São Paulo, domingo, 11 de agosto de 2002

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+ literatura
POESIA EM CHAMAS


O crítico e tradutor escreve sobre o alemão Quirinus Kuhlmann, que, torturado e queimado vivo em 1689, é hoje considerado uma das figuras mais originais do barroco alemão e precursor da poesia digital


por Augusto da Campos

Estranhíssimo é o percurso do poeta barroco alemão Quirinus Kuhlmann, que nasceu em 25 de fevereiro de 1651 em Breslau (Silésia), filho de um artesão, de família protestante. Autor precoce de epigramas e epitáfios (1666), aos 20 anos publicou "Himmlische Libesküsse" (Beijos de Amor Celestes), conjunto de 50 sonetos, entre os quais o 41º, "Der Wechsel menschicher Sachen" (A Alternância das Coisas Humanas), notável exemplo de arte combinatória derivado das teorias do teólogo catalão Ramon Lull (1233-1316) e do jesuíta alemão Athanasius Kircher (1602-1680). Mais tarde vieram as duas séries de "Kühlpsalter" (1684-1686), 150 salmos que resumem a sua experiência de poeta visionário e extático.
Afirma uma antiga biografia que, caindo doente aos 19 anos, Kuhlmann teve uma visão terrível no terceiro dia de sua enfermidade, quando todos acreditavam que iria morrer. Ele se viu então cercado de todos os demônios do inferno, em pleno meio-dia. A essa visão sucedeu-se a de Deus, cercado por seus santos, com Jesus Cristo no meio. O jovem Kuhlmann sobreviveu e passou a sentir "coisas inenarráveis" e a ver-se para sempre acompanhado de um círculo de luz do seu lado esquerdo. Deixou a sua cidade para estudar jurisprudência na Universidade de Jena, curso que não chegou a completar. Viajando para Leide, por volta de 1673, recebeu grande influência doutrinária do místico Jakob Böhme (1575-1624), vindo a tornar-se, ele mesmo, o fundador e o pregador ambulante de uma seita messiânica que denominava "jesuélica", o que o levou a Londres, Paris, Amsterdã, Genebra e outras cidades, sempre perseguido pela fama de herético e agitador.
Em suas andanças proselitistas, chegou a tentar converter, sem êxito, o sultão da Turquia. Por fim, na Rússia, denunciado ao czar como herege pelo patriarca da Igreja Ortodoxa, foi preso, torturado e, por não renegar suas crenças, condenado à morte e queimado vivo em 4 de outubro de 1689, em Moscou. Kuhlmann é hoje considerado uma das figuras mais originais do barroco literário alemão.
Comentando o soneto 41 da sua coletânea "Beijos de Amor Celestes" [leia na pág. ao lado", esclarece o próprio Kuhlmann que o texto propicia milhares de outras combinações, todas elas contidas embrionariamente em seus 12 primeiros versos. Se permutarmos as 13 palavras centrais, deixando intactos, em suas posições, os primeiros e os últimos vocábulos de cada verso, são possíveis até 6.227.020.800 combinações. O escriba mais zeloso -afirma ele- que se dispusesse a colocar no papel mil desses versos por dia, teria trabalho para mais de um século. Diz ele ainda textualmente: "Nesse poema estão condensadas todas as sentenças da logo-reto-eto-filo-ritmo-geo-acústico-astro-médico-fisio-jurídico-grafologia e, quanto mais for ele sondado, mais coisas se encontrarão aí".
É ele um precursor, como se vê, das especulações permutatórias que encontraram em nosso tempo um exemplo conhecido nos "Cent Mille Milliards de Poèmes" (Cem Mil Bilhões de Poemas), de Raymond Queneau (1903-1976). Tenho minhas reservas quanto à experiência de Queneau, parecendo-me que as permutações, quando nada acrescentam ao poema, remanescendo num plano de indiferença receptiva, não logram ir além de curiosidade estatística. Mesmo assim, tais jogos combinatórios têm interesse e sugerem algo das configurações interativas da arte digital, que admitem a interferência do espectador na estrutura do texto. Não à toa, tanto os sonetos de Queneau quanto o de Kuhlmann já ganharam edições informático-permutatórias em sites da internet, a do poeta alemão a cargo de Ambroise Barras.
Estudiosos das práticas digitais como Paul Braffort e Jacques Donguy não deixam de referir o soneto de Kuhlmann entre os antecessores da poesia informatizada. O procedimento adotado pelo poeta barroco tem a reforçá-lo o isomorfismo com o tema escolhido -a alternância das coisas humanas-, o que lhe confere uma autenticidade semântica que não vislumbramos no artificialismo das construções apenas formais.
Mas há algo que me interessa especialmente no soneto de Kuhlmann. No original, todas as palavras internas são monossílabos, uma imposição que se faz necessária para manter a estrutura rítmica do texto. Isso dá ao poema uma liberdade gramatical e uma sonoridade peculiar, staccato-percussiva, que é raro encontrar em poemas de antes e depois.
Por isso mesmo, a minha tradução, bastante livre, procurou utilizar o maior número possível de palavras curtas, sem pretender chegar ao minimalismo kuhlmanniano, já que o estoque de palavras monossilábicas em português é incomparavelmente menor. Com vista a esse critério, assim como ao cuidado de manter sonoridade e ritmo aproximados aos do texto de partida, não me preocupei em seguir à risca a semântica do poema, mantendo-me atento tanto quanto possível às antinomias que vinculam muitas palavras duas a duas e que constituem um eixo de solidariedade significante nas numerosas trocas posicionais permitidas às palavras. No original, Quirinus repete 12 palavras. Uso de igual licença na tradução, ainda mais que autorizado pela escassez monossilábica em português. Dou ao leitor ao menos duas quadras inteiramente em monossílabos, para que possa vivenciar em nossa língua o efeito rítmico do original. Penso que o resultado geral pode dar uma idéia do funcionamento do poema, tal como foi concebido, e transmitir um pouco de sua intensidade e significação poética.
Outro exemplo notável da criatividade de Kuhlmann é o "Kühlpsalm 62", da segunda safra desse ciclo de poemas. Ele os chamava de "Kühlpsalter", fazendo jogo de palavras entre "kühl" (refrescante) e o seu próprio nome, mais "saltério", com a pretensão de trazer o bálsamo da sua fé a um mundo devastado por chamas demoníacas. "Balsalmos"? À falta de transposição melhor, prefiro referir-me a eles como "Quirinossalmos", não-solução que me parece soar melhor em português e que homenageia diretamente o poeta. Em clave mais críptica e individual, filiados que são ao idioleto "jesuélico", têm esses poemas o fervor místico de San Juan de la Cruz, de quem Kuhlmann traduziu com alta competência estrofes da "Noche Oscura" e do "Cantico Espiritual". Vertido para o português, o "Quirinossalmo 62" me lembra um pouco a linguagem dos poemas ocultistas de Fernando Pessoa.
Em suma, antecipando procedimentos do expressionismo alemão, em particular as infrações linguísticas de August Stramm, o mais radical dos seus protagonistas, e até práticas mais avançadas do moderno experimentalismo, esse poeta barroco, ainda mal conhecido, pouco estudado e reeditado, nos oferece uma poesia insólita. Sua exaltação espiritual não tem peias vocabulares. Ele altera funções gramaticais, arrisca neologismos e chega a aglomerados de palavras em liberdade pelos caminhos da arte combinatória, com grande impacto emocional e poético.
Por tudo isso, o fogo da vida e da poesia de Quirinus Kuhlmann não parece apagar-se. Incendiário de almas e palavras, o poeta-mártir queimado vivo já ressurge das cinzas, com trágico vigor, entre os humilhados e os ofendidos da poesia, sob o foco que ilumina, através dos séculos, os que recusam o banal das idéias e da linguagem.

Augusto de Campos é poeta, tradutor e ensaísta, autor de "Música de Invenção" e "Despoesia" (ed. Perspectiva), entre outros livros.


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