São Paulo, domingo, 11 de fevereiro de 2007

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Humanismo contagiante

"Arquivinhos" de Otto Lara Resende reproduzem documentos pessoais, fotos e entrevistas do escritor e jornalista mineiro

NOEMI JAFFE
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Nelson Rodrigues, um dos maiores amigos de Otto Lara Resende, sugeriu certa vez que este último, de tanto que deixava transbordar frases espirituosas a cada conversa, "como se fosse um cano furado", deveria abrir uma "loja de frases". Embora não tivesse nem de longe alma de comerciante, suas frases tinham uma pontaria tão certeira e poderosa, que é bem capaz que sua loja o tornasse rico. Dentre as tantas frases proferidas por ele, algumas das que melhor o caracterizam são sem dúvida: "Gosto de ser amigo. E nunca tenho vaga, estou sempre superlotado. Sou baratinho, fecho negócio barato, dou pé"; "sou visceralmente conciliador. A coisa que mais admiro no mundo é ponte"; e, misteriosamente, "sou um falante que ama o silêncio".

O grande amigo
Otto era amigo. Amigo de, amigo com, amigo para e amigo intransitivamente. Alberto Dines, por exemplo, definindo-o, diz: "Dizem que inventou a "mineiridade". É pouco, ele recriou a amizade. Foi o melhor amigo de uma multidão de amigos. Dava-se a todos, entregava-se, dividia-se, não cobrava". Amigo de Nelson Rodrigues, que o enraiveceu ao lhe dedicar a peça "Bonitinha, mas Ordinária: ou Otto Lara Resende"; de Fernando Sabino, Hélio Pellegrino e Paulo Mendes Campos, com quem formou em Belo Horizonte o grupo dos "quatro cavaleiros do apocalipse" e a quem chamou de "adolescentes definitivos"; de Vinicius de Moraes; de Rubem Braga; de Juscelino Kubitschek e, surpreendentemente, em sua mineiridade ("A grande contribuição de Minas Gerais para a cultura universal é a tocaia"), também de Magalhães Pinto e de Roberto Marinho.
Otto era indiscriminadamente amigo. Amigo num sentido que está, como certos animais e certas filosofias, em via de extinção. Seu maior ofício, além de jornalista, escritor, editorialista e diplomata, era esse: praticar o humanismo em tempos pós-humanistas. Baratear a amizade até torná-la plenamente gratuita, fácil, transbordante e generosa. Vivia parecendo seguir, não declaradamente, o pensamento de Kant: "Todas as coisas que podem ser comparadas, podem ser trocadas e têm um preço. Aquelas que não podem ser comparadas e não podem ser trocadas, não têm preço, mas dignidade: o homem".
O humanismo concentra o mundo no homem e dilata o homem ao mundo. É uma via de mão dupla em que o indivíduo tem consciência de que jamais está só, ao mesmo tempo em que sabe que tem um lugar único no mundo. Ou seja, é um saber paradoxal sobre nossa insignificância, simultâneo ao significado essencial sobre sermos humanos. Saber paradoxal que talvez explique um dos mistérios de Otto Lara Resende: a convivência de uma contagiante extroversão, curiosidade e entusiasmo que transpareciam cotidianamente em seus textos (foi colaborador diário da Folha durante quase dois anos, de 1990 a 1992, quando morreu) e a morbidez, a obsessão e circunspeção de seus contos e do único romance.
Para ele, seu amigo e psicanalista Hélio Pellegrino criou uma doençazinha que chamou de "complexo de Jonas", descreve Benício Medeiros em sua minibiografia de Otto: "Num mar de aflições Otto nadava, nadava, em direção à superfície da vida prática, às barulhentas redações de jornais e revistas, mas, atendendo "à sua convocação de escritor", acabava sempre engolido pela "baleia da literatura'". Baleia cujo ventre escuro é necessariamente solitário, mas que é o lugar onde mora o escritor Otto, tão distante do jornalista.

Distância necessária
Mas talvez essa distância seja necessária, no trânsito fluente que se operava no autor entre o mundo e o eu. Otto carregava o barulho para dentro de seu silêncio, transformando-o em prosa angustiada, e levava seu silêncio para dentro do barulho das redações, transformando suas crônicas em um certo lirismo irônico. Os "Arquivinhos - Otto Lara Resende", recente lançamento da editora Bem-te-vi, depois dos "Arquivinhos" de Vinicius de Moraes e de Hélio Pellegrino, são uma espécie de fetiche a que precisamos nos permitir. Precisamos ver um fac-símile de carta que Otto escreveu a Vinicius numa tarde entediada de domingo, em Lisboa; precisamos fuçar uma caixa cheia de pequenas surpresas; é fundamental assistir às entrevistas de Otto com Vinicius, Nelson, Drummond; colocar a "loja de frases" no criado-mudo e anotá-las num caderninho. É um arquivo artificial, talvez um pouco brega, mas é delicioso, e Otto nos faz lembrar uma frase de um outro grande frasista, Oscar Wilde: "Viver é a coisa mais rara do mundo. A maioria das pessoas apenas existe".


NOEMI JAFFE é escritora e professora de literatura, autora de "Folha Explica Macunaíma" (Publifolha) e "Todas as Coisas Pequenas" (Hedra).

ARQUIVINHOS - OTTO LARA RESENDE Autor: Humberto Werneck e Benício Medeiros
Editora: Bem-te-vi (tel. 0/xx/21/ 3804-8678)
Quanto: R$ 150


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