São Paulo, domingo, 11 de junho de 2006

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+ sociedade

República estilhaçada

Ataques do MLST ao Congresso evidenciam risco de crise dos três Poderes

NEWTON BIGNOTTO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Todos assistimos perplexos na semana passada ao ataque que membros de um pouco conhecido MLST [Movimento de Libertação dos Sem Terra] perpetraram contra o Congresso Nacional. As fitas divulgadas pela polícia mostram que o ato foi planejado, o que só agrava o caso. A dimensão policial do ocorrido não deve, no entanto, obscurecer a gravidade do mesmo. Classificar o ataque como ato de vandalismo, o que certamente é, não desvela o alcance que tem no tocante às instituições republicanas. Se olharmos para o quadro mais geral da vida política brasileira, veremos que ele se acorda com uma crise, que pode aos poucos ameaçar os esteios de nossa ainda jovem e frágil democracia. Podemos achar que as críticas aos três Poderes e o sentimento de desamparo que experimentamos não fazem jus ao esforço meritório de muitos homens públicos e aos progressos que experimentamos em algumas esferas de nossa vida em comum. Podemos supor que a crítica à parcialidade da Justiça apenas mostra nossa ignorância quanto às regras processuais e que os desmandos do Legislativo são freqüentes em nossa história e confirmam o que já sabíamos. Ocorre que a crença na democracia não se alimenta somente de dados e considerações bem-intencionadas. Ela depende de um sentimento de confiança, que transcende a simples capacidade de o regime resolver problemas como a segurança e o emprego. Funda-se no apreço pela lei fundamental -que alguns chamam de patriotismo constitucional- e na adesão a valores como a liberdade de expressão e a igualdade perante a lei e também no respeito a seus símbolos. Um estudo publicado pelo PNUD [Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento], "A Democracia na América Latina", mostra que em 2002 43,6% da população dos países do Mercosul se declarava democrata, contra 34,5% de não-democrata e 21,9% de ambivalente.

Vários equívocos
O quadro pode não ser ameaçador, mas o campo potencial dos que aceitam abrir mão dos valores democráticos em favor de maiores oportunidades econômicas ou maior segurança é expressivo e aponta para o risco que corremos quando os fundamentos da República são atacados. Distantes dessas considerações, pululam equívocos de muitos matizes. O primeiro, cometido por alguns setores ligados a correntes mais radicais da esquerda, é o de imaginar que uma hipotética justiça da causa dos movimentos sociais transforma a afronta aos Poderes constituídos em ato de reparação de direitos. Ora, não há direitos que pertençam apenas a grupos particulares, sejam eles agentes econômicos poderosos ou atores desprovidos de meios. Uma justiça fora da Constituição não é justiça nenhuma, mas simplesmente um ato de força. A simpatia que possamos ter pela causa da reforma agrária e pelos grupos que a defendem não muda o fato de que só são justas as reivindicações que puderem ser colocadas junto com as outras demandas, que compõem o complexo tecido do interesse público. Na ponta da classe política, a crença da maioria dos partidos de que a vitória nas eleições é um valor absoluto a ser perseguido e que a "falta de memória do povo brasileiro" fará esquecer os desmandos recentes tem se revelado um engano. Talvez a memória dos brasileiros não se manifeste diretamente votando ou deixando de votar em certos candidatos, mas aparece de forma mais radical no momento em que se deixa de confiar nas instituições democráticas. Ao nos refugiarmos num cinismo ingênuo, acabamos nos esquecendo de que a adesão ao imaginário republicano e aos valores democráticos é tão importante para preservar a liberdade quanto a participação em eleições. A crise das instituições centrais da democracia brasileira pode nos colocar diante do cenário perigoso de um conflito não mediado de interesses, que acabará por erigir a violência em linguagem das disputas entre grupos divergentes.

Arena de combates
Até agora nossas instituições resistiram aos abalos, mas as rachaduras do edifício não podem ser ignoradas. A democracia é um regime agonístico e vive da disputa entre seus cidadãos. Mas, por isso mesmo, não pode ter suas instituições e símbolos dilapidados nem colocar em questão a idéia de que as lutas políticas devem ocorrer dentro dos limites assinalados pela lei. Se não pudermos recorrer a regras do direito e a referências éticas, quando defendemos nossos interesses particulares -mesmo legítimos-, vamos transformar o espaço público numa simples arena de combate entre interesses privados opostos. Nesse território caótico, erigido pela destruição das instituições republicanas, a história nos mostra que gravitam os governos autoritários e os regimes corrompidos.


NEWTON BIGNOTTO é professor de filosofia política na Universidade Federal de Minas Gerais e autor de "Maquiavel Republicano".


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