São Paulo, domingo, 11 de junho de 2006

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O mito resistente

"O Sagrado Selvagem" reúne 14 ensaios do antropólogo francês Roger Bastide, que substituiu Lévi-Strauss na USP no fim dos anos 30

MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA

Declínio das religiões, predominância do raciocínio científico, do poder laico, das formas autônomas e individuais da expressão artística: com a célebre fórmula do "desencantamento do mundo", o sociólogo alemão Max Weber (1864-1920) propunha uma descrição até hoje decisiva para o entendimento do mundo moderno. Na visão pessimista de Weber, o processo de burocratização e racionalização universal terminaria produzindo não "a floração do estio, mas uma noite polar, glacial, severa e rude". O prognóstico, que consta das páginas finais de "A Política como Vocação", encontra ao longo da vasta obra de Roger Bastide (1898-1974) um constante, mas ameno -e, diríamos, quase que "encantado"- desmentido. "O Sagrado Selvagem" reúne 14 ensaios do antropólogo francês, desde considerações algo insípidas, datadas de 1931, sobre "o misticismo sem deuses" na obra de pensadores como Rousseau e Maine de Biran, até um minucioso, embora breve, estudo etnográfico da década de 70, a respeito das "escravas dos deuses" (equedes ou aiabás) no candomblé brasileiro. Há um longo percurso entre o mundo literário e filosófico europeu dos anos 30 e os cultos afro-brasileiros que terminaram se tornando a especialidade de Bastide. Nos seus textos de juventude -que esta coletânea intitula algo pomposamente de "Prima Scripta"- temos um jovem intelectual de origem protestante que busca, com a ajuda das filosofias de Bergson e Renouvier e alguma imitação do estilo de Proust, uma conciliação entre o cristianismo conservador de seu tempo e as pressões de renovação social exercidas pelo marxismo. Como no caso de seu amigo Pierre Verger, a "descoberta do Brasil" teve um efeito catártico sobre Roger Bastide. Escolhido para substituir Claude Lévi-Strauss na recém-criada Universidade de São Paulo, Bastide transferiu-se para o Brasil em 1938 e só voltou para a França em 1954, para lecionar na Sorbonne (em Paris). Relacionando-se com os intelectuais, como Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Sérgio Milliet, que trataram eles próprios de "descobrir o Brasil", Roger Bastide empreendeu uma viagem ao Nordeste em 1944, da qual resultou seu duradouro interesse pelo sincretismo religioso. Mais do que isso: pela presença do sagrado, do informe, do sonho, do transe e do êxtase nas brechas de um sistema social em busca da modernização. "O homem, essa máquina de fazer deuses": a frase de Bergson serve de título a um dos mais líricos ensaios deste volume, originalmente publicado no "Diário de S. Paulo" em 1943. "Criam-se novos cultos debaixo dos nossos olhos", diz Bastide. "Nessas mechas de cabelos preciosamente conservadas, e atadas com fita colorida, do filho querido que morreu, nessas cartas de namorada guardadas no fundo de uma gaveta está inteiramente contido o culto das relíquias. (...) A datilógrafa se sente virar fada, sereia, e quando vai dançar em Santo Amaro, entre os eucaliptos, uma alma de ninfa por um momento a habita. (...) A cozinheira que mata uma galinha para a refeição da noite revive, sem querer, a sombria beleza das sacerdotisas bárbaras."

Pendor literário
Mesmo nos textos em que a exigência de rigor etnográfico predomina, o pendor literário de Bastide -autor, na década de 1940, de um pioneiro estudo sobre poetas modernistas brasileiros, reeditado recentemente pela Edusp- aparece nos interstícios da narrativa. É assim que, descrevendo a iniciação das mulheres no candomblé, Bastide fala de quartinhos escuros "onde os corpos estendidos das candidatas pareciam larvas brancas, de onde deveriam sair, uma vez concluída a metamorfose, as borboletas multicolores das filhas dos deuses". Metáfora, talvez, de um renascimento do sagrado a partir das sociedades modernas? Atento à voga do misticismo hippie e dos lemas da "imaginação no poder", correntes nas revoltas estudantis de 1968, Roger Bastide guarda suas distâncias. Nas religiões tradicionais, o transe é cuidadosamente administrado, inscrevendo-se nas regras de um ritual estabelecido.

Livre do ritual
"Selvagem", na verdade, seria a procura contemporânea de um sagrado que se libertasse da ordenação ritual arcaica. Nossa propensão ao mito, à "grande extensão subterrânea dos sonhos da humanidade", persiste. "A ciência não destruiu esses mitos, destruiu apenas a sua ordenação; logrou apenas (...) cumprir o papel das Bacantes, dispersando mundo afora os membros arrancados de Dioniso, Orfeu ou Osíris. Pedaços sangrentos, sem dúvida, porém, ainda vivos." Destruída, entretanto, a ordenação ritual, é duvidoso que o êxtase possa persistir livremente e criar uma forma livre e revolucionária de "sagrado coletivo". "Nas comunidades hippies, ou outras, mesmo quando se busca o transe coletivo, mesmo quando os corpos estendidos se misturam uns com os outros na inconsciência dos gestos, cada um permanece só." Vitória do protestantismo, talvez, sobre o politeísmo comunitário? O debate vai muito além do diálogo que possamos imaginar entre Weber e Bastide; desenvolve-se -com todo seu potencial de hibridismos e paradoxos- no cotidiano de qualquer periferia brasileira hoje em dia.


O SAGRADO SELVAGEM
Autor: Roger Bastide
Tradução: Dorothée de Bruchard
Editora: Companhia das Letras (tel. 0/ xx/11/3707-3500)
Quanto: R$ 42 (280 págs.)



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