São Paulo, domingo, 11 de janeiro de 2004

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Ponto de fuga

Pequenos e grandes

Jorge Coli
especial para a Folha

Antoine Seel escreve, a respeito de "Mystic River", filme dirigido por Clint Eastwood e comentado nesta coluna há três domingos:
"O final de "Mystic River" intriga: o gesto de Kevin Bacon a Sean Penn, mas também o olhar trocado pelos dois homens. Olhar em que a inquietação cede diante da cumplicidade e do alívio. Alívio por estarem livres do terceiro, do doente, do infectado. Alívio por livrarem-se da verdade perturbadora demais e por poderem fincar-se bem retos, nas duas margens simétricas que enquadram o fluxo social (como os dois velhos cúmplices do western; os dois fora-da-lei, bandido e xerife, não importa).
Além disso, os dois homens reencontraram suas mulheres, ou antes, essas mulheres encontraram ou revelaram suas palavras. Ao falarem, os dois casais estão, de agora em diante, fora do alcance do mundo da infância. O mundo da infância, no filme, é o mundo unissex dos meninos, pequenos ou grandes. É também o mundo da violência escusa que o desejo implica. Não se vê essa violência, a não ser sob a forma do cinema de vampiros, com o filme de Carpenter, que aparece na televisão de Tim Robbins quando ele desvenda a verdade à sua mulher. Mas é possível seguir seus resultados, o cadáver destruído ou o rosto abatido de Tim Robbins.
A violência dos adultos é diferente. O último rosto de Tim Robbins é mostrado com força marcada. Executado por um chefe de bando, como as vítimas sumárias dos westerns, Tim Robbins é mais do que comovente diante da morte. Mas sua execução é também uma implosão, pois ele aceita, enfim, uma morte que já estava dentro de si".

Aurora - "Deslocamentos", de Nair Kremer, publicado pela Edusp, é, num certo sentido, um livro impossível. Parte de atividades que autora estimulou entre jovens da periferia paulistana, despertando-os para a arte. A pedagogia pela arte, muitas vezes, esbarra em métodos e em sistemas meio secos. Ora, o livro, no seu fundo verdadeiro, é uma negação de tudo isso. Nair Kremer inventa, de maneira um pouco errática e nada metódica, certos exercícios. É muito claro que sua presença, seu modo de ser, são capitais. É ela quem faz desabrochar, com o talento desses jovens, obras extraordinárias. Se eles continuarão artistas, é uma outra história, que depende de trajetórias incertas; de ocasiões, possíveis, mas difíceis; de vontades firmes.
Por essas atividades, conseguiram, num período intenso, transformarem-se em artistas de fato. Não se trata de terapia, nem "exercício de criatividade". É arte mesmo, que Nair Kremer fez brotar, por empatia, como por uma varinha de condão, e não se explica. A grande força do livro encontra-se nas fotos, no testemunho desse trabalho. Diversos textos formam tentativas de entender o milagre, mas ele permanece insondável. O essencial é que continue ocorrendo.

Sina - Não é difícil encontrar, nos educadores que se servem de atividades artísticas, uma convicção subjacente: a arte seria um instrumento terapêutico, capaz de melhorar as relações entre os indivíduos e o coletivo. Há também, muito frequente e tácita, a crença de que ela se constituiria num meio de se conhecer a si próprio, capaz de suscitar o desenvolvimento pessoal, de indicar o caminho para uma plenitude harmoniosa. Ora, sabemos, pelo menos desde os românticos, que arte, arte de fato, pode ser um peso e uma maldição para os criadores, portas para a angústia a mais terrível. Van Gogh, Pollock ou Basquiat, entre tantos, demonstraram que ser artista significou pôr a vida em risco.

Areias - Falta uma história e sobra xaropada musical. Sobram também bons sentimentos ecológicos. Não se supõe que seja exatamente um filme capaz de atrair um leitor do Mais!. "Acquaria", de Flávia Moraes, é cinema que se vê como quem folheia um álbum de imagens. No caso, elas são belas e poéticas, algumas extraordinárias, como a dos peixes no mar de areia. A dupla Sandy e Júnior atua de modo sensível, sob uma direção de atores presente e justa. A relação entre os personagens vibra, discreta, e é outra bela coisa desse filme.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


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