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Humanismo contagiante
"Arquivinhos" de Otto Lara Resende reproduzem documentos pessoais, fotos e entrevistas do escritor
e jornalista mineiro
NOEMI JAFFE
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Nelson Rodrigues,
um dos maiores
amigos de Otto Lara Resende, sugeriu certa vez que
este último, de tanto que deixava transbordar frases espirituosas a cada conversa, "como
se fosse um cano furado", deveria abrir uma "loja de frases".
Embora não tivesse nem de
longe alma de comerciante,
suas frases tinham uma pontaria tão certeira e poderosa, que
é bem capaz que sua loja o tornasse rico.
Dentre as tantas frases proferidas por ele, algumas das
que melhor o caracterizam são
sem dúvida: "Gosto de ser amigo. E nunca tenho vaga, estou
sempre superlotado. Sou baratinho, fecho negócio barato,
dou pé"; "sou visceralmente
conciliador. A coisa que mais
admiro no mundo é ponte"; e,
misteriosamente, "sou um falante que ama o silêncio".
O grande amigo
Otto era amigo. Amigo de,
amigo com, amigo para e amigo
intransitivamente. Alberto Dines, por exemplo, definindo-o,
diz: "Dizem que inventou a "mineiridade". É pouco, ele recriou
a amizade. Foi o melhor amigo
de uma multidão de amigos.
Dava-se a todos, entregava-se,
dividia-se, não cobrava".
Amigo de Nelson Rodrigues,
que o enraiveceu ao lhe dedicar
a peça "Bonitinha, mas Ordinária: ou Otto Lara Resende"; de
Fernando Sabino, Hélio Pellegrino e Paulo Mendes Campos,
com quem formou em Belo Horizonte o grupo dos "quatro cavaleiros do apocalipse" e a
quem chamou de "adolescentes definitivos"; de Vinicius de
Moraes; de Rubem Braga; de
Juscelino Kubitschek e, surpreendentemente, em sua mineiridade ("A grande contribuição de Minas Gerais para a
cultura universal é a tocaia"),
também de Magalhães Pinto e
de Roberto Marinho.
Otto era indiscriminadamente amigo. Amigo num sentido que está, como certos animais e certas filosofias, em via
de extinção. Seu maior ofício,
além de jornalista, escritor, editorialista e diplomata, era esse:
praticar o humanismo em tempos pós-humanistas. Baratear a
amizade até torná-la plenamente gratuita, fácil, transbordante e generosa.
Vivia parecendo seguir, não
declaradamente, o pensamento de Kant: "Todas as coisas que
podem ser comparadas, podem
ser trocadas e têm um preço.
Aquelas que não podem ser
comparadas e não podem ser
trocadas, não têm preço, mas
dignidade: o homem".
O humanismo concentra o
mundo no homem e dilata o
homem ao mundo. É uma via
de mão dupla em que o indivíduo tem consciência de que jamais está só, ao mesmo tempo
em que sabe que tem um lugar
único no mundo.
Ou seja, é um saber paradoxal sobre nossa insignificância,
simultâneo ao significado essencial sobre sermos humanos.
Saber paradoxal que talvez
explique um dos mistérios de
Otto Lara Resende: a convivência de uma contagiante extroversão, curiosidade e entusiasmo que transpareciam cotidianamente em seus textos (foi colaborador diário da Folha durante quase dois anos, de 1990
a 1992, quando morreu) e a
morbidez, a obsessão e circunspeção de seus contos e do
único romance.
Para ele, seu amigo e psicanalista Hélio Pellegrino criou
uma doençazinha que chamou
de "complexo de Jonas", descreve Benício Medeiros em sua
minibiografia de Otto: "Num
mar de aflições Otto nadava,
nadava, em direção à superfície
da vida prática, às barulhentas
redações de jornais e revistas,
mas, atendendo "à sua convocação de escritor", acabava sempre engolido pela "baleia da literatura'". Baleia cujo ventre
escuro é necessariamente solitário, mas que é o lugar onde
mora o escritor Otto, tão distante do jornalista.
Distância necessária
Mas talvez essa distância seja
necessária, no trânsito fluente
que se operava no autor entre o
mundo e o eu. Otto carregava o
barulho para dentro de seu silêncio, transformando-o em
prosa angustiada, e levava seu
silêncio para dentro do barulho
das redações, transformando
suas crônicas em um certo lirismo irônico.
Os "Arquivinhos - Otto Lara
Resende", recente lançamento
da editora Bem-te-vi, depois
dos "Arquivinhos" de Vinicius
de Moraes e de Hélio Pellegrino, são uma espécie de fetiche a
que precisamos nos permitir.
Precisamos ver um fac-símile de carta que Otto escreveu a
Vinicius numa tarde entediada
de domingo, em Lisboa; precisamos fuçar uma caixa cheia de
pequenas surpresas; é fundamental assistir às entrevistas
de Otto com Vinicius, Nelson,
Drummond; colocar a "loja de
frases" no criado-mudo e anotá-las num caderninho.
É um arquivo artificial, talvez
um pouco brega, mas é delicioso, e Otto nos faz lembrar uma
frase de um outro grande frasista, Oscar Wilde: "Viver é a
coisa mais rara do mundo. A
maioria das pessoas apenas
existe".
NOEMI JAFFE é escritora e professora de literatura, autora de "Folha Explica Macunaíma" (Publifolha) e "Todas as Coisas Pequenas" (Hedra).
ARQUIVINHOS - OTTO LARA RESENDE
Autor: Humberto Werneck e Benício
Medeiros
Editora: Bem-te-vi (tel. 0/xx/21/
3804-8678)
Quanto: R$ 150
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