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Continente pessoal
AMBICIOSO E COM ÓTIMOS MOMENTOS, "PÓS-GUERRA", DE TONY JUDT, PESA A MÃO AO TRATAR DO HOLOCAUSTO NA HISTÓRIA DA EUROPA DESDE A SEGUNDA GUERRA
GILBERTO DUPAS
ESPECIAL PARA A FOLHA
Tony Judt é um competente historiador
inglês com gosto especial pela polêmica.
Veio de uma linhagem familiar impregnada por
valores russos e pela cultura judaica. Graduou-se na Universidade de Cambridge e, após um
período na Escola Normal Superior, em Paris, aprofundou-se nas histórias políticas francesa e européia, área em que é especialista na Universidade de
Nova York. Ativista pró-Estado
de Israel durante a fase "romântica", na Guerra dos Seis
Dias foi voluntário do seu
Exército como motorista e tradutor. Atualmente, tem profundas divergências com o governo israelense em relação aos palestinos.
Seu livro "Pós-Guerra" é
uma imensa obra de quase mil
páginas que pretende fazer um
panorama da Europa do pós-guerra. A primeira dificuldade
é classificar um trabalho que
quer ser enciclopédico e, ao
mesmo tempo, analítico, mas
que avança entrelaçando abordagens heterogêneas: um estilo
jornalístico, um tom descomprometido de cronista e um enfoque sério de historiador que
pretende conceituar e inovar
sobre uma realidade tão vasta e
complexa como a Europa do
século 20, na sua mais ampla
configuração.
A primeira reação de um leitor relativamente informado
sobre o tema é que Judt poderia ter conseguido um resultado muito melhor se tivesse escrito um livro com a metade do tamanho, mantendo-se exclusivamente na perspectiva analítica do competente historiador que ele é.
As informações e os detalhes
sobre dados econômicos e sociais dos inúmeros países que
constituíram a Europa, em
suas variadas fases e geometrias, são excessivas, desnecessárias e podem ser achadas nas
boas enciclopédias.
Lugares-comuns
Mas a questão mais complicada é a convivência de análises
originais de um historiador arguto com lugares-comuns e
afirmações confusas ou peremptórias.
Entre os segundos, pinçados
ao acaso: "Sobreviver em tempo de guerra era uma coisa, sobreviver em tempo de paz era
outra"; "o povo padecia de fome
e doença"; "poucos judeus sobraram"; ou "a guerra mudou
tudo". Entre as últimas: "A retomada da Guerra Fria na Europa era sempre possível, e não
evitável"; "de todas as nações
que participaram da guerra
(vencedores ou vencidos), a
União Soviética foi a única que
sofreu danos econômicos permanentes"; ou ainda "escritores, artistas, professores e jornalistas costumavam admirar Stálin não apesar de seus defeitos, mas "por causa" dos defeitos. Era quando Stálin exterminava pessoas em escala industrial (...) que homens e mulheres que estavam fora do alcance do líder soviético se sentiam mais fascinados por ele e por
seu culto".
Judt também tem fixações
sobre alguns temas que, em
certos momentos, embaçam
sua visão de historiador "isento"; dois bons exemplos são seu
profundo envolvimento emocional com a questão judaica,
que por vezes o distancia da lucidez de uma Hannah Arendt
[filósofa], e uma velha antipatia
por François Mitterrand [presidente da França em 1981-95].
Mas, além dessas questões,
seu livro "Pós-Guerra" tem
méritos importantes. A começar por uma visão extremamente abrangente do século
20, tentando enfrentar a dinâmica da "questão européia" na
sua extraordinária complexidade política, cultural e social e
nos seus inúmeros atores.
Primazia do Holocausto
Há também alguns capítulos
de ótima qualidade, um deles
-a meu ver- excepcional. Trata-se de "O Fim da Velha Ordem", uma análise primorosa
sobre por que o império soviético ruiu como um castelo de
cartas bem como sobre o significado do papel de Gorbatchov
e Boris Ieltsin na transição para
a liquidação do comunismo.
Também é muito bom o seguinte, "Um Continente Divisível", que relata as transformações da Europa Oriental ao longo dos anos 1990.
Por fim, seu epílogo surpreende pela primazia quase
absoluta que dá à questão do
Holocausto -como memória e
esquecimento- e ao que Judt
chama de "a dificuldade de incorporar a destruição dos judeus à memória contemporânea da Europa". É um tema de excepcional relevância e mereceria dele não só um capítulo,
mas um tratado. Estou totalmente de acordo com que "o
mal, principalmente o mal na
escala praticada pela Alemanha
nazista, jamais poderá ser lembrado satisfatoriamente".
Mas me parece uma escolha
pessoal e certa parcialidade de
foco centralizar a identidade e
os dilemas europeus do século
20 basicamente na tragédia
inominável dos crematórios de
Auschwitz.
GILBERTO DUPAS é coordenador-geral do Grupo de Conjuntura Internacional da USP e presidente do Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais (IEEI). É autor de "O Mito do Progresso" (ed. Unesp), entre outros livros.
PÓS-GUERRA - UMA HISTÓRIA
DA EUROPA DESDE 1945
Autor: Tony Judt
Tradução: José Roberto O'Shea
Editora: Objetiva
Quanto: R$ 79,90 (848 págs.)
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