São Paulo, domingo, 11 de junho de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ livros

O preço da arte

"Anedotas do Destino" traz 5 contos de fatura perfeita escritos pela dinamarquesa Karen Blixen

NINA HORTA
COLUNISTA DA FOLHA

A editora Cosacnaify publicou, de Karen Blixen (ou Isak Dinesen, pseudônimo que adotava), "Anedotas do Destino". São cinco contos formais, isso no tempo em que se tentava revolucionar as regras da literatura. Dir-se-ia uma velha contadora de histórias, à beira da lareira de uma casa escandinava. Serena, sem obrigações com a realidade, narradora todo-poderosa que tudo sabe, um mandarim distante de seus personagens que moram no passado, não conversam normalmente e com quem acontecem coisas que jamais aconteceriam comigo ou com você ou mesmo com ela. Dinamarquesa, escrevia em inglês, nutrida pela biblioteca da própria casa. Escutara quando criança as sagas nórdicas e, leitora ávida, era amiga íntima de Shakespeare. Seus livros sobre a África são diários, documentários sensíveis: "Sombras na Relva" e "A Fazenda Africana". É nos contos que transita entre o imaginário e o mágico.

Obstáculos
O que deixam entrever é que Karen Blixen enfrenta a vida como uma corrida de obstáculos. Há que ultrapassá-los e arcar com as conseqüências, construindo assim uma história própria, realizando um destino. Quem não se arrisca corre o perigo de não viver, de não cumprir um projeto maior. Deus gosta de nos pregar peças, a vida corre, os acontecimentos se precipitam, morrem aqueles que amamos e, "como só existimos felizes através do outro", o que nos sobra? Podemos contar histórias, as nossas e as dos outros. Recriar a realidade. Escrever foi a escolha de Karen Blixen, depois de se ocupar por muito tempo em somente viver. Sempre se gabou de não ter o menor interesse em tratar de questões sociais (fascinada pelo "Livro das Mil e Uma Noites" [editora Globo], gostava de lembrar que os árabes ainda se reuniam em praças para escutar as histórias de Sherazade). Era assim que queria seduzir. Pelo interesse. Em um dos parágrafos de "A Festa de Babette", para mim o conto mais bem estruturado do livro -uma comédia sutil-, aparece uma pista para o processo de narrar de Blixen. As duas patroas da francesa Babette ("communarde" fugitiva e cozinheira que chegara àquele fiorde da Noruega havia 12 anos) dão permissão a ela para fazer o jantar comemorativo do centenário de nascimento do pai, pastor de uma seita fundada por ele próprio. Havia ainda na cidade alguns poucos seguidores, velhos, puritanos, mais duros que nó de pinho. No momento em que Babette começa as compras, pagando com o dinheiro que ganhara numa loteria parisiense, ela se agiganta. As patroas percebem que a comida não será a de sempre, a sopa de bacalhau e pão preto. Na cozinha, à luz dos lampiões, enxergaram a cabeça de serpente de uma tartaruga.

Mal-entendido
Que terrível mal-entendido! O pai seria festejado com um sabá de bruxas. Martine, uma das irmãs, corre para os fiéis que ainda restam e explica a tragédia. Não sabia o que comeriam na festa. Teriam que calar sobre as tentações e prazeres da mesa e fingir que nada percebiam. Os amigos do pai entenderam a causa justa da irmã tão querida, entenderam muito bem, apesar dela "não ter mencionado de fato a tartaruga, mas era algo presente em seu rosto e sua voz". Em "Tempestades", o sonho de um velho ator era produzir "A Tempestade", de William Shakespeare, e não faria "Ariel descer sobre o palco, dependurado por arames em suas asas. Ao diabo com isso!... São as palavras do poeta que devem fazer Ariel voar!". Está aí o segredo das fábulas bem contadas. Nem tartarugas nem fios de metal aparentes.

Pavorosa solidão
O assunto recorrente é a perfeição, a arte, o melhor possível. Babette se declara artista e despreza seu prêmio para fazer uma refeição perfeita. Ariel deixa o amado para não traí-lo com sua vocação mais íntima, que é o teatro. Isak Dinesen entendia desse assunto -o sacrifício da vida pela arte e o preço a ser pago. E não resiste em colocar na boca de uma de suas heroínas um lamento. Quer saber de seu mestre qual a compensação para essa vida tão desastrosa que os artistas levam. Ao que seu professor responde: "Em compensação ganhamos a desconfiança do mundo... E nossa pavorosa solidão. Nada mais".


ANEDOTAS DO DESTINO
Autor: Karen Blixen
Tradução: Cássio de Arantes Leite
Editora: Cosacnaify
Quanto: R$ 44 (216 págs.)



Texto Anterior: O mito resistente
Próximo Texto: Autora teve obras filmadas
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.