São Paulo, domingo, 11 de fevereiro de 2007

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A história ignorada dos EUA

Estudo dos vícios e das virtudes da superpotência é central para entender os dilemas das democracias

BORIS FAUSTO
COLUNISTA DA FOLHA

A tradição historiográfica e o ensino acadêmico das histórias moderna e contemporânea em nosso país, por muitas décadas, tiveram como referência básica a França. Essa característica se explica pelo peso da cultura francesa em geral, pela presença de professores franceses de qualidade, nos anos 1930 e 1940, na USP, mas também por razões ideológicas.
Em tempos de utopias revolucionárias, a história da França, a partir da Revolução Francesa, parecia engendrar uma seqüência de temas, de tramas, de dilemas e de personagens que chegavam a nossos dias. O Terror representaria uma necessidade histórica ou um "excesso revolucionário" de conseqüências funestas? A revolução era um fenômeno da luta de classes?
Os "sans-cullotes" poderiam ter chegado ao poder, não fossem os limites da ação dos jacobinos? Robespierre era um modelo muito superior a Danton ou vice-versa? Napoleão teria sido um traidor da revolução ou um déspota que, bem ou mal, estendera os princípios revolucionários ao continente europeu?

Controvérsias
As questões eram e ainda são de importância. Não por acaso continuam a ser objeto de longas e apaixonadas controvérsias, sobretudo para os historiadores franceses. Mas a polaridade do caso francês e sua irradiação no mundo deixaram em segundo plano outras realidades históricas no mínimo igualmente significativas. O quadro começou a ser alterado, em anos mais recentes, com os novos rumos da historiografia e a valorização da história cultural, principalmente pela via da microistória.
O prestígio da história cultural tem como paradigma o historiador inglês marxista E.P. Thompson, cuja "Formação da Classe Operária Inglesa" [ed. Paz e Terra] é uma referência fundamental entre nossos historiadores. A microistória trouxe à cena nomes hoje clássicos, como os do norte-americano Robert Darnton [de "Os Dentes Falsos de George Washington"] e do italiano Carlo Ginzburg [de "O Queijo e os Vermes", ambos traduzidos no Brasil pela Companhia das Letras].

Pais fundadores
Se em nossos meios o conhecimento da América Latina nos estudos e nos programas de ensino ganhou relevância, o mesmo não se pode dizer dos EUA. Há ali, é bem verdade, exceções individuais e de algumas temáticas significativas: a do processo imigratório e, principalmente, a do escravismo e das relações raciais, propícias a análises comparativas.
À medida que a opção democrática cresceu em muitos países, entre ventos e algumas tempestades, a compreensão de elementos-chave da história norte-americana tornou-se cada vez mais essencial, inclusive para os dilemas do presente. As raízes de muitas questões que afloram nos dias de hoje se encontram nas idéias e controvérsias dos "pais fundadores" (Washington, Jefferson, Madison, Hamilton, entre outros) da democracia americana.
Assim a temática da construção institucional, dos direitos individuais, da legitimidade das formas de representação política, do desenho federalista, da independência dos poderes etc. Como é óbvio, nem tudo se reduz à história das idéias, para entender esse país que passou de colônia de povoamento a potência hegemônica ao longo de alguns séculos. Deixando de lado as grandes linhas e tomando-se um exemplo de um gênero tradicional, ou seja, a história biográfica, confirmamos nossas carências.
Que sabemos de Abraham Lincoln, a não ser sua postura considerada intransigente contra a escravidão e sua morte trágica, vítima de um fanático, num teatro em Washington? Entretanto o abolicionismo de Lincoln deve ser mais bem qualificado, sem que, com isso, se pretenda arranhar sua extraordinária figura. Por muitos anos, ele não foi um abolicionista radical, tendo defendido uma linha de coexistência das relações de trabalho livre e escravo, respectivamente, no norte e no sul dos EUA. O dever dos Estados livres -ele acreditava- era de abster-se de tomar iniciativas, fossem elas pela legislação ou pela guerra, que forçassem o fim da escravidão, pois esta "morreria de morte natural".

Questão de princípio
Foi a evolução dos acontecimentos, que inclui como fato central a questão do regime de trabalho nas regiões de fronteira do Oeste americano (Kansas, Nebraska e outros Estados), que desembocou na Guerra da Secessão (1861-65) e no abolicionismo sem restrições assumido por Lincoln. Por outro lado, há um ponto extraordinário em sua carreira que poucos conhecem. É sua postura em relação à guerra movida contra o México (1846-48), resultando na anexação do Texas, da Califórnia e de outras regiões.
Como mostra Richard Carwardine, em livro recente ("Lincoln - a Life of Purpose and Power", Uma Vida de Propósito e Poder, ed. Random House), Lincoln opôs-se resolutamente à guerra não apenas por razões conjunturais mas por questões de princípio. Nos anos em que foi membro do partido Whig, existente entre 1832 e 1856, se revelou um opositor tenaz da "doutrina do destino manifesto", que sustentava a inevitabilidade e a desejabilidade da expansão norte-americana. De seu ponto de vista, os EUA deveriam promover o ideal de sua democracia como um exemplo extraordinário aos outros países, e não adotar uma política agressiva, com relação aos seus vizinhos.
Esse exemplo, com ressonâncias contemporâneas, tem um sentido muito significativo. De fato, gostemos ou não do "grande país do Norte", melhor será conhecê-lo de perto, com suas virtudes e seus problemas. Até mesmo os críticos ferozes dos EUA se beneficiariam desse conhecimento. Eles poderiam, assim, substituir os slogans vazios, tão fáceis de ser utilizados, por idéias dignas de discussão.


BORIS FAUSTO é historiador e preside o conselho acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura Internacional), da USP. É autor de "A Revolução de 1930" (Companhia das Letras).


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