São Paulo, domingo, 11 de fevereiro de 2007

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Balonagem gastronômica

Em tom irônico, "Jantares em Diferentes Países" pretende mostrar alternativas ao modo ocidental de comer

CARLOS ALBERTO DÓRIA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Jacques Arago (1790-1855) foi um típico explorador romântico do século 19. Amigo de Júlio Verne, influenciou-o na escritura de "A Volta ao Mundo em Oitenta Dias". Ele mesmo deu sua volta ao mundo e, ao retornar à Europa, já cego, relatou a viagem em livro publicado em 1853, além de outros textos, entre eles este pequeno opúsculo moralista, agora traduzido como "Jantares em Diferentes Países".
A narrativa, em tom irônico, pretende mostrar alternativas ao modo ocidental de comer, definido, para ele, pela disputa da glutonaria com o luxo, em que o único sofrimento parece advir do fato de que, à mesa, não há o que se possa recusar. Aparentemente é um diálogo com o tipo de cultura que Brillat-Savarin expressa na "Fisiologia do Gosto" (1825), mostrando o supérfluo e rebuscado como fruição da modernidade gastronômica.
Onde temos, em Savarin, sofisticação, em Arago emerge o bárbaro, o insólito, o bizarro. No pampa, o leitor pode comer um bife do próprio cavalo que usa; entre os hotentotes, poderá comer porco-espinho, hipopótamo ou rinoceronte; entre os cafres, comerá leões e se embebedará; na Austrália, uma serpente negra assada e, caso haja falta de alimento, uma grande fogueira será construída sobre um formigueiro, onde as milhares de vítimas serão transformadas em uma pasta "disforme, viscosa e negra" num medonho festim. O verbo "alimentar" que Jacques Arago conjuga em sua viagem é um só: vomitar. Não é extraordinário, pois, "quando se sabe viajar, deve-se olhar a cidade que surge, a cidade em sua totalidade, mil olhares na terra inóspita onde os perigos, o cansaço e mesmo a morte se apresentam a cada passo".

Comida perigosa
A comida é apenas um terreno onde o perigo espreita, inclusive porque "ainda existem povos antropófagos (...) nessas águas sulcadas incessantemente por navios exploradores da Europa civilizada". O perigo espreita como no conto de Chapeuzinho Vermelho. Daí decorre a moral: (1) o hábito da boa mesa é contrário aos princípios do Evangelho e da Igreja; (2) consome um tempo precioso que os cristãos poderiam dedicar aos outros; (3) arruína as famílias; (4) nos torna incapazes da compaixão pelos pobres. Para a frugalidade cristã que prega Arago, não é necessário ir longe, se afastar da Europa.
O livro lembra o famoso documentário cult "Mondo Cane", que marcou época nos anos 60 do século passado. Trata-se de um "mondo cane" à mesa. Mas, se naquele documentário racista o objetivo era mostrar o mundo bárbaro, depravado e perverso que restaria após a descolonização, neste texto o objetivo é mostrar que a salvação está muito próxima, ao nosso alcance, dependendo da atitude diante do comer. Em relação ao mundo colonial, é melhor manter distância. Ao contrário do deambulador moderno, que é o homem que "comeu de tudo" ou gostaria de comer de tudo, Arago é o viajante que foi para o sacrifício com o objetivo de trazer uma narrativa cativante sobre o mundo que se esconde além do horizonte. Escrever é provação, mas o narrador se salva por meio da ironia.
A forma de viajar que aquele século 19 oferecia idealmente era atrás do livro -longe do alcance das vicissitudes da vida, a bordo do balão de Julio Verne. Afinal, não é protegido pela técnica que desde então contemplamos o mundo? Frutas tropicais postas à mesa de Paris ou o delicado vinho que Arago prova na África do Sul equivalem à balonagem gastronômica que o século 19 recomenda.


CARLOS ALBERTO DÓRIA é sociólogo e autor de "Estrelas no Céu da Boca" (ed. Senac).

JANTARES EM DIFERENTES PAÍSES
Autor:
Jacques Arago
Tradução: Marisa Motta
Editora: José Olympio (tel. 0/xx/21/ 2585-2060)
Quanto: R$ 20 (112 págs.)



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