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+ cultura
A mutação religiosa que gerou a ética e a cultura do Ocidente é analisada em novo livro francês
Fé sem sacrifício
MAURICE SARTRE
O
sacrifício está no centro de
todos os cultos da Antigüidade greco-romana, ato
maior da vida religiosa em
torno da qual se reúne a comunidade, seja cívica, rural ou étnica. Desde
[o humanista francês] Guillaume
Budé [1467-1540], nos interrogamos
sobre as condições que permitiram a
passagem desse mundo para uma
sociedade cristã, marcada sobretudo
pela recusa do sacrifício.
Em uma brilhante série de quatro
aulas no Collège de France [editadas
em "La Fin Du Sacrifice" (O Fim do
Sacrifício), Odile Jacob, 224 págs.,
24,50 -R$ 71), o professor de religião
comparada] Guy Stroumsa amplia o
tema e oferece respostas às vezes
inesperadas, mas sempre estimulantes. Ele amplia o tema na medida em
que estima, a justo título, que a questão não é tanto a passagem do paganismo para o cristianismo, ou do
politeísmo para o monoteísmo,
quanto a mudança radical das estruturas da civilização, de uma modificação profunda na própria natureza
do fenômeno religioso. Mutação religiosa que cria os fundamentos da
civilização ocidental.
Foi graças
a sua herança judaica
que o
cristianismo
soube inovar e criar as novas estruturas religiosas da civilização greco-romana
Quatro revoluções constituem esse novo universo religioso: a transformação psicológica dos indivíduos que se interessam de modo
crescente pelo futuro da pessoa após
a morte; o desenvolvimento de religiões baseadas em um texto; a substituição dos sacrifícios sangrentos e
públicos; e, finalmente, a criação de
uma comunidade religiosa cujos
membros, voluntários, compartilham uma fé comum, substituindo
assim a religião cívica que se impõe a
toda a cidade sem que o cidadão precise aderir. Ora, em todos esses campos, o pensamento e a prática cristãos não podem ser explicados por
uma evolução interna da consciência greco-romana.
Explicação pelo judaísmo
Para Stroumsa, somente uma incursão pelo judaísmo permite compreender em profundidade essas
mutações: "É com as armas judaicas
que o cristianismo conquista o Império Romano". Assim, enquanto o
filósofo grego aprende a aceitar a
morte, o cristão revolta-se contra essa idéia e só consegue superá-la ao
desenvolver uma teoria do "além"
enraizada nas doutrinas judaicas da
retribuição do bem e do mal. Por
meio dela, impõe a idéia de que a ética pertence ao domínio do religioso,
segundo o qual a moral é assunto individual sem dimensão religiosa.
Deve-se insistir em que o cristianismo é devedor à tradição judia do
Livro, mesmo que o corpus cristão
tenha demorado para se constituir
como tal? Já no século 2º os cristãos
são vistos pelos pagãos como amadores de livros e escritores prolíficos.
Não é preciso considerar que a
idéia cristã de constituir um corpus
de textos autênticos, um Novo Testamento canônico, nasce da competição com os rabinos autores da
Mishná no final do século 2º? Assim,
as duas religiões, que se apóiam no
mesmo corpus escritural -o Antigo Testamento-, fornecem cada
uma seu comentário, sua própria interpretação, salientando seu distanciamento decisivo.
Quanto ao fim do sacrifício, o judaísmo exerce o papel de pioneiro
involuntário, pois, por duas vezes, a
destruição do templo de Jerusalém,
único local autorizado para sacrifício, obrigou os chefes de comunidade a inventar outros ritos coletivos.
Durante o exílio na Babilônia, a comunidade reunia-se ao redor da Torá; depois do incêndio de 70, uma
nova relação com Deus, individual e
muda, é substituída pela evidência
do sacrifício público.
É verdade que entre os cristãos um
sacrifício funda a nova fé, mas realizado de uma vez por todas; oração,
caridade, jejum, como no judaísmo
rabínico, estabelecem no cotidiano a
relação entre fiel e Deus, sem qualquer garantia de ser escutado e atendido. Quando o cristianismo triunfante proíbe os sacrifícios pagãos,
abole ao mesmo tempo a marca visível do poder do Estado nas províncias e obriga a uma certa dissolução
das comunidades cívicas.
A partir daí, as identidades individuais e coletivas não são mais medidas em termos culturais, mas religiosos.
A isso acrescentam-se outros motivos de confronto entre pagãos e
cristãos. Não um debate ao redor de
noções como o politeísmo e o monoteísmo, mas sobre o próprio lugar
da religião na sociedade. Para um
pagão como Celso, a religião é primeiro uma questão de tradição cultural, e negar a religião tradicional
significa minar os próprios fundamentos da sociedade; para o cristão
Orígenes, a nova religião é em primeiro lugar uma verdade baseada
na revelação divina, e não pode ser
questionada.
Tudo separa essas duas visões do
religioso condenadas a excluírem-se
mutuamente e portanto a alimentarem a intolerância.
Mas o mais novo no ensaio de Guy
Stroumsa reside sem qualquer dúvida na demonstração de que "todos
os aspectos da "nova" religião que
emerge na Antigüidade tardia, o judaísmo parece tê-los experimentado
antes dos outros sistemas religiosos". Em outros termos, foi graças a
sua herança judaica que o cristianismo soube inovar e criar as novas estruturas religiosas da civilização greco-romana. Hipótese audaciosa,
mas que o rigor da exposição e a força dos argumentos com freqüência
transformam em convicção.
Este texto foi publicado originalmente no
diário francês "Le Monde".
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.
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