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O mito resistente
"O Sagrado Selvagem"
reúne 14 ensaios do antropólogo francês
Roger Bastide,
que substituiu
Lévi-Strauss
na USP no fim
dos anos 30
MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA
Declínio das religiões, predominância do raciocínio
científico, do poder
laico, das formas
autônomas e individuais da expressão artística: com a célebre
fórmula do "desencantamento
do mundo", o sociólogo alemão
Max Weber (1864-1920) propunha uma descrição até hoje
decisiva para o entendimento
do mundo moderno.
Na visão pessimista de Weber, o processo de burocratização e racionalização universal
terminaria produzindo não "a
floração do estio, mas uma noite polar, glacial, severa e rude".
O prognóstico, que consta
das páginas finais de "A Política como Vocação", encontra ao
longo da vasta obra de Roger
Bastide (1898-1974) um constante, mas ameno -e, diríamos, quase que "encantado"-
desmentido.
"O Sagrado Selvagem" reúne
14 ensaios do antropólogo francês, desde considerações algo
insípidas, datadas de 1931, sobre "o misticismo sem deuses"
na obra de pensadores como
Rousseau e Maine de Biran, até
um minucioso, embora breve,
estudo etnográfico da década
de 70, a respeito das "escravas
dos deuses" (equedes ou aiabás) no candomblé brasileiro.
Há um longo percurso entre
o mundo literário e filosófico
europeu dos anos 30 e os cultos
afro-brasileiros que terminaram se tornando a especialidade de Bastide.
Nos seus textos de juventude
-que esta coletânea intitula algo pomposamente de "Prima
Scripta"- temos um jovem intelectual de origem protestante que busca, com a ajuda das
filosofias de Bergson e Renouvier e alguma imitação do estilo
de Proust, uma conciliação entre o cristianismo conservador
de seu tempo e as pressões de
renovação social exercidas pelo
marxismo.
Como no caso de seu amigo
Pierre Verger, a "descoberta do
Brasil" teve um efeito catártico
sobre Roger Bastide. Escolhido
para substituir Claude Lévi-Strauss na recém-criada Universidade de São Paulo, Bastide
transferiu-se para o Brasil em
1938 e só voltou para a França
em 1954, para lecionar na Sorbonne (em Paris).
Relacionando-se com os intelectuais, como Mário de Andrade, Oswald de Andrade e
Sérgio Milliet, que trataram
eles próprios de "descobrir o
Brasil", Roger Bastide empreendeu uma viagem ao Nordeste em 1944, da qual resultou
seu duradouro interesse pelo
sincretismo religioso. Mais do
que isso: pela presença do sagrado, do informe, do sonho, do
transe e do êxtase nas brechas
de um sistema social em busca
da modernização.
"O homem, essa máquina de
fazer deuses": a frase de Bergson serve de título a um dos
mais líricos ensaios deste volume, originalmente publicado
no "Diário de S. Paulo" em
1943. "Criam-se novos cultos
debaixo dos nossos olhos", diz
Bastide. "Nessas mechas de cabelos preciosamente conservadas, e atadas com fita colorida,
do filho querido que morreu,
nessas cartas de namorada
guardadas no fundo de uma gaveta está inteiramente contido
o culto das relíquias. (...) A datilógrafa se sente virar fada, sereia, e quando vai dançar em
Santo Amaro, entre os eucaliptos, uma alma de ninfa por um
momento a habita. (...) A cozinheira que mata uma galinha
para a refeição da noite revive,
sem querer, a sombria beleza
das sacerdotisas bárbaras."
Pendor literário
Mesmo nos textos em que a
exigência de rigor etnográfico
predomina, o pendor literário
de Bastide -autor, na década
de 1940, de um pioneiro estudo
sobre poetas modernistas brasileiros, reeditado recentemente pela Edusp- aparece nos interstícios da narrativa.
É assim que, descrevendo a
iniciação das mulheres no candomblé, Bastide fala de quartinhos escuros "onde os corpos
estendidos das candidatas pareciam larvas brancas, de onde
deveriam sair, uma vez concluída a metamorfose, as borboletas multicolores das filhas dos
deuses".
Metáfora, talvez, de um renascimento do sagrado a partir
das sociedades modernas?
Atento à voga do misticismo
hippie e dos lemas da "imaginação no poder", correntes nas
revoltas estudantis de 1968,
Roger Bastide guarda suas distâncias. Nas religiões tradicionais, o transe é cuidadosamente administrado, inscrevendo-se nas regras de um ritual estabelecido.
Livre do ritual
"Selvagem", na verdade, seria
a procura contemporânea de
um sagrado que se libertasse da
ordenação ritual arcaica. Nossa
propensão ao mito, à "grande
extensão subterrânea dos sonhos da humanidade", persiste.
"A ciência não destruiu esses
mitos, destruiu apenas a sua ordenação; logrou apenas (...)
cumprir o papel das Bacantes,
dispersando mundo afora os
membros arrancados de Dioniso, Orfeu ou Osíris. Pedaços
sangrentos, sem dúvida, porém, ainda vivos."
Destruída, entretanto, a ordenação ritual, é duvidoso que
o êxtase possa persistir livremente e criar uma forma livre e
revolucionária de "sagrado coletivo". "Nas comunidades hippies, ou outras, mesmo quando
se busca o transe coletivo, mesmo quando os corpos estendidos se misturam uns com os
outros na inconsciência dos
gestos, cada um permanece só."
Vitória do protestantismo,
talvez, sobre o politeísmo comunitário? O debate vai muito
além do diálogo que possamos
imaginar entre Weber e Bastide; desenvolve-se -com todo
seu potencial de hibridismos e
paradoxos- no cotidiano de
qualquer periferia brasileira
hoje em dia.
O SAGRADO SELVAGEM
Autor: Roger Bastide
Tradução: Dorothée de Bruchard
Editora: Companhia das Letras (tel.
0/ xx/11/3707-3500)
Quanto: R$ 42 (280 págs.)
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