
extrema da segunda estratégia na história da música, enquanto a cantata é, talvez, o melhor exemplo da primeira.
A missa imperou absoluta durante a
baixa Idade Média, quando se valeu da
monódia, ou seja, de uma única voz. Foi
o período em que o canto gregoriano era
dominante. Nos séculos 11 e 12 deu a
missa os primeiros testemunhos dessa
adaptabilidade ao incorporar as formas
primitivas da polifonia. Em seguida, derrota espetacularmente a paganização decorrente do renascentismo, novamente
usando como estratagema a apropriação
de elementos musicais diversos que
eram anteriormente proscritos ou condenáveis, tais como a polifonia livre (ars
nova), o uso de melodias populares, o
apoio de instrumentos etc. Assim, durante todo o extenso período que se convencionou chamar de Renascimento e
que se estende desde começos do século
15 até o despontar do 17, a missa continua imperando, senão absoluta, pelo
menos como forma dominante na música ocidental.
Todavia é nesse último momento, no
nascedouro do barroco, que a missa vai
sofrer seu primeiro grande revés. Olhemos a rica produção de Monteverdi
(1567-1643), o primeiro grande compositor do barroco. São mais de 60 composições litúrgicas, nove livros de madrigais, várias óperas (das quais apenas três
sobrevivem) e apenas duas missas, convencionais e pouco convincentes. Frescobaldi (1583-1643), com uma obra tão
extensa quanto a de Monteverdi, também só escreveu duas missas. Cavali,
(1602-1676), prolífero sucessor de Monteverdi, é ainda mais contido, com apenas uma missa. Corelli se abstém de toda
e qualquer produção vocal. Vivaldi, que
compôs tantas óperas, e tão inspirada
música litúrgica, não produz uma única
missa. Alessandro Scarlatti pode parecer
uma exceção, pois escreveu cerca de dez
missas. Entretanto essa é uma parcela irrisória se comparada com a sua produção global. Basta mencionar suas 600
cantatas, profanas e sacras. E seu quase
tão prolífero filho, Domênico Scarlatti,
escreve apenas uma missa (há notícias
de uma segunda, porém sem nenhuma
confirmação).
Na Alemanha, a situação ainda é pior,
pois o luteranismo não simpatiza com a
missa, embora não a proíba explicitamente. Schütz (1585-1615) e Buxtehude
não escrevem uma única missa. Olhando
o catálogo das obras de Teleman, o leitor
desavisado pode pensar que teria escrito
várias missas. São essas obras, entretanto, em sua maioria, apenas "corais" sobre versos de salmos. Por outro lado, Teleman compôs mais de 2.000 cantatas.
Biber na Áustria católica é um dos poucos que compõem um número expressivo de missas. São seis ao todo, incluídas
aquelas denominadas "Bruxelensis" e
"Saliburgensis", recentemente a ele atribuídas.
Na França apenas Charpentier -que
entre 450 obras litúrgicas incluiu oito
missas- deu a esse gênero maior atenção. Rameau e Lully não escreveram
uma única missa. Campra compôs duas,
e De Lalande uma única. Couperin escreveu suas duas missas para órgão.
Muitos argumentarão, por certo, que a
obra prima de Bach é sua "Missa em Si".
Todavia se trata de uma obra de conveniência: uma missa "católica" produzida
por um compositor luterano que buscava com isso alcançar certos favores. As
missas luteranas de Bach, quatro ao todo, são missas breves -apenas o
"Kyrie" e o "Glória"-, montadas integralmente com movimentos anteriores
de cantatas. E, no último gênero, Bach
compôs cerca de 250 obras. Ao final do
barroco, a missa parecia, pois, condenada à extinção.
Por outro lado, a cantata, que nascia
com o próprio período barroco e chegava rapidamente a uma exuberância inesperada, surge modestamente como uma
forma secular muito simples. A ópera
exige um esforço enorme não somente
para ser composta, como também para a
apresentação. A cantata nasce assim modesta, de dimensões limitadas, uma voz e
baixo contínuo. Grandi e Rossi, sucessores de Monteverdi, são os primeiros a
usar o formato. O madrigal e o moteto,
fórmulas polifônicas complexas, não somente exigiam muito dos interpretes e
dos compositores, como eram de difícil
acesso ao público em geral.
Uma fórmula simples, a alternância
entre recitativos ou ariosos e árias, era o
que a ópera mostrava como adequada ao
gosto do público da época. A cantata é filha menor da ópera. E o sucesso foi
imenso. Na Itália, com exceção do ranzinza Corelli, nenhum compositor deixou de escrever cantatas. Na Alemanha,
a cantata veio ocupar o espaço central da
liturgia luterana. Apenas a França resistiu. E isso ocorreu apenas por causa da
eterna luta travada contra a italianização
da música francesa. Assim mesmo, muitos foram os compositores para os quais
o grande moteto francês não suplantou a
cantata.
Mas eis que, ao fim do barroco, tão rapidamente como ascendeu, declina a
cantata. Quase nada é composto nesse
formato durante o classicismo. As poucas composições que utilizam essa denominação, tanto durante o classicismo
quanto no período moderno (romantismo aqui incluído), o fazem por falta de
vocabulário adequado, tão somente.
A cantata não resiste à homofonia que
durante o classicismo surge como conciliação entre polifonia e monódia, enquanto a missa se revigora incorporando
essa fórmula nascente. Haydn compõe
14 missas. De Mozart, incluído o famoso
"Requiem", são 18. As duas únicas obras
litúrgicas de Beethoven são missas.
Schubert nos deixa seis missas completas e inúmeros fragmentos. O moderno
Bruckner escreve cinco missas, incluindo o "Requiem". O "Requiem" de
Brahms não pode ser classificado como
uma missa, a não ser pelo seu conteúdo
subjetivo, para não dizer espiritual. E até
do nosso conturbado mundo musical da
modernidade, compositores, os mais diversos, recorrem à missa como forma
necessária de expressão. Janaceck, Stravinsky, Messiaen, Britten, Panderecki,
Pärt, Dusapin etc. são exemplos que
mostram que a missa ainda não está
morta.
Fica pois demonstrado que, enquanto
a cantata, que dominou o cenário musical durante o barroco, reflete uma estratégia estilística eficiente para a cultura
aburguesada pós-Renascimento e sucumbe com o classicismo, a missa, valendo-se de uma misteriosa versatilidade, se
adapta a qualquer mudança de gosto (diríamos hoje mercado?), seja por incorporação dos diversos elementos musicais exógenos à missa que viessem a
ocorrer, seja pela progressiva adaptação
dos próprios recursos retóricos a novas
demandas. Mostra assim a missa ter sido
concebida com uma eficiente adaptabilidade que nenhum outro gênero musical
mostrou, nem mesmo a ópera.
Rogério Cezar de Cerqueira Leite é físico, professor emérito da Universidade Estadual de Campinas e membro do Conselho Editorial da Folha.
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