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Ponto de fuga
Pequenos e grandes
Jorge Coli
especial para a Folha
Antoine Seel escreve, a respeito de "Mystic River", filme dirigido por Clint Eastwood e comentado nesta coluna há três domingos:
"O final de "Mystic River" intriga: o gesto de Kevin Bacon a Sean Penn, mas também o olhar trocado pelos
dois homens. Olhar em que a inquietação cede diante
da cumplicidade e do alívio. Alívio por estarem livres do
terceiro, do doente, do infectado. Alívio por livrarem-se
da verdade perturbadora demais e por poderem fincar-se bem retos, nas duas margens simétricas que enquadram o fluxo social (como os dois velhos cúmplices do
western; os dois fora-da-lei, bandido e xerife, não importa).
Além disso, os dois homens reencontraram suas mulheres, ou antes, essas mulheres encontraram ou revelaram suas palavras. Ao falarem, os dois casais estão, de
agora em diante, fora do alcance do mundo da infância.
O mundo da infância, no filme, é o mundo unissex dos
meninos, pequenos ou grandes. É também o mundo da
violência escusa que o desejo implica. Não se vê essa
violência, a não ser sob a forma do cinema de vampiros,
com o filme de Carpenter, que aparece na televisão de
Tim Robbins quando ele desvenda a verdade à sua mulher. Mas é possível seguir seus resultados, o cadáver
destruído ou o rosto abatido de Tim Robbins.
A violência dos adultos é diferente. O último rosto de
Tim Robbins é mostrado com força marcada. Executado por um chefe de bando, como as vítimas sumárias
dos westerns, Tim Robbins é mais do que comovente
diante da morte. Mas sua execução é também uma implosão, pois ele aceita, enfim, uma morte que já estava
dentro de si".
Aurora - "Deslocamentos", de Nair Kremer, publicado
pela Edusp, é, num certo sentido, um livro impossível.
Parte de atividades que autora estimulou entre jovens
da periferia paulistana, despertando-os para a arte. A
pedagogia pela arte, muitas vezes, esbarra em métodos
e em sistemas meio secos. Ora, o livro, no seu fundo verdadeiro, é uma negação de tudo isso. Nair Kremer inventa, de maneira um pouco errática e nada metódica,
certos exercícios. É muito claro que sua presença, seu
modo de ser, são capitais. É ela quem faz desabrochar,
com o talento desses jovens, obras extraordinárias. Se
eles continuarão artistas, é uma outra história, que depende de trajetórias incertas; de ocasiões, possíveis, mas
difíceis; de vontades firmes.
Por essas atividades, conseguiram, num período intenso, transformarem-se em artistas de fato. Não se trata de terapia, nem "exercício de criatividade". É arte
mesmo, que Nair Kremer fez brotar, por empatia, como
por uma varinha de condão, e não se explica. A grande
força do livro encontra-se nas fotos, no testemunho
desse trabalho. Diversos textos formam tentativas de
entender o milagre, mas ele permanece insondável. O
essencial é que continue ocorrendo.
Sina - Não é difícil encontrar, nos educadores que se
servem de atividades artísticas, uma convicção subjacente: a arte seria um instrumento terapêutico, capaz de
melhorar as relações entre os indivíduos e o coletivo. Há
também, muito frequente e tácita, a crença de que ela se
constituiria num meio de se conhecer a si próprio, capaz de suscitar o desenvolvimento pessoal, de indicar o
caminho para uma plenitude harmoniosa. Ora, sabemos, pelo menos desde os românticos, que arte, arte de
fato, pode ser um peso e uma maldição para os criadores, portas para a angústia a mais terrível. Van Gogh,
Pollock ou Basquiat, entre tantos, demonstraram que
ser artista significou pôr a vida em risco.
Areias - Falta uma história e sobra xaropada musical.
Sobram também bons sentimentos ecológicos. Não se
supõe que seja exatamente um filme capaz de atrair um
leitor do Mais!. "Acquaria", de Flávia Moraes, é cinema
que se vê como quem folheia um álbum de imagens. No
caso, elas são belas e poéticas, algumas extraordinárias,
como a dos peixes no mar de areia. A dupla Sandy e Júnior atua de modo sensível, sob uma direção de atores
presente e justa. A relação entre os personagens vibra,
discreta, e é outra bela coisa desse filme.
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br
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