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A ambição das coisas miúdas
Sonhando
com hortas e mercadinhos, Lucio Costa se aproxima da visão de mundo de Drummond e Bandeira
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
A
solução apresentada é de fácil apreensão, pois se caracteriza pela simplicidade e clareza do
risco original (...). É assim eficiente, acolhedora e íntima. É
ao mesmo tempo derramada e
concisa, bucólica e urbana, lírica e funcional."
Com essas palavras, ao final
do "Relatório do Plano Piloto
de Brasília", Lucio Costa sintetizou o espírito que procurara
dar ao projeto da nova capital,
um amálgama das fórmulas de
Le Corbusier com elementos
do modernismo brasileiro.
Elaborado mais de 20 anos
depois da "Carta de Atenas"
(redigida em 1933 pelo urbanista francês para lançar as bases da arquitetura funcionalista), o projeto de Lucio Costa
constitui sua mais ambiciosa
realização, ao lado de Chandigarh, cidade planificada na Índia pelo próprio Le Corbusier,
nos anos 50.
Um dos itens da "Carta de
Atenas" dizia que "as chaves do
urbanismo estão nas quatro
funções: habitar, trabalhar, recrear-se (nas horas livres), circular" -passagem retomada
por Lucio Costa quando define
a futura capital brasileira como
"cidade planejada para o trabalho ordenado e eficiente, mas
ao mesmo tempo cidade viva e
aprazível, própria ao devaneio
e à especulação intelectual".
O relatório é pródigo em
prescrições e prevê desde a numeração das superquadras e as
siglas dos endereços até a disposição das árvores ("extensas
faixas sombreadas para passeio
e lazer") e o percurso que os
ônibus fariam, permitindo ao
viajante ver o eixo monumental numa "despedida psicologicamente desejável".
Emblema monumental
Tão monumentais quanto os
eixos que cortam a cidade são
as ambições de Lucio Costa:
trata-se de edificar a cidade
"não apenas como urbe, mas
como civitas". Essas intenções
civilizatórias vão de encontro
ao sentido utópico da "Carta de
Atenas" -mas de algum modo
também contradizem a formação das cidades coloniais portuguesas.
Afinal, se a criação de Brasília
é "um ato deliberado de posse,
(...) um gesto de sentido ainda
desbravador, nos moldes da
tradição colonial", a tradição à
qual se refere o urbanista pertence a uma outra experiência
histórica.
Tanto que seu relatório usa
os mesmos termos empregados
por Sérgio Buarque de Holanda
para contrapor as desordenadas cidades lusitanas ao caráter
planificado das cidades hispano-americanas.
"O próprio traçado dos centros urbanos na América espanhola denuncia o esforço determinado de vencer e retificar
a fantasia caprichosa da paisagem agreste: é um ato definido
da vontade humana", escreveu
este em "Raízes do Brasil".
Racionalidade e funcionalidade contrapõem-se ao legado
da urbe espontânea, que deve
seu perfil à rotina de uma "moral de negociantes", e não àquela razão abstrata que em outros
lugares, segundo Buarque de
Holanda, transforma a cidade
em "produto mental".
Brasília seria então um emblema tanto da mentalidade
iluminista, que confia na capacidade de se autodeterminar,
como do modernismo brasileiro, no que este representou de
negação do legado lusitano.
A capital, escreve Lucio Costa, será "monumental não no
sentido de ostentação, mas da
expressão palpável, por assim
dizer, consciente daquilo que
vale e significa".
O viés antiornamental e antitradicional, portanto, não cancela os pequenos remansos que
representam um "organismo
plasticamente autônomo na
composição do conjunto" -assim como, na poesia modernista, a anti-retórica e a aversão ao
beletrismo fazem com que a
transgressão lingüística conviva com o apreço pelos aspectos
palpáveis do cotidiano.
Quando Lucio Costa fala dos
terrenos reservados para a horta e o pomar, quando lembra
que é preciso preservar um lugar para mercadinhos, açougues e quitandas, é toda uma
poesia da coisa miúda, aquele
lirismo que Manuel Bandeira e
Drummond foram buscar nas
esquinas da cidade provinciana, que reaparece no projeto
dessa metrópole sem esquinas.
Cidade que mesmo depois de
sair do papel parecia "traçada
no ar", "tão artificial como devia ter sido o mundo quando foi
criado" (assim escreveu Clarice
Lispector numa crônica de
1974), Brasília possivelmente
não correspondia às utopias de
Lucio Costa.
Ele sugere isso ao mostrar,
com uma ponta de ironia, que
as diferenças entre as superquadras permitiriam "as gradações próprias do regime vigente". Por outro lado, confiava
que o planejamento poderia
propiciar "num certo grau a
coexistência social, evitando-se
assim uma indevida e indesejável estratificação".
Pensando assim, talvez estivesse seguindo os princípios reformistas de Le Corbusier, que,
ao formular a antinomia "arquitetura ou revolução", propunha evitar, pelo planejamento urbano, os males inerentes
às transformações radicais.
Mas a revolução que tomou
Brasília pouco depois de sua
inauguração, como se sabe, era
de outra natureza.
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