São Paulo, domingo, 11 de fevereiro de 2007

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Utopias de prancheta

Universalismo é o calcanhar-de-aquiles do urbanismo modernista, dizem especialistas

RAUL JUSTE LORES
DA REPORTAGEM LOCAL

O concreto de Brasília e de Chandigarh, a cidade indiana desenhada por Le Corbusier, ainda estava fresco quando uma das mais fortes críticas ao urbanismo modernista foi publicada.
Em seu livro "Morte e Vida de Grandes Cidades" (1961, lançado no Brasil pela Martins Fontes), a jornalista americana Jane Jacobs critica a idéia das cidades-jardim e das metrópoles ordenadas e setorizadas imaginadas pelos modernistas.
Apesar de se referir aos projetos arrasa-quarteirão que substituíram os velhos centros de grandes cidades norte-americanas por arranha-céus, viadutos e vias expressas, Jacobs acaba atacando o planejamento modernista.
A americana, inspirada pela Nova York em que morava, defende a densidade das metrópoles, a calçada como ponto de encontro, a mistura de funções no mesmo quarteirão - prédios para morar e trabalhar, com lojas e bares nos térreos, criando vizinhanças vivas a qualquer horário ou dia.
O "caos" da cidade tradicional contra a organização e a monumentalidade das novas cidades. O sucesso das teses de Jacobs praticamente decretou o envelhecimento precoce desse novo urbanismo.
"Concordo com Jacobs que as cidades mais vitais são aquelas que crescem acumulando uma necessária mistura de usos e usuários por extensos períodos de tempo", diz a urbanista americana Sarah Ichioka, professora da London School of Economics.
"O modernismo apresentou modelos universais, incompatíveis com aspectos locais, como clima e cultura", diz o arquiteto croata Marko Brajovic, professor do Instituto Europeo di Design, de São Paulo.
"Hoje em dia não se pode mais pensar em desenhar uma cidade de fora, com gestos de tal escala, sem pensar a evolução desde seu interior, de seu metabolismo", diz.

Um mundo mais justo
O que é consenso entre os especialistas ouvidos pela Folha é o lado positivo da utopia -afinal, modernistas acreditavam que a arquitetura e o urbanismo determinariam o comportamento das pessoas e teriam o poder de criar um mundo mais justo.
"Brasília pode ser vista como uma capital utópica de um país socialista, que seria mais rico e mais justo", diz Lauro Cavalcanti, diretor do Paço Imperial (RJ) e autor de "Moderno e Brasileiro" (ed. Jorge Zahar).
Mas sua inauguração foi seguida por inflação, recessão, golpe militar e ditadura. A utopia das pranchetas foi atropelada em pouco tempo. "Brasília leva a culpa por problemas que são do Brasil, não só dela, como a favelização, o crescimento desordenado, a pobreza e a feiúra", diz Cavalcanti.
O crítico André Correa do Lago, membro do conselho do departamento de arquitetura do Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMa), diz que Brasília "não é o futuro, representa uma época", e cita várias soluções ainda vigentes.
"Muitos bairros novos de Brasília tentam seguir o espírito das superquadras. É uma experiência rara, onde 100% do piso é espaço público. O privado fica acima dos pilotis (colunas). Embaixo, nesses térreos abertos, as crianças podem brincar protegidas da chuva e as pessoas podem passar por baixo, sem precisar contornar a construção", diz.
"Brasília tem essa ocupação do terreno que é irrepetível hoje no Brasil por conta da especulação imobiliária. Qualquer cidade brasileira que cresceu no mesmo período é pior que Brasília. Em uma rua residencial de São Paulo duas casas são destruídas para se construir um prédio de 15 andares, sem medir o impacto."
Outros conceitos muito criticados à época ainda são repetidos. "É irônico que opositores ao modernismo repitam que quando uma área da cidade é disfuncional, o melhor é destruir tudo e construir a partir do zero. Vários conjuntos habitacionais modernistas têm sido destruídos na Europa", lembra a urbanista Ichioka.
"Outra idéia que sobrevive é a presunção de que um arquiteto iluminado pode criar uma cidade socialmente perfeita de uma tacada. Vários projetos de grandes astros da arquitetura seguem essa idéia", diz.


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