São Paulo, domingo, 11 de abril de 2004

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A EVANGELIZAÇÃO, OS EVANGÉLICOS
E A APROPRIAÇÃO DO DISCURSO CIENTÍFICO

Mesmo entre seminaristas que não se identificam expressamente como carismáticos, é freqüente a referência a um tipo de "experiência de Deus" que já não passa tanto pelo engajamento político-social. Ao contrário, a relação com o divino tende, para os carismáticos, mas não só para eles, a ser mais verticalizada -o indivíduo e "seu" Deus-, mais subjetiva e transcendente aos problemas sociais. "Não precisaria me ordenar para atuar nisso, qualquer um pode fazer isso": é a alegação freqüente dos seminaristas cada vez mais "desengajados" de hoje em dia, segundo constata Silvia Fernandes em sua pesquisa no Rio. O padre Manzatto mostra que, curiosamente, o seminário é muitas vezes uma chance para o ingressante se inteirar do que acontece no mundo extra-igreja: "Aqueles que entram para o seminário têm uma militância social praticamente nula, é o seminário que vai abrir para ele as cortinas do mundo". O professor Renold Blank, da Faculdade de Assunção, na mesma direção, diz: "O seminarista de hoje se interessa mais pela vida espiritual, religiosa. A partir desta ele pensa como deve ser a vida social. Talvez no passado, 20 anos atrás, acontecesse o inverso".
Seminarista do primeiro ano de teologia, Emerson Ferreira da Rocha, 22, que reside na casa de formação Bom Pastor, é paradigmático nesse sentido quando diz: "Eu acredito que o padre tem que levar as pessoas a um encontro pessoal com Jesus Cristo". Emerson, como é regra entre seus colegas, mostra muito maior ênfase quando a discussão se desloca para o plano moral: ele lamenta a condição "de minoria" a que o católico vai se confinando, numa cultura que ele qualifica de hedonista e consumista. Questionado se a linha ortodoxa do papa, em temas como camisinha e aborto, não tem alguma culpa por esse isolamento, ele diz: "Se a Igreja andar como um barco à deriva, para onde o vento sopra ela vai... quer dizer, hoje o pessoal está apoiando a camisinha, o aborto, uma série de coisas, amanhã eles vão apoiar o quê? Daqui a cem anos vão apoiar o quê? A igreja precisa ter posições perenes". Perenidade é uma virtude que ele vê também no teor dos discursos do papa ao longo dessas mais de duas décadas de pontificado: "Sua coerência é de impressionar", diz Emerson, ao justificar sua resposta, que aliás a reportagem ouviu de vários seminaristas do Bom Pastor, sobre quem seria, dentro da história da igreja, seu principal modelo inspirador.
Gestos e fisionomia serena, tom de voz grave, circunspecção, Emerson preenche vários dos requisitos que o "physique de rôle" do sacerdote parece exigir. Mas ele diz que amigos seus ficaram espantados quando revelou a vontade de assumir a batina. "Falavam que eu não tinha jeito. O pessoal tem uma imagem errada do padre. Acham que ter jeito de padre é ser um cara fechado, reservado. Gosto de jogar futebol, gostava de sair com meus amigos". O esporte é ainda um hábito. Joga bola, com seus colegas, pelo menos uma vez por semana, na quadra da faculdade, e diz que as proverbiais "caneladas", típicas de uma partida entre padres, não são mera lenda, inclusive entre os "juvenis" do sacerdócio.
Ele chegou a ser coroinha da paróquia Nossa Senhora da Paz, no Jaraguá, voltando para a igreja após um afastamento entre os 12 e os 14 anos, período em que começou a trabalhar. Conciliava o ofício de balconista numa farmácia com os finais de semana dedicados ao grupo de jovens da paróquia. Começando a sentir em si o que a igreja chama de "sinais de vocação", comentou com a namorada Vanessa: "Estou pensando em ser padre, mas não tenho certeza". Seguiu-se um ano de "acompanhamento" por uma equipe da Pastoral Vocacional: ele participava de encontros, reuniões, sua família foi visitada por padres. Confirmada a decisão, um dos momentos mais difíceis foi terminar com a namorada, que hoje ele considera uma amiga.
Para Emerson, a "primeira missão da igreja" é a evangelização. Segundo ele, "os católicos que estão indo embora da igreja têm o direito, como diz o nosso cardeal [d. Cláudio Hummes], de serem evangelizados por nós". "Por quê? Porque nós os batizamos. O padre tem que ir atrás deles. Se eu encontro alguém que está indo para uma igreja evangélica, faço de tudo para que não vá. Converso, vou atrás, procuro, sempre respeitando sua liberdade."
A preocupação com a concorrência neopentecostal é minimizada pelo padre Manzatto, que declara: "Não se trata de uma guerra de religiões como se fosse uma guerra de propagandas de cerveja. Não estamos disputando nada". Ao expor as tendências do curso ministrado na faculdade que ele dirige, ele recorre porém a um tipo de valorização das ciências humanas que tenta distinguir a igreja: 1) desse cenário de "privatização da fé"; 2) de um "conglomerado de religiões colocadas um pouco ao gosto do consumidor"; e 3) de discursos religiosos voltados à "pessoa isolada das relações sociais". Esses três elementos, não por acaso, são muito recorrentes nas análises atuais da sociologia e da antropologia acerca da vida religiosa no Brasil após o boom das igrejas neopentecostais, como a Igreja Universal do Reino de Deus e a Assembléia de Deus.
A apropriação seletiva do discurso científico remete a um problema dos mais sensíveis para o projeto pedagógico dos seminários: passada a euforia do namoro de vertentes da teologia com o ideal socialista, como se (re)colocam as relações entre fé e razão? O saber científico, tão ressaltado pelo Concílio Vaticano 2º, continua sendo importante, nas palavras do professor e padre Márcio Fabri dos Anjos, para que "não se ofereça picolé a quem está gripado". Isso tanto no varejo da atuação numa paróquia quanto no nível das grandes questões.


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