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A história ignorada dos EUA
Estudo dos vícios e das virtudes da superpotência é central para entender os dilemas das democracias
BORIS FAUSTO
COLUNISTA DA FOLHA
A tradição historiográfica e o ensino
acadêmico das histórias moderna e
contemporânea em
nosso país, por muitas décadas,
tiveram como referência básica
a França. Essa característica se
explica pelo peso da cultura
francesa em geral, pela presença de professores franceses de
qualidade, nos anos 1930 e
1940, na USP, mas também por
razões ideológicas.
Em tempos de utopias revolucionárias, a história da França, a partir da Revolução Francesa, parecia engendrar uma
seqüência de temas, de tramas,
de dilemas e de personagens
que chegavam a nossos dias.
O Terror representaria uma
necessidade histórica ou um
"excesso revolucionário" de
conseqüências funestas? A revolução era um fenômeno da
luta de classes?
Os "sans-cullotes" poderiam
ter chegado ao poder, não fossem os limites da ação dos jacobinos? Robespierre era um modelo muito superior a Danton
ou vice-versa? Napoleão teria
sido um traidor da revolução
ou um déspota que, bem ou
mal, estendera os princípios
revolucionários ao continente
europeu?
Controvérsias
As questões eram e ainda são
de importância. Não por acaso
continuam a ser objeto de longas e apaixonadas controvérsias, sobretudo para os historiadores franceses. Mas a polaridade do caso francês e sua irradiação no mundo deixaram
em segundo plano outras realidades históricas no mínimo
igualmente significativas.
O quadro começou a ser alterado, em anos mais recentes,
com os novos rumos da historiografia e a valorização da história cultural, principalmente
pela via da microistória.
O prestígio da história cultural tem como paradigma o historiador inglês marxista E.P.
Thompson, cuja "Formação da
Classe Operária Inglesa" [ed.
Paz e Terra] é uma referência
fundamental entre nossos historiadores.
A microistória trouxe à cena
nomes hoje clássicos, como os
do norte-americano Robert
Darnton [de "Os Dentes Falsos
de George Washington"] e do
italiano Carlo Ginzburg [de "O
Queijo e os Vermes", ambos
traduzidos no Brasil pela Companhia das Letras].
Pais fundadores
Se em nossos meios o conhecimento da América Latina nos
estudos e nos programas de ensino ganhou relevância, o mesmo não se pode dizer dos EUA.
Há ali, é bem verdade, exceções individuais e de algumas
temáticas significativas: a do
processo imigratório e, principalmente, a do escravismo e
das relações raciais, propícias a
análises comparativas.
À medida que a opção democrática cresceu em muitos países, entre ventos e algumas
tempestades, a compreensão
de elementos-chave da história
norte-americana tornou-se cada vez mais essencial, inclusive
para os dilemas do presente.
As raízes de muitas questões
que afloram nos dias de hoje se
encontram nas idéias e controvérsias dos "pais fundadores"
(Washington, Jefferson, Madison, Hamilton, entre outros) da
democracia americana.
Assim a temática da construção institucional, dos direitos
individuais, da legitimidade das
formas de representação política, do desenho federalista, da
independência dos poderes etc.
Como é óbvio, nem tudo se
reduz à história das idéias, para
entender esse país que passou
de colônia de povoamento a potência hegemônica ao longo de
alguns séculos. Deixando de lado as grandes linhas e tomando-se um exemplo de um gênero tradicional, ou seja, a história biográfica, confirmamos
nossas carências.
Que sabemos de Abraham
Lincoln, a não ser sua postura
considerada intransigente contra a escravidão e sua morte
trágica, vítima de um fanático,
num teatro em Washington?
Entretanto o abolicionismo
de Lincoln deve ser mais bem
qualificado, sem que, com isso,
se pretenda arranhar sua extraordinária figura.
Por muitos anos, ele não foi
um abolicionista radical, tendo
defendido uma linha de coexistência das relações de trabalho
livre e escravo, respectivamente, no norte e no sul dos EUA.
O dever dos Estados livres
-ele acreditava- era de abster-se de tomar iniciativas, fossem elas pela legislação ou pela
guerra, que forçassem o fim da
escravidão, pois esta "morreria
de morte natural".
Questão de princípio
Foi a evolução dos acontecimentos, que inclui como fato
central a questão do regime de
trabalho nas regiões de fronteira do Oeste americano (Kansas,
Nebraska e outros Estados),
que desembocou na Guerra da
Secessão (1861-65) e no abolicionismo sem restrições assumido por Lincoln.
Por outro lado, há um ponto
extraordinário em sua carreira
que poucos conhecem. É sua
postura em relação à guerra
movida contra o México (1846-48), resultando na anexação do
Texas, da Califórnia e de outras
regiões.
Como mostra Richard Carwardine, em livro recente
("Lincoln - a Life of Purpose
and Power", Uma Vida de Propósito e Poder, ed. Random
House), Lincoln opôs-se resolutamente à guerra não apenas
por razões conjunturais mas
por questões de princípio.
Nos anos em que foi membro
do partido Whig, existente entre 1832 e 1856, se revelou um
opositor tenaz da "doutrina do
destino manifesto", que sustentava a inevitabilidade e a desejabilidade da expansão norte-americana.
De seu ponto de vista, os EUA
deveriam promover o ideal de
sua democracia como um
exemplo extraordinário aos outros países, e não adotar uma
política agressiva, com relação
aos seus vizinhos.
Esse exemplo, com ressonâncias contemporâneas, tem
um sentido muito significativo.
De fato, gostemos ou não do
"grande país do Norte", melhor
será conhecê-lo de perto, com
suas virtudes e seus problemas.
Até mesmo os críticos ferozes dos EUA se beneficiariam
desse conhecimento. Eles poderiam, assim, substituir os slogans vazios, tão fáceis de ser
utilizados, por idéias dignas de
discussão.
BORIS FAUSTO é historiador e preside o conselho acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura
Internacional), da USP. É autor de "A Revolução
de 1930" (Companhia das Letras).
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