São Paulo, domingo, 11 de julho de 2004

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Estudo de Peter Szondi que está saindo no Brasil discute o trágico em 12 pensadores e analisa peças de dramaturgos como Sófocles e Kleist

O fundamento do trágico

Jefferson Coppola - 9.jun.2004/Folha Imagem
Ensaio da ópera "Romeu e Julieta" no Teatro Municipal de São Paulo


Luiz Costa Lima

Ao que eu saiba, o "Ensaio sobre o Trágico" (trad. de Pedro Süssekind, ed. Jorge Zahar, 2004) é o segundo livro de Peter Szondi que se publica no Brasil. Talvez supondo que seus títulos, "Teoria do Drama Moderno" (1880-1950) e "Ensaio sobre o Trágico", prometessem apresentações genéricas, os editores nacionais têm preferido seus primeiros livros. Caso se disponham a ir além, poderão contribuir para que se forme entre nós uma reflexão mais consistente sobre o teatro e a literatura.
Aí se encaixariam com perfeição os dois volumes de "Poética e Filosofia da História" (1974), em que os ensaios mais extensos são dedicados, respectivamente, à teoria hegeliana da poesia e à poética de Schelling. Poderiam depois pensar nos estudos sobre Paul Celan (em "Schriften II", 1978), seu amigo e companheiro de infortúnio -ambos conheceram (e foram estigmatizados por) os campos de concentração.
Com isso, já estaria acessível parte considerável da produção de Szondi, pois, havendo se suicidado em 1971, com apenas 42 anos, sua obra é relativamente pequena. Mas não nos enganemos sobre seu tamanho nem tampouco pelos títulos de seus dois primeiros livros. Mais do que adepto de epigramas, é o próprio modo de pensar de Szondi que é epigramático. Esse seu caráter extremamente sintético é mostrado pelo "Ensaio": em menos de 150 páginas são abordadas as concepções do trágico em 12 pensadores, mais um excurso que trata de Walter Benjamin e oito peças de dramaturgos do peso de Sófocles, Shakespeare, Racine e Kleist.
A aparência de apreciações genéricas é enganosa, e o leitor que de fato se empenhe é estimulado a recorrer às fontes, se não a outros intérpretes, com os quais debata pontos específicos. É o que se aconselharia quanto a um autor particularmente difícil como Hölderlin. No caso brasileiro, seria esse leitor favorecido pelas traduções recentes dos "Cursos de Estética" (Edusp), de Hegel -aliás, quando a Edusp pensará em lançar seu último volume?- e da "Filosofia da Arte" (Edusp, 2001), de Schelling, além do excelente "Antígona - de Sófocles a Hölderlin (L&PM, Porto Alegre, 2000), de Kathrin Rosenfield. Embora saibamos que a chamada alta cultura nunca pertenceu à ordem das prioridades nacionais, a tematização do trágico não atrairá um número considerável de leitores? Para que se ressaltem a relevância do livro de Szondi e seu modo de formulação, acentue-se seu primeiro tema. Ele funciona como uma explicação prévia das direções que a análise do trágico assume no Ocidente. Dois momentos são aí destacados: o da "Poética" aristotélica e o das "Cartas Filosóficas sobre o Dogmatismo e o Criticismo" (1796), do então jovem Schelling. Só a frase de abertura mereceria um tratamento circunstanciado: "Desde Aristóteles, há uma poética da tragédia, só desde Schelling uma filosofia do trágico". A extrema síntese da formulação poderá fazer com que não se perceba o filão do enunciado (na verdade, o prefácio do tradutor ajudará a diminuir o risco).

Conjunto de regras
Como a "Poética" é uma obra em que o filósofo grego pouco se detinha nos problemas teóricos que formulava -como a questão da mímesis e a do efeito catártico da obra teatral-, seu pequeno tratado se detinha nas normas seguidas pelos gêneros, sobretudo a tragédia. Seu propósito descritivo e taxinômico teve o infortúnio de ser lido como um conjunto de regras a ser obedecido. E a poética se enrijeceu em preceptística. Como tal veio a ser lida, sobretudo depois de sua redescoberta pelos renascentistas italianos. Então normativa, a "Poética" veio a servir à sistematização mais extensa da retórica (serão úteis ao leitor os capítulos 9-13 de "A History of Literary Criticism in the Italian Renaissance" (1974), de Bernard Weinberg).
Vista como uma espécie de "vade mecum" normativo, a "Poética" gerou em torno de si um vácuo: pouco se indaga sobre as chamadas belas-letras -o conceito de literatura inexistia-, em troca se prescrevem normas para seu uso e validade.
É contra esse vácuo da reflexão que se lançaria o Schelling de 21 anos de idade, abrindo caminho para a filosofia do trágico. Ao contrário do cunho classificatório saiba-se lá por que adotado por Aristóteles, as "Cartas" -dispomos em português da excelente tradução feita há vários anos por Rubens Rodrigues Torres Filho- pensavam o significado do trágico e, assim, inauguravam a reflexão teórica sobre a literatura e, a partir dela, sobre as artes.
Se considerarmos a extrema fecundidade intelectual alemã das últimas décadas do século 18 investida no campo estético -o Kant da terceira "Crítica", Goethe, Schiller, F. Schlegel, Novalis, Hegel, Schelling, pouco depois retomada por Schopenhauer e Nietzsche-, compreenderemos por que a filosofia do trágico dilatou seu horizonte e, chegando às primeiras décadas do século 20, esteve na base da teorização seminal do primeiro Lukács, de Adorno e Benjamin.
O que portanto Szondi chama de filosofia do trágico vinha cobrir uma deficiência que se originara na Antigüidade clássica. É certo que nem todo o legado que se constitui será positivo. Não é ocasional que Szondi tenha escolhido uma passagem das "Cartas", na verdade seu trecho mais significativo, e não da obra de maturidade do filósofo, sua "Filosofia da Arte". Pois o empenho filosófico, dirigindo-se ao objeto de arte como parte do esforço em descobrir uma explicação sistemática do mundo, tendeu a se desviar em um rumo dominantemente especulativo. Isto é, converteu a arte verbal ou, como em Hegel, o sistema das artes em parte concordante com sua explicação total do mundo. A arte, então, em vez de ser iluminada em sua problemática específica, se converteu em peça integrante de um sistema filosófico. É o que sucede com o próprio Schelling.

Se, nas "Cartas", o trágico encontrava sua raiz no conflito entre a liberdade do sujeito e o poder do mundo objetivo e, dada a desigualdade das forças, a punição do herói "era um reconhecimento da liberdade humana, uma honra concedida à liberdade", na "Filosofia da Arte" o conflito entre liberdade e necessidade passa a ter por meta a revelação da identidade entre ambas. A filosofia da identidade do filósofo esvazia a tensão que antes era reconhecida no trágico. Do mesmo modo, em Hegel, o trágico supõe a autodivisão ao lado da autoconciliação. Por isso, apesar do alto apreço de Szondi pelo método dialético hegeliano -entendido como o meio pelo qual o choque trágico entre aniquilamento e promessa de salvação se propaga além de si mesmo-, não há nenhuma tentativa por parte do autor em defender o estrito entendimento hegeliano da arte. Quem tiver dúvidas, é convidado a reler o que Szondi dirá adiante sobre Simmel: embora a concepção do trágico pelo autor da "Filosofia do Dinheiro" (1907) dependa de uma variável insuficiente -"o caráter vazio e sem conteúdo de seu conceito de vida"- e de outra, que recebe de Hegel -"a forma dialética de seu pensamento"-, ela é "a única em que se pode basear uma interpretação que pretenda encontrar, nas tragédias, configurações do trágico, e não a imagem refletida de seus próprios filosofemas". É, portanto, de maneira extremamente discreta que Szondi não só dispõe sua reflexão teórica como indica os limites dos pensamentos que destacou para a tarefa que se propôs. Como o entendo, seu exame de 12 concepções sobre o trágico visa menos a estabelecer um leque de interpretações diferentes -algumas vezes a mudança de uma para outra é quase insignificante- do que assinalar que: (a) o trágico supõe o choque entre as possibilidades de aniquilamento e salvação; não um choque qualquer, que se esgote em si mesmo, mas sim gerador de uma situação antes imprevisível; (b) "a motivação fundamental de todas as situações trágicas é a separação" (Goethe). Ou seja, ao contrário do que postularão Hegel e o Schelling da maturidade, o trágico cessa quando domina a reconciliação; (c) se o dilaceramento trágico não se encerra no "caso" que o provocou é porque só o dialético é adequado para tratá-lo. Esse ter conseqüências não significa que, uma vez instalado o trágico, seu desdobramento não possa receber uma configuração diversa -irônica, burlesca, cômica. É verdade que o leitor poderá aqui lamentar, e creio que com razão, que Szondi não haja se detido no que chama de "forma dialética". Ao não o fazer, deixa a dúvida de que a disposição dialética se confunda com a própria qualidade da obra. Noutras palavras, que não-dialético é apenas o conflito trivial ou aquele que o autor não soube livrar da acidentalidade. Será a falha superada pelas análises concretas da segunda parte? Tempo histórico Não cabendo demorar-me sobre ela, apenas acentuo que a parte analítica é triplicemente depurada. Em primeiro lugar, porque as peças escolhidas pertencem ao repertório fundamental do gênero. Sempre haverá a possibilidade de preferir-se alguma outra, mas as opções serão muito pequenas. Depurada, em segundo lugar, porque a linguagem epigramática do autor se concentra em acentuar, em cada peça, o absolutamente indispensável. Em terceiro lugar, porque suas interpretações libertam as reflexões que acolhem de qualquer "sotaque" de sistema filosófico.
Dito isso, e ante a vontade de ainda falar sobre as interpretações que se apresentam, devo exercer uma complicada aprendizagem: converter o epigrama de Szondi em telegrafia. Nesta, acentuo um primeiro dado: não parece acidental que o autor assinale a presença de Édipo no catolicismo contra-reformista de Calderón ou a de "Romeu e Julieta" em Gryphius ou como na "Fedra", de Racine, a concepção antiga do destino se converte de imposto de fora em algo auto-imposto por eros incontrolável. Se as peças dialogam entre si, o tempo histórico se encarrega de introduzir a margem que as distingue. Por isso mesmo não seria uma preceptiva ou uma visão histórica o instrumento adequado para compreendê-las, mas sim o que Szondi designa por "filosofia da história". A telegrafia se encerra com uma impressão para a qual não se apresentam justificações: a releitura conjunta das peças selecionadas concede ao "Édipo Rei" um patamar único.
Dele, apenas se aproximam Shakespeare e Racine. Em troca, "A Vida É Sonho" deixa um travo: a conversão de Segismundo, a partir da experiência do sonho mau, em príncipe bom não me convence. A cristianização do poder dissolve a "oposição irreconciliável" que Goethe percebia no trágico. Ademais, como a "forma dialética" é aí indiscutível, a peça de Calderón não demonstraria a presença de uma dialética que desserve à obra? São questões que passo ao leitor.

Luiz Costa Lima é ensaísta, crítico e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ). É autor de "O Redemunho do Horror" (ed. Planeta) e "Intervenções" (Edusp). Escreve regularmente na seção "Brasil 505 d.C." (depois de Cabral).


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