São Paulo, domingo, 11 de maio de 2008

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ livros

A estrutura do belo

Estudo discute a relação do antropólogo Lévi-Strauss, que está fazendo cem anos, com as artes plásticas

TEIXEIRA COELHO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Repensar Lévi-Strauss, com este livro, uns 40 anos após a polêmica estruturalismo versus marxismo, é estimulante exercício sobre o estado da arte, da teoria do conhecimento e do mundo. Sua obra é vasta e "Lévi-Strauss, Antropologia e Arte", de Dorothea Passetti, amplo; discuti-los em curto texto é séria redução. Mas dois ou três pontos se podem destacar.
Primeiro, que o antropólogo quis formular uma teoria geral da arte, projeto que o século 20, no entanto, cedo corroeu. Mas ele insistiu: sua visão é universalista, fala do homem e da arte e, para isso, teorias gerais são necessárias.
Em arte, sua teoria tem dois pilares: 1) a arte liga a natureza à cultura; 2) a arte só tem sentido se promove a comunicação. Disso resulta que a arte depois do impressionismo, com o abstracionismo e o resto, deixou de comunicar e, portanto, de ser arte.
Isso reforça, de início, a idéia do conservadorismo estético de Lévi-Strauss., que gostava das marinhas do século 18.
Mas Passetti, recorrendo a material variado e esparso, expõe uma nem sempre evidente complexidade do pensamento de Lévi-Strauss sobre arte: ele admirou o Picasso que vai até os anos 1930 e disse ser o "Escorredor de Garrafas", de Duchamp, uma obra de arte "incontestável" por sair da adega, onde tinha função, e ir para a galeria.
Na essência, porém, é isto: ele nunca aceitou o abstracionismo -"escola acadêmica onde cada artista se esmera em mostrar como faria seus quadros se viesse a pintá-los"- nem a arte que virou linguagem e se remete apenas a sua própria história.

Grave erro
É possível uma teoria geral da arte quando a arte se multiplicou em infinidade de opções? Ou agora só se pode estudar artista por artista, sem pretensões de estender o conhecimento de um para aquele ao lado -num retorno às "vidas de artistas notáveis" do século 16? Mas os que assim procedemos não incorremos no grave erro, segundo Lévi-Strauss, de, em nome do relativismo cultural, impor a tolerância universal que tudo aplasta?
Antes de voltar ao primeiro pilar, um segundo ponto de sua teoria geral: a importância do "métier".
Para ele, obcecado pelo objeto, o maior problema da arte moderna é o abandono do "métier" a partir do impressionismo, entendendo-se por "métier" "uma longa observação do objeto" por parte do artista e -fica implícito- sua capacidade de dele dar uma comunicação veraz.
A tese de que não havia "métier" no impressionismo é discutível em si mesma. Pior, não permite enxergar Warhol, Jeff Koons e os conceituais todos que contornam intencionalmente o "métier" em seu aspecto mais exterior (tudo isso, para Lévi-Strauss, é lixo cultural).
Se é verdade que não é um conservador simplista em estética, não é menos certo que sua estética surge como propositiva (ou impositiva) quando hoje a estética dominante é compreensiva: busca entender, não apontar.
Com sua teoria geral da arte, ignora que, como propôs Quevedo, o fugidio é a única coisa que permanece e dura. Ele mesmo prefere, em suma, mais do mesmo, mais do eterno -um mesmo e um eterno que não mais existem porque a natureza já quase não há e a cultura é outra coisa.
Mas há pontos em Lévi-Strauss que fazem pensar longamente hoje, quando seu oponente ideológico se enfraqueceu ou sumiu. Sua fórmula de que a arte liga a natureza à cultura me interessa porque estabelece uma distância (que ele não reconhece em toda sua amplitude) entre arte e cultura.

Regra e exceção
Meu ponto é o de [Jean-Luc] Godard: cultura é a regra; arte, a exceção.
Arte não é cultura, como quer a equação simples. Lévi-Strauss é mais complexo que isso: lida com pares de opostos sem procurar, como mandava a cartilha primária, uma dialética entre eles da qual sairia um suposto terceiro. Em outras palavras -como de fato fica melhor-, arte e cultura são duas entidades que se estranham enquanto se confundem. Fundem-se e são distintas.
Há mais coisas a repensar com Lévi-Strauss agora, como a idéia de que os artistas modernos procuraram deliberadamente destruir a arte -e o conseguiram. Essa não era à época uma idéia politicamente correta, portanto aceitável.
O ponto de vista usual sobre a arte ressaltava, como sempre, os temas construtivos da felicidade, das classes sociais, das minorias, do humanismo etc.
O outro ponto de vista é esse segundo o qual uma tendência em tudo acadêmica dos modernos e contemporâneos (e hoje se consegue perceber que nessa idéia há algo de relevante) levou à destruição da arte, maior que a sugerida por Hegel.
Se assim for (não sei se ele concordaria com isso), os artistas apenas estariam realizando, antes, aquilo a que a humanidade está condenada, como Lévi-Strauss insiste em lembrar: seu desaparecimento da face do mundo e do universo.
Se os sistemas são homólogos, como ele diz, o da arte mimetiza o destino do sistema maior. Se ele estiver correto, muita coisa teria de mudar na atual esfera da arte (feita, para dar razão a Baudrillard e Virilio, de simulacros).
Mas, se ele estiver correto, o homem já se condenou, não há mais saídas e a arte pode continuar a ser objeto apenas de feiras ou de um corroído debate ideológico.
Quer dizer, pode seguir sendo... acadêmica. Considerar essa hipótese usando o método de Lévi-Strauss -que é tomar um ponto de vista (a arte como um bem) e seu oposto para entender melhor uma situação- se torna imperativo.
Seu amor pela arte, de todo modo, é enorme: acredita que da humanidade só restarão suas obras de arte -e as maiores, para outra irritação das "esquerdas".
Isso já basta para revisitá-lo com a mediação deste oportuno e largo livro (que talvez apenas pudesse problematizar mais seu objeto -mas esse pode ser um vício meu).


TEIXEIRA COELHO é curador-chefe do Masp (Museu de Arte de São Paulo).

LÉVI-STRAUSS, ANTROPOLOGIA E ARTE
Autora:
Dorothea Voegeli Passetti
Editora: Educ/Edusp (tel. 0/xx/11/ 3091-4006)
Quanto: R$ 85 (488 págs.)


Texto Anterior: + Livros: Continente pessoal
Próximo Texto: Parte de sua obra é reunida na Pléiade
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.