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+ sociedade
República estilhaçada
Ataques do MLST ao Congresso evidenciam risco
de crise dos três Poderes
NEWTON BIGNOTTO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Todos assistimos perplexos na semana
passada ao ataque que
membros de um pouco conhecido MLST
[Movimento de Libertação dos
Sem Terra] perpetraram contra o Congresso Nacional. As fitas divulgadas pela polícia
mostram que o ato foi planejado, o que só agrava o caso. A dimensão policial do ocorrido
não deve, no entanto, obscurecer a gravidade do mesmo.
Classificar o ataque como ato
de vandalismo, o que certamente é, não desvela o alcance
que tem no tocante às instituições republicanas. Se olharmos
para o quadro mais geral da vida política brasileira, veremos
que ele se acorda com uma crise, que pode aos poucos ameaçar os esteios de nossa ainda jovem e frágil democracia.
Podemos achar que as críticas aos três Poderes e o sentimento de desamparo que experimentamos não fazem jus ao
esforço meritório de muitos
homens públicos e aos progressos que experimentamos em
algumas esferas de nossa vida
em comum. Podemos supor
que a crítica à parcialidade da
Justiça apenas mostra nossa
ignorância quanto às regras
processuais e que os desmandos do Legislativo são freqüentes em nossa história e confirmam o que já sabíamos.
Ocorre que a crença na democracia não se alimenta somente de dados e considerações bem-intencionadas. Ela
depende de um sentimento de
confiança, que transcende a
simples capacidade de o regime
resolver problemas como a segurança e o emprego. Funda-se
no apreço pela lei fundamental
-que alguns chamam de patriotismo constitucional- e na
adesão a valores como a liberdade de expressão e a igualdade
perante a lei e também no respeito a seus símbolos.
Um estudo publicado pelo
PNUD [Programa das Nações
Unidas para o Desenvolvimento], "A Democracia na América
Latina", mostra que em 2002
43,6% da população dos países
do Mercosul se declarava democrata, contra 34,5% de não-democrata e 21,9% de ambivalente.
Vários equívocos
O quadro pode não ser ameaçador, mas o campo potencial
dos que aceitam abrir mão dos
valores democráticos em favor
de maiores oportunidades econômicas ou maior segurança é
expressivo e aponta para o risco
que corremos quando os fundamentos da República são atacados. Distantes dessas considerações, pululam equívocos
de muitos matizes.
O primeiro, cometido por alguns setores ligados a correntes mais radicais da esquerda, é
o de imaginar que uma hipotética justiça da causa dos movimentos sociais transforma a
afronta aos Poderes constituídos em ato de reparação de direitos. Ora, não há direitos que
pertençam apenas a grupos
particulares, sejam eles agentes
econômicos poderosos ou atores desprovidos de meios.
Uma justiça fora da Constituição não é justiça nenhuma,
mas simplesmente um ato de
força. A simpatia que possamos
ter pela causa da reforma agrária e pelos grupos que a defendem não muda o fato de que só
são justas as reivindicações que
puderem ser colocadas junto
com as outras demandas, que
compõem o complexo tecido
do interesse público.
Na ponta da classe política, a
crença da maioria dos partidos
de que a vitória nas eleições é
um valor absoluto a ser perseguido e que a "falta de memória
do povo brasileiro" fará esquecer os desmandos recentes tem
se revelado um engano.
Talvez a memória dos brasileiros não se manifeste diretamente votando ou deixando de
votar em certos candidatos,
mas aparece de forma mais radical no momento em que se
deixa de confiar nas instituições democráticas. Ao nos refugiarmos num cinismo ingênuo,
acabamos nos esquecendo de
que a adesão ao imaginário republicano e aos valores democráticos é tão importante para
preservar a liberdade quanto a
participação em eleições.
A crise das instituições centrais da democracia brasileira
pode nos colocar diante do cenário perigoso de um conflito
não mediado de interesses, que
acabará por erigir a violência
em linguagem das disputas entre grupos divergentes.
Arena de combates
Até agora nossas instituições
resistiram aos abalos, mas as
rachaduras do edifício não podem ser ignoradas.
A democracia é um regime
agonístico e vive da disputa entre seus cidadãos. Mas, por isso
mesmo, não pode ter suas instituições e símbolos dilapidados
nem colocar em questão a idéia
de que as lutas políticas devem
ocorrer dentro dos limites assinalados pela lei.
Se não pudermos recorrer a
regras do direito e a referências
éticas, quando defendemos
nossos interesses particulares
-mesmo legítimos-, vamos
transformar o espaço público
numa simples arena de combate entre interesses privados
opostos. Nesse território caótico, erigido pela destruição das
instituições republicanas, a
história nos mostra que gravitam os governos autoritários e
os regimes corrompidos.
NEWTON BIGNOTTO é professor de filosofia
política na Universidade Federal de Minas Gerais e autor de "Maquiavel Republicano".
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