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+ Cultura
Museus à venda
Anúncios de filiais "caça-níqueis" do Louvre, nos Emirados Árabes, e do Hermitage, em Las Vegas, põem em xeque a vocação cultural das instituições
FRANÇOIS CACHIN
JEAN CLAIR
ROLAND RECHT
A
té recentemente, o
mundo dos museus
franceses era causa
de inveja mundial
devido ao nível excepcional de apoio que recebia
dos governos nacional e municipais do país.
Os EUA servem como exemplo contrastante, já que lá apenas um museu, o de Washington, é uma instituição financiada pelo governo nacional. Todos os outros dependem majoritariamente de verba privada.
É certo que os museus franceses também eram capazes de
ocasionalmente obter auxílio
de mecenas do setor privado,
especialmente para as exposições mais prestigiosas.
Também a nova lei que propõe fortes incentivos fiscais às
empresas e indivíduos que doarem obras de arte importantes
-ou dinheiro para adquiri-las- às instituições culturais
merece elogios.
Entretenimento
No entanto, excetuado o
Guggenheim, em Nova York,
que se vangloria de ser parte do
"negócio do entretenimento" e
se tornou o desastroso pioneiro
na exportação por dinheiro de
suas coleções a todas as partes
do mundo, a maioria dos museus do outro lado do Atlântico
e nos demais países europeus
manteve até o presente uma
ética irreprochável.
Conferem prioridade indiscutível aos seus deveres para
com as coleções que abrigam, a
pesquisa, o enriquecimento de
seus acervos, o trabalho científico de seus curadores, o papel
educativo das instituições.
Hoje, um exemplo da situação que se vive pode ser verificado na atuação do Louvre em
Atlanta (EUA).
Lá, quadros que decerto
constituem algumas das peças
mais importantes de seu acervo, como "Ed in Arcadio Ego",
de Poussin, e "Baldassare Castiglione", de Rafael, estão em
exposição na rica cidade-sede
da Coca-Cola, por períodos que
variam entre três meses e um
ano, mediante um pagamento
de 13 milhões.
Esse tipo de prática pode nos
conduzir a um desvio que ninguém mais será capaz de controlar. No plano moral, a utilização, para propósitos comerciais e de mídia, de obras-primas do patrimônio artístico
nacional, fundamentos de nossa história e cultura que a República tem por dever exibir e
preservar em benefício das gerações futuras, deve com certeza ser causa de choque.
E, além disso, por que os sete
milhões de visitantes que o
Louvre recebe por ano, quase
todos pagantes, devem ser privados por tanto tempo de acesso a essas obras?
A permanência de certas
obras-primas que formam o
acervo de um museu é uma exigência que todo visitante tem o
direito de fazer.
A busca de recursos financeiros à qual o novo estatuto dos
grandes museus franceses arremessou as instituições pode
explicar certos desvios, mas felizmente nem todos estão cedendo às suas tentações.
Balneário atraente
O pior ainda está por vir. O
exemplo oferecido por Abu
Dhabi, nos Emirados Árabes
Unidos, é alarmante.
Para aumentar o número de
visitantes a um centro turístico
e balneário e torná-lo mais
atraente, o país de apenas 700
mil habitantes está propondo
construir um total de quatro
museus, entre os quais um inevitável Guggenheim e um museu "francês" que levaria a marca "Louvre".
Mas isso com a condição de
que todos os grandes museus
da França emprestem obras
importantes de seus acervos à
nova instituição por períodos
prolongados.
E o que dizer sobre os interesses recíprocos com a China e
a Índia? Há um plano para
construir um anexo ao Museu
Nacional de Arte Moderna
francês em Xangai, na China,
enquanto o espaço atual do
museu, no centro Beaubourg,
em Paris, está impedido de exibir o acervo -em sua maior
parte armazenado.
O conjunto dos grandes museus franceses e europeus resistiu a essas expansões ou à
adoção de critérios comerciais
e de mídia para localizar suas
instalações e os desaprova.
Assim como os desaprova a
maioria dos curadores de arte
franceses, que estão impedidos,
por regras contestáveis, de se
pronunciar sobre assuntos que
representam, no entanto, a essência de sua profissão.
É evidente que se devem emprestar obras de arte, caso o estado de conversação delas o
permita e caso as condições de
segurança sejam suficientes.
Mas os empréstimos devem
ser gratuitos, e organizados sob
uma estrutura de manifestações que representem contribuição ao conhecimento e à
história da arte.
Até hoje, isso era um imperativo cultural e científico.
Sob qual princípio, levando
em conta a necessidade de conservar e valorizar os acervos
institucionais, se deveria utilizar obras de arte como moeda
de troca?
Será que as iniciativas políticas e diplomáticas devem ter a
primazia diante de todas as demais considerações, e resultar
em empréstimos pagos de
obras essenciais ao patrimônio
de um país?
Será que a França é o único
país a acreditar nesse princípio
e a imitar a criação de uma "filial" do Hermitage [de São Petersburgo, na Rússia], em Las
Vegas [EUA], com o objetivo de
arrecadar mais dinheiro e manter em dia os salários de seus
funcionários?
O sonho de um mundo em
que os homens e os bens de
consumo possam circular livremente é legítimo, mas os objetos que constituem o patrimônio nacional não constituem
bens de consumo, e preservar
seu porvir é garantir que mantenham, no amanhã, seu valor
universal.
FRANÇOIS CACHIN é diretor honorário da organização Musées de France.
JEAN CLAIR é curador.
ROLAND RECHT leciona no Collège de France.
A íntegra deste texto saiu no "Le Monde".
Tradução de Paulo Migliacci.
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