São Paulo, domingo, 11 de abril de 2010

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De má fé

Um dos principais especialistas em Vaticano diz que escândalo de pedofilia ameaça se transformar na mais grave crise da igreja na história moderna

Alessia Pierdomenico - 23.abr.02/Reuters
Estátua de santa Catarina tendo ao fundo a cúpula da basílica de São Pedro, no Vaticano

JOHN CORNWELL

Em uma tarde de verão no final da década de 1990, minha mulher e eu estávamos à beira de uma piscina nos montes Albano, ao sul de Roma. Observávamos um grupo de meninos de 10 a 13 anos que brincavam na água. Faziam parte de um coral britânico em turnê e haviam cantado em uma missa na basílica de São Pedro, no Vaticano.
Divertindo-se com eles, estava um seminarista, Joe Jordan, que os acompanhou, sem ser convidado, de Roma. Após observar seu comportamento ruidoso, que envolvia fazer cócegas e outras brincadeiras de mão, minha mulher, que lecionou em escolas de Londres por 14 anos, disse: "Aquele rapaz tem um problema: eu não o deixaria perto de uma criança sem supervisão".
No ano seguinte, Jordan foi ordenado padre e indicado para uma paróquia no País de Gales, no Reino Unido. Em 2000, foi condenado no Tribunal da Coroa, em Cardiff (capital do País de Gales), a oito anos de prisão por abuso sexual de menores em Doncaster e Barry, perto de Cardiff.
Quando perguntei ao reitor do seminário de Jordan por que minha mulher tinha levado apenas alguns minutos para identificar o que ele e seus colegas não conseguiram reconhecer em um período de cinco anos, ele disse: "Ora, Joe era um homem devoto. Não havia qualquer indício de problema".
O problema oculto de Jordan não era apenas dele e dos meninos de quem abusou, mas um problema de recrutamento, triagem e formação de padres católicos em todo o mundo. Hoje é um problema do papa. O escândalo dos padres católicos pedófilos pode se tornar a maior catástrofe a afligir a igreja de Roma desde a Reforma [no século 16].
A visita de Bento 16 ao Reino Unido em setembro o levará a Holyrood, onde será recebido pela rainha Elizabeth 2ª, cujo ancestral Henrique 8º fundou o protestantismo anglicano. Em uma missa ao ar livre no aeroporto de Coventry, ele irá abençoar as poucas relíquias de um inglês notável -o cardeal John Henry Newman [1801-90], líder espiritual da era vitoriana. Bento 16 deverá beatificar o mais célebre inglês convertido ao catolicismo.
É improvável que o papa busque nos extensos escritos do cardeal respostas para as questões urgentes sobre o sacerdócio católico disfuncional. Mas talvez devesse fazer isso.

O legado de Newman
Em 1845, aos 44 anos, Newman deixou o ministério anglicano por Roma. Sua conversão abalou o país. Foi acusado de mentiroso, um apóstata que havia traído a família, a religião e a nação para adotar a "prostituta da Babilônia".
Somente quando ele se explicou, em sua "Apologia pro Vita Sua" (Em Defesa da Própria Vida), conseguiu afastar as alegações sobre sua honestidade. A reputação de Newman como um grande literato e teólogo continuou crescendo após sua morte. Porém seu maior legado para o sacerdócio católico hoje foi seu exemplo de vida celibatária enquanto desfrutava um companheirismo permanente e afetuoso.
Sua amizade íntima com o padre Ambrose St. John, com quem foi enterrado, muitas vezes foi interpretada como um relacionamento homossexual. Seja qual for o caso, a importância dessa intimidade foi sua maturidade -o apoio mútuo de amigos unidos em uma intensa vida pastoral e literária.
Quando o papa Bento 16 ainda era um jovem professor, conhecido como padre Joseph Ratzinger, ele, como muitos jovens teólogos do pós-guerra na Alemanha, escolheu Newman como seu herói intelectual.
Inspirado pelos textos de Newman, o padre Ratzinger foi um defensor entusiástico e explicador das iniciativas reformistas do Concílio Vaticano 2º. O papa João 23, que iniciou o Vaticano 2º, o comparou com abrir as janelas de um quarto abafado. Tudo, assim, ecoava a ideia de igreja de Newman.
"Aqui embaixo, viver é mudar", escreveu Newman, "e ser perfeito é ter mudado bastante". Newman insistiu, também, em que a consciência individual de uma pessoa é mais crucial que a autoridade da igreja. Os textos teológicos do jovem Ratzinger ecoam a influência de Newman.
Então algo traumático e nunca totalmente explicado aconteceu com o professor Ratzinger. Coincidiu com o período de rebeliões em 1968, quando um bando de estudantes blasfemos invadiu a Universidade de Tübingen, onde Ratzinger ensinava. Ele sentiu que havia vislumbrado o abismo de uma nova idade das trevas.

Sempre a mesma
Retirando-se para o ambiente tranquilo da Universidade de Regensburg, preparou-se para se dedicar não tanto à mudança quanto ao conservadorismo. Se a igreja desejasse sobreviver ao surto de relativismo, socialismo, anarquia e secularismo agressivo, precisava ser clara e definida; deveria ficar "semper eadem", sempre a mesma.
O professor Ratzinger foi nomeado arcebispo de Munique e Freising em 1977 e, depois, cardeal. Continuou reverenciando Newman e apoiando os decretos do Concílio Vaticano 2º. Mas agora insistia em que Newman e o Vaticano 2º foram muito mal compreendidos pelos católicos liberais.
Quando João Paulo 2º indicou Ratzinger para chefe do departamento que vigia a ortodoxia teológica (a Congregação para a Doutrina da Fé), foi confiando em que conteria a proliferação de dissidentes, principalmente os teólogos da libertação da América do Sul.
Assim, quando Bento 16 sucedeu João Paulo 2º, em 2005, os católicos tradicionalistas estavam confiantes em que ele conteria os "progressistas" de uma vez por todas.
Nos últimos cinco anos, ele trouxe de volta a missa em latim, reduziu as anulações de casamentos e restringiu o ecumenismo e o diálogo entre as religiões; a igreja tornou-se cada vez mais centralizada.
Enquanto isso, revelações de abuso infantil clerical em grande escala e ocultações episcopais, que começaram a surgir durante o pontificado de João Paulo 2º [1978-2005], continuaram proliferando.
Nos anos 1990, João Paulo 2º e o cardeal Ratzinger tendiam a desprezar os relatos como maledicência da mídia. Simplesmente não podiam acreditar que os padres pudessem ser abusadores de qualquer coisa, a não ser em escala muito pequena e excepcional.
Bento 16 foi obrigado a modificar essa opinião, mas continua pensando no abuso como um lapso espiritual, mais que um problema psicológico, social e criminal. O abuso dos padres pedófilos é, em sua visão, um grande pecado, mais do que um grande crime. Sua estratégia para lidar com a crise se baseia nessa convicção. Em 20 de março, Bento 16 deu um veredicto severo sobre o escândalo dos abusos na Irlanda, em uma "carta pastoral" à igreja daquele país.
A causa da crise, disse, fora o secularismo e as tentações que ele representa para a santidade dos padres.

Padres perplexos
A maioria inocente dos padres da Irlanda se indignou por ter sido manchada pelo mesmo pecado que os estupradores de crianças. Estão furiosos com a desculpa implícita de Bento 16 ao Vaticano e ao papado.
Enquanto isso, suas iniciativas para combater a praga dos padres pedófilos se concentram nos remédios sobrenaturais, mais que nos humanos. Ele decretou que a hóstia eucarística (que os católicos acreditam ser o "corpo, sangue, alma e divindade de Jesus Cristo") deveria ser exposta para adoração em centenas de igrejas em toda a Irlanda.
Prometeu enviar equipes de clérigos ao país para investigar seus seminários, monastérios, paróquias e dioceses. Essas tropas de choque espirituais vão pregar o Evangelho novamente para os envergonhados clérigos e freiras irlandeses.
Na mesma carta, o papa culpa as interpretações clericais errôneas das reformas do Vaticano 2º. Em outras palavras, os católicos liberais são, em última instância, responsáveis por seduzir o clero irlandês, afastando-o da piedade sacerdotal. Ficou evidente, desde a década de 1970, que o sacerdócio católico está em crise. Cem mil padres deixaram o ministério no período de duas décadas, e a hemorragia continua.
Contra esse pano de fundo, o escândalo dos padres pedófilos é um de uma série de sintomas de uma crise que inclui critérios de recrutamento inadequados, triagem inexperiente e leiga, formação questionável nos seminários e o perigo de definir o sacerdócio em termos de exaltação espiritual.
O sacerdócio celibatário católico atrai muitos homens que têm vocações autênticas. Pelo mesmo motivo, como confere a cada ordenado um respeito imerecido e até adulação (uma posição superior à dos anjos), também pode atrair homens com problemas sexuais, sociais e psicológicos não resolvidos.

Formação inadequada
O processo de triagem raramente envolve leigos, incluindo mulheres, que tenham perícia adequada. A rotina regulada dos seminários, com suas preocupações devocionais e uma vida comunitária agradável, totalmente supervisionada, é uma preparação irreal para a vida sem supervisão na solidão gregária experimentada por muitos padres paroquianos, que vivem sós, sem o apoio de um relacionamento significativo.
A formação de relacionamentos maduros e duradouros, conhecidos como "amizades particulares", é ativamente desencorajada no seminário. Se Bento 16 tivesse citado Newman como um exemplo de sacerdócio, poderia ter proposto uma preparação e um estilo de sacerdócio mais adequados às pressões dos pastores católicos no mundo moderno.
Quando o corpo de Newman foi exumado em preparação para sua beatificação, a mídia ficou surpresa pela notícia de que ele tinha sido enterrado com Ambrose St. John.
Essa circunstância foi usada para alegar que eles tinham um "relacionamento gay". Na verdade, Newman, quaisquer que fossem suas tendências sexuais, certamente viveu uma vida de castidade. Mas acreditava que um padre deveria desfrutar de uma companhia permanente, com todo o afeto mútuo e o apoio que um tal relacionamento implica.
Na visão de Newman, a formação para o sacerdócio deveria ser feita no trabalho em paróquias, mais que em uma casa monástica fechada. Uma vida pastoral de sacerdote, segundo Newman, deveria ser de uma domesticidade normal; ele deveria comer bem, tirar folgas frequentes, desfrutar seu vinho e alimentar muitas amizades, com homens e mulheres.
Seu legado dificilmente combina com o conservadorismo do papa Bento 16. É totalmente possível, na verdade, que sua beatificação indique uma tentativa de sanificar seu legado, mais que adotar os aspectos críticos a Roma.
Podemos esperar, com a beatificação, versões convenientes das visões críticas e liberalizantes de Newman sobre a Igreja Católica. É improvável que elas ofereçam consolo aos abusados, mas poderão contribuir para o longo processo de cura que está pela frente, que deve começar pela admissão da responsabilidade compartilhada pelo sacerdócio disfuncional da igreja, chegando até o topo.

JOHN CORNWELL é professor no Centro de Estudos Avançados em Teologia e Religião do Jesus College, da Universidade de Cambridge. É autor de "O Papa de Hitler" (Imago).
A íntegra deste texto saiu na "New Statesman".
Tradução de° Luiz Roberto Mendes Gonçalves.



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