São Paulo, domingo, 11 de julho de 2004 |
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+ livros Em "Língua e Realidade", publicado originalmente em 1963, o pensador tcheco Vilém Flusser reflete sobre o alcance filosófico e estético da linguagem e da tradução A CONVERGÊNCIA DA GRANDE CONVERSAÇÃO
Susana Kampff Lages
Maravilhado, emocionado, enthusiasmado poderosos artigos abrassos grato grande
amigo." Com essas palavras
João Guimarães Rosa saudava em um telegrama Vilém Flusser, autor do livro "Língua e Realidade", publicado pela primeira
vez em 1963, guarnecido por uma bela ilustração de capa de Mira Schendel. Republicado agora (infelizmente em outra veste
gráfica, mas acompanhado de um prefácio
de Gustavo Bernardo e apresentação de
Norval Baitello Jr.), com pouco mais de 40
anos de distância, esse conjunto de reflexões sobre a linguagem, a multiplicidade
lingüística, a tradução e seu alcance filosófico e estético recoloca em cena a figura
multifacetada do carismático e polêmico
intelectual judeu tcheco Vilém Flusser,
companheiro de exílio, entre outros, de
Anatol Rosenfeld e Otto Maria Carpeaux.
Embora tenha tido parte de sua obra publicada entre nós ao longo desses 40 anos
-cabe destacar "Filosofia da Caixa Preta"
(Hucitec, 1985) e, mais recentemente, "Fenomenologia do Brasileiro" (Ed. Uerj) e
"Ficções Filosóficas" (Edusp, 1998)-, pode-se dizer que a obra do teórico da comunicação e das mídias Vilém Flusser, bastante conhecida no exterior, permanece
amplamente desconhecida no Brasil.
Produzida em parte substancial durante
os anos do exílio brasileiro (de 1940 a
1972), ela toma como ponto de partida para a reflexão elementos da cultura local: entre outros, a língua portuguesa falada no
Brasil (a língua "brasileira", como dizia
ele), o caráter do brasileiro, a obra de escritores como Guimarães Rosa, Haroldo de
Campos, Dora Ferreira da Silva e o filósofo
Vicente Ferreira da Silva, além da de artistas, igualmente exilados, como Mira
Schendel e Samson Flexor. Essa reflexão
que se preocupa em fazer dialogar a cultura, a literatura e a filosofia brasileiras do
seu tempo com filósofos e autores europeus se exprime num estilo claro, didático
até, próximo ao de seus contemporâneos
Rosenfeld e Carpeaux.
Entretanto o arcabouço bem estruturado
comporta teses sempre polêmicas e nem
sempre aceitas de modo unânime, uma vez
que redigidas numa linguagem de caráter
mais jornalístico, diversa do estilo prezado
pelo ambiente acadêmico de sua época.
Para Flusser, o estilo acadêmico de escrever era um estilo de "tirar o corpo", isto é,
um estilo eivado de uma neutralidade que
lhe era avessa.
O leitor de hoje pode se ressentir ainda
desse tom jornalístico usado para tratar de
questões fundamentalmente teórico-filosóficas e reprovar o gesto largo que estabelece analogias num arco que pode partir de
Anaximandro, Platão e Aristóteles e chegar a Wittgenstein, Frege e Heidegger, passando por Kant, Hegel e Nietzsche, entre
outros, sem uma única citação textual dos
autores comentados. Só ouvimos as múltiplas vozes dos filósofos ou escritores convocados pelo filtro poderoso da voz do autor, que faz tudo convergir para sua "grande conversação".
Não por acaso o jornalista-filósofo Flusser compunha ensaios que designou "ficções filosóficas" e colocou entre as referências bibliográficas de seu livro sobre a linguagem a obra de H. Vaihinger "Die Philosophie des Als Ob" [A Filosofia do Como Se], uma obra precursora de muitas das questões envolvidas no chamado "linguistic turn" operado na reflexão filosófica do século 20 e que coloca em xeque as tradicionais distinções entre sujeito e objeto, linguagem-objeto e metalinguagem, entre outras. Em "Língua e Realidade", o recurso utilizado para encaminhar o leitor para tal sorte de questões é o da comparação entre as línguas por meio da tradução e da retradução de palavras de várias línguas, um recurso que estende a linguagem verbal a suas fronteiras mais vertiginosas. A tradução, para Flusser, representa de fato um modo permanente do ser no mundo. Muito antes de os estudos pós-coloniais, da pós-modernidade postularem o radical descentramento do sujeito, o discurso de Flusser já fluía de uma língua para outra (alemão, português, inglês, tcheco, entre outras), de um objeto para outro (arte, fotografia, burocracia, literatura, religião), de uma disciplina para outra (lingüística, filosofia, matemática), sem se deixar deter por barreiras de estados nacionais, por armaduras conceituais ou outras delimitações. Evidencia e tematiza, assim, de modo antecipador, a transitoriedade e o caráter dessubstacializado de indivíduos que vivem um quotidiano determinado por uma cultura atravessada pela(s) mídia(s). Um dos méritos dessa particular obra flusseriana -e seu interesse para filósofos, lingüistas, escritores, tradutores e para todos aqueles que se interessam pelos paradoxos que a multiplicidade lingüística coloca- é o fato de tirar também conseqüências teóricas de tais paradoxos, dando um passo além daquele dado pelo húngaro Paulo Rónai, outro companheiro de exílio, na reflexão sobre a difícil tarefa de transpor um texto de uma língua para a outra. Nem sempre, porém, Flusser percebe as armadilhas que seu próprio pensamento, que considera de forma pioneiramente positiva as distorções e os "erros" de tradução, pode trazer: ao discorrer sobre o uso das partículas "man" (alemão), "on" (francês) e "a gente/se", ele esquece o uso pessoalíssimo que elas podem adquirir em certos contextos, como opção estilística muito comum para o falante da língua alemã (e menos comum em português -motivo esse de muitos erros de tradução): "man" pode se referir de modo bem preciso ao próprio sujeito da enunciação, ao "eu" que fala. E, em textos posteriores, mais autobiográficos, Flusser, autor "fora de seu tempo", no dizer de José Arthur Giannotti, irá usar e abusar desse recurso gramatical que dessubstancializa o eu enunciador e ao mesmo tempo aponta narcisicamente para ele. Com isso realiza-se uma sutil ligação entre o seu discurso pessoal, simultaneamente jornalístico e didático-conversacional, e o discurso impessoal, distanciado, mas eminentemente crítico, da filosofia. Susana Kampff Lages é ensaísta e tradutora e autora de "Walter Benjamin - Tradução e Melancolia" (Edusp). Traduziu "O Desaparecido ou Amerika" (ed. 34), de Kafka. Texto Anterior: + livros: O Brasil entre a Fé o Ceticismo Próximo Texto: + livros: Em busca do real inominável Índice |
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