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"Brasil é o império das ilusões"
Em entrevista inédita feita durante a
Eco 92, filósofo diz que
o país não é
hiper-real
Flávio Florido - 25.abr.2002/Folha Imagem
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O filósofo francês Jean Baudrillard durante palestra na Bienal Internacional do Livro de 2002 |
KATIA MACIEL
ESPECIAL PARA A FOLHA
E
m 1992, se realizou na
cidade do Rio de Janeiro a Segunda Conferência das Nações
Unidas sobre Meio
Ambiente e Desenvolvimento,
a Eco 92.
Jean Baudrillard havia sido
convidado para uma conferência, e a enorme mobilização da
cidade em torno do evento provocou esta entrevista, que
aconteceu no Jardim Botânico.
Esta não foi a nossa primeira
conversa e nem seria a última.
Durante muitos anos foram
muitas conversas, mas só tenho o registro desta, que trata
da relação entre a natureza e a
alteridade, o ciclo da metamorfose, da vida e da morte.
As idéias de hiper-realidade
e de simulacro são experimentadas no cenário brasileiro a
partir de uma análise que considera os processos comunicacionais como aceleradores do
consenso.
A forma de confrontação escolhida pelo autor é a da teoria
fatal, a teoria no meio das coisas, uma teoria que não considera mais a separação entre sujeito e objeto e que acolhe em
seu centro os gestos da indiferença como estratégia.
Para o Brasil as palavras são
de encantamento.
Baudrillard sempre acreditou neste país confuso e generoso e nunca pensou no Brasil
como o país do futuro; ele sempre preferiu o presente.
PERGUNTA - Você acredita que esta
conferência terá resultados mesmo
sendo um tipo de simulacro?
JEAN BAUDRILLARD - Parece-me
que tudo isso faz parte de uma
nova ordem mundial. No sentido político, a ecologia faz parte
de um novo establishment
mundial, fundado sobre uma
extensão formal da democracia, dos direitos humanos, fundado sobre um consenso.
É mais um pacto simbólico
com a natureza. Não é exatamente um contrato natural,
não é um contrato em termos
racionais. [...]
PERGUNTA - Não há mudança de
toda forma.
BAUDRILLARD - Neste momento
de consenso, só há mudanças
mecânicas ou eletrônicas. A rede funciona, o processo é de rede, de circuito. Estabelecemos
o consenso pela circulação acelerada das coisas. Se você está
dentro de uma rede, você está
em consenso. Não é uma questão de ideologia.
PERGUNTA - A aceleração é produzida pela mídia, por exemplo? O que
promove toda a aceleração?
BAUDRILLARD - Na verdade, parece uma espécie de imensa
maquinaria em forma de circularidade indefinida. Tudo comunica e tudo se torna comunicação. Nada muda verdadeiramente, não há uma forma de
alteridade, de antagonismo, de
relação dual. Não.
Tudo circula. Tudo se torna
comunicação, seja a sexualidade, as imagens ou até mesmo os
processos científicos.
Temos a impressão de que
somos reconhecidos no mercado da pesquisa científica por
descobertas e hipóteses que
possam comunicar.
O universo da comunicação é
monofuncional. Existe uma
mobilidade e é preciso que tudo
seja dito. É preciso que tudo
circule. De onde vem esse imperativo? Eu não sei... um mecanismo de dissuasão, de desqualificação. Tudo que é substancial, que tem valor, é perigoso. Então é preciso reduzi-lo, é
preciso consensualizar fazendo
circular.
PERGUNTA - Você vê a questão da
hiper-realidade no Brasil?
BAUDRILLARD - Eu não vejo o
Brasil como um país hiper-real.
Não é como a Califórnia, a
América do Norte. Talvez porque o Brasil ainda não tenha
passado pelo princípio de realidade, não pode se tornar hiper-real, porque o hiper-real é mais
que o real, um tipo de confusão
entre o real e o imaginário.
Tem-se a impressão de que
não existe um princípio de definição da realidade. É bem uma
espécie de país de ficção, mas
não de ficção de transparência.
Não é o país da semiologia ou
da semiótica.
Tenho a impressão de que o
Brasil está mais próximo do jogo da ilusão, da sedução, dessa
relação dual, mas confusa, e
que não há essa forma de abstração que é a hiper-realidade...
Enfim, essa forma de transmutação no vazio, de perda de
substância, de referência.
Aqui, é claro, há televisão por
todo lado, há imagens, isso tudo. Temos a impressão de que é
uma matéria muito mais bruta,
imediata, primitiva, é uma matéria da relação coletiva.
Não é a mesma definição que
podemos ter na Europa entre o
meio e a mensagem. Toda a teoria da comunicação não funciona assim porque são as funções
de um modelo abstrato, uma
realidade abstrata. Justamente
por meio das novas imagens há
uma espécie de confusão entre
o emissor e o receptor.
A hiper-realidade é uma espécie de roteiro transparente
da modernidade, mesmo na
Europa. Aqui eu tenho a impressão de que é uma confusão
não primitiva -porque seria
uma expressão pejorativa-,
mas original.
Uma confusão que é ainda
uma forma anterior à da discriminação das coisas, da distinção das coisas. A hiper-realidade é quase tardia porque veio
depois da divisão das coisas.
PERGUNTA - Mas nos EUA também
não houve uma realidade anterior.
BAUDRILLARD - Sim, certamente.
Não exatamente um princípio
de realidade, na medida em que
não houve uma acumulação
primitiva de realidade por dois
séculos, como na Europa. Não
há um histórico de realidade,
mas um princípio tecnológico,
operacional, pragmático.
Isso é um problema de infra-estrutura própria, não é uma
infra-estrutura de princípios
metafísicos, de princípios do
sujeito. Há um princípio de
operacionalidade muito forte
nos EUA .
Aqui eu não tenho a impressão de que ele funcione realmente, e não é ele que governa
as formas simbólicas da relação. Portanto, é uma situação
original, mas, evidentemente,
quando fazemos a análise da
hiper-realidade, ela é universal.
Todo mundo é submetido a
esse regime de potencialização
de signos. Mas talvez o Brasil
escape do universal.
É preciso saber se a cultura
brasileira passou pela modernidade, se os elementos de modernização, de abstração, de
mediatização se tornaram os
mais fortes.
Se foi engolida e absolvida
por isso, não estou muito certo.
Não há julgamento estatístico
ou metafísico. Talvez no Brasil
haja uma certa tradição, talvez
haja muito mais de surrealismo
que de hiper-realismo.
PERGUNTA - Então seriam principalmente efeitos do inconsciente ?
BAUDRILLARD - O hiper-realismo
é, na verdade, uma zona da desencarnação dos corpos.
Não é o caso, aqui os corpos
não são de forma alguma desencarnados. Os gestos, o movimento aqui são verdadeiramente sensuais. A hiper-realidade é um tipo de desencarnação, de desilusão, um pragmatismo das coisas. Aqui ainda é o
império das ilusões, mas no
sentido positivo do termo, ou
seja, o jogo de aparências, incluídos no gestual, na dança, na
música, no jogo, no culto.
Esse tipo de coisa não demonstra absolutamente uma
alternativa política, apenas
mostra que ainda existe uma
forma de ilusão, isto é, de gestão simbólica das coisas.
KATIA MACIEL é professora de comunicação na
Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Leia a íntegra da entrevista em www.folha.com.br/070672
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