São Paulo, domingo, 11 de maio de 2008

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Continente pessoal

AMBICIOSO E COM ÓTIMOS MOMENTOS, "PÓS-GUERRA", DE TONY JUDT, PESA A MÃO AO TRATAR DO HOLOCAUSTO NA HISTÓRIA DA EUROPA DESDE A SEGUNDA GUERRA

GILBERTO DUPAS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Tony Judt é um competente historiador inglês com gosto especial pela polêmica. Veio de uma linhagem familiar impregnada por valores russos e pela cultura judaica. Graduou-se na Universidade de Cambridge e, após um período na Escola Normal Superior, em Paris, aprofundou-se nas histórias políticas francesa e européia, área em que é especialista na Universidade de Nova York. Ativista pró-Estado de Israel durante a fase "romântica", na Guerra dos Seis Dias foi voluntário do seu Exército como motorista e tradutor. Atualmente, tem profundas divergências com o governo israelense em relação aos palestinos.
Seu livro "Pós-Guerra" é uma imensa obra de quase mil páginas que pretende fazer um panorama da Europa do pós-guerra. A primeira dificuldade é classificar um trabalho que quer ser enciclopédico e, ao mesmo tempo, analítico, mas que avança entrelaçando abordagens heterogêneas: um estilo jornalístico, um tom descomprometido de cronista e um enfoque sério de historiador que pretende conceituar e inovar sobre uma realidade tão vasta e complexa como a Europa do século 20, na sua mais ampla configuração.
A primeira reação de um leitor relativamente informado sobre o tema é que Judt poderia ter conseguido um resultado muito melhor se tivesse escrito um livro com a metade do tamanho, mantendo-se exclusivamente na perspectiva analítica do competente historiador que ele é.
As informações e os detalhes sobre dados econômicos e sociais dos inúmeros países que constituíram a Europa, em suas variadas fases e geometrias, são excessivas, desnecessárias e podem ser achadas nas boas enciclopédias.

Lugares-comuns
Mas a questão mais complicada é a convivência de análises originais de um historiador arguto com lugares-comuns e afirmações confusas ou peremptórias.
Entre os segundos, pinçados ao acaso: "Sobreviver em tempo de guerra era uma coisa, sobreviver em tempo de paz era outra"; "o povo padecia de fome e doença"; "poucos judeus sobraram"; ou "a guerra mudou tudo". Entre as últimas: "A retomada da Guerra Fria na Europa era sempre possível, e não evitável"; "de todas as nações que participaram da guerra (vencedores ou vencidos), a União Soviética foi a única que sofreu danos econômicos permanentes"; ou ainda "escritores, artistas, professores e jornalistas costumavam admirar Stálin não apesar de seus defeitos, mas "por causa" dos defeitos. Era quando Stálin exterminava pessoas em escala industrial (...) que homens e mulheres que estavam fora do alcance do líder soviético se sentiam mais fascinados por ele e por seu culto".
Judt também tem fixações sobre alguns temas que, em certos momentos, embaçam sua visão de historiador "isento"; dois bons exemplos são seu profundo envolvimento emocional com a questão judaica, que por vezes o distancia da lucidez de uma Hannah Arendt [filósofa], e uma velha antipatia por François Mitterrand [presidente da França em 1981-95].
Mas, além dessas questões, seu livro "Pós-Guerra" tem méritos importantes. A começar por uma visão extremamente abrangente do século 20, tentando enfrentar a dinâmica da "questão européia" na sua extraordinária complexidade política, cultural e social e nos seus inúmeros atores.

Primazia do Holocausto
Há também alguns capítulos de ótima qualidade, um deles -a meu ver- excepcional. Trata-se de "O Fim da Velha Ordem", uma análise primorosa sobre por que o império soviético ruiu como um castelo de cartas bem como sobre o significado do papel de Gorbatchov e Boris Ieltsin na transição para a liquidação do comunismo.
Também é muito bom o seguinte, "Um Continente Divisível", que relata as transformações da Europa Oriental ao longo dos anos 1990. Por fim, seu epílogo surpreende pela primazia quase absoluta que dá à questão do Holocausto -como memória e esquecimento- e ao que Judt chama de "a dificuldade de incorporar a destruição dos judeus à memória contemporânea da Europa". É um tema de excepcional relevância e mereceria dele não só um capítulo, mas um tratado. Estou totalmente de acordo com que "o mal, principalmente o mal na escala praticada pela Alemanha nazista, jamais poderá ser lembrado satisfatoriamente".
Mas me parece uma escolha pessoal e certa parcialidade de foco centralizar a identidade e os dilemas europeus do século 20 basicamente na tragédia inominável dos crematórios de Auschwitz.


GILBERTO DUPAS é coordenador-geral do Grupo de Conjuntura Internacional da USP e presidente do Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais (IEEI). É autor de "O Mito do Progresso" (ed. Unesp), entre outros livros.

PÓS-GUERRA - UMA HISTÓRIA DA EUROPA DESDE 1945
Autor:
Tony Judt
Tradução: José Roberto O'Shea
Editora: Objetiva
Quanto: R$ 79,90 (848 págs.)


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