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Balonagem gastronômica
Em tom irônico, "Jantares em Diferentes Países" pretende mostrar alternativas ao modo ocidental de comer
CARLOS ALBERTO DÓRIA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Jacques Arago (1790-1855) foi um típico explorador romântico do
século 19. Amigo de Júlio
Verne, influenciou-o na
escritura de "A Volta ao Mundo
em Oitenta Dias".
Ele mesmo deu sua volta ao
mundo e, ao retornar à Europa,
já cego, relatou a viagem em livro publicado em 1853, além de
outros textos, entre eles este
pequeno opúsculo moralista,
agora traduzido como "Jantares em Diferentes Países".
A narrativa, em tom irônico,
pretende mostrar alternativas
ao modo ocidental de comer,
definido, para ele, pela disputa
da glutonaria com o luxo, em
que o único sofrimento parece
advir do fato de que, à mesa,
não há o que se possa recusar.
Aparentemente é um diálogo
com o tipo de cultura que Brillat-Savarin expressa na "Fisiologia do Gosto" (1825), mostrando o supérfluo e rebuscado
como fruição da modernidade
gastronômica.
Onde temos, em Savarin, sofisticação, em Arago emerge o
bárbaro, o insólito, o bizarro.
No pampa, o leitor pode comer um bife do próprio cavalo
que usa; entre os hotentotes,
poderá comer porco-espinho,
hipopótamo ou rinoceronte;
entre os cafres, comerá leões e
se embebedará; na Austrália,
uma serpente negra assada e,
caso haja falta de alimento,
uma grande fogueira será construída sobre um formigueiro,
onde as milhares de vítimas serão transformadas em uma
pasta "disforme, viscosa e negra" num medonho festim.
O verbo "alimentar" que Jacques Arago conjuga em sua viagem é um só: vomitar. Não é
extraordinário, pois, "quando
se sabe viajar, deve-se olhar a
cidade que surge, a cidade em
sua totalidade, mil olhares na
terra inóspita onde os perigos,
o cansaço e mesmo a morte se
apresentam a cada passo".
Comida perigosa
A comida é apenas um terreno onde o perigo espreita, inclusive porque "ainda existem
povos antropófagos (...) nessas
águas sulcadas incessantemente por navios exploradores da
Europa civilizada".
O perigo espreita como no
conto de Chapeuzinho Vermelho. Daí decorre a moral: (1) o
hábito da boa mesa é contrário
aos princípios do Evangelho e
da Igreja; (2) consome um tempo precioso que os cristãos poderiam dedicar aos outros; (3)
arruína as famílias; (4) nos torna incapazes da compaixão pelos pobres.
Para a frugalidade cristã que
prega Arago, não é necessário ir
longe, se afastar da Europa.
O livro lembra o famoso documentário cult "Mondo Cane", que marcou época nos
anos 60 do século passado.
Trata-se de um "mondo cane" à mesa.
Mas, se naquele documentário racista o objetivo era mostrar o mundo bárbaro, depravado e perverso que restaria após
a descolonização, neste texto o
objetivo é mostrar que a salvação está muito próxima, ao nosso alcance, dependendo da atitude diante do comer. Em relação ao mundo colonial, é melhor manter distância.
Ao contrário do deambulador moderno, que é o homem
que "comeu de tudo" ou gostaria de comer de tudo, Arago é o
viajante que foi para o sacrifício
com o objetivo de trazer uma
narrativa cativante sobre o
mundo que se esconde além do
horizonte. Escrever é provação,
mas o narrador se salva por
meio da ironia.
A forma de viajar que aquele
século 19 oferecia idealmente
era atrás do livro -longe do alcance das vicissitudes da vida, a
bordo do balão de Julio Verne.
Afinal, não é protegido pela
técnica que desde então contemplamos o mundo? Frutas
tropicais postas à mesa de Paris
ou o delicado vinho que Arago
prova na África do Sul equivalem à balonagem gastronômica
que o século 19 recomenda.
CARLOS ALBERTO DÓRIA é sociólogo e autor
de "Estrelas no Céu da Boca" (ed. Senac).
JANTARES EM DIFERENTES PAÍSES
Autor: Jacques Arago
Tradução: Marisa Motta
Editora: José Olympio (tel. 0/xx/21/
2585-2060)
Quanto: R$ 20 (112 págs.)
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