São Paulo, domingo, 11 de setembro de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ cultura

A mutação religiosa que gerou a ética e a cultura do Ocidente é analisada em novo livro francês

Fé sem sacrifício

MAURICE SARTRE

O sacrifício está no centro de todos os cultos da Antigüidade greco-romana, ato maior da vida religiosa em torno da qual se reúne a comunidade, seja cívica, rural ou étnica. Desde [o humanista francês] Guillaume Budé [1467-1540], nos interrogamos sobre as condições que permitiram a passagem desse mundo para uma sociedade cristã, marcada sobretudo pela recusa do sacrifício.
Em uma brilhante série de quatro aulas no Collège de France [editadas em "La Fin Du Sacrifice" (O Fim do Sacrifício), Odile Jacob, 224 págs., 24,50 -R$ 71), o professor de religião comparada] Guy Stroumsa amplia o tema e oferece respostas às vezes inesperadas, mas sempre estimulantes. Ele amplia o tema na medida em que estima, a justo título, que a questão não é tanto a passagem do paganismo para o cristianismo, ou do politeísmo para o monoteísmo, quanto a mudança radical das estruturas da civilização, de uma modificação profunda na própria natureza do fenômeno religioso. Mutação religiosa que cria os fundamentos da civilização ocidental.

Foi graças a sua herança judaica que o cristianismo soube inovar e criar as novas estruturas religiosas da civilização greco-romana Quatro revoluções constituem esse novo universo religioso: a transformação psicológica dos indivíduos que se interessam de modo crescente pelo futuro da pessoa após a morte; o desenvolvimento de religiões baseadas em um texto; a substituição dos sacrifícios sangrentos e públicos; e, finalmente, a criação de uma comunidade religiosa cujos membros, voluntários, compartilham uma fé comum, substituindo assim a religião cívica que se impõe a toda a cidade sem que o cidadão precise aderir. Ora, em todos esses campos, o pensamento e a prática cristãos não podem ser explicados por uma evolução interna da consciência greco-romana.

Explicação pelo judaísmo
Para Stroumsa, somente uma incursão pelo judaísmo permite compreender em profundidade essas mutações: "É com as armas judaicas que o cristianismo conquista o Império Romano". Assim, enquanto o filósofo grego aprende a aceitar a morte, o cristão revolta-se contra essa idéia e só consegue superá-la ao desenvolver uma teoria do "além" enraizada nas doutrinas judaicas da retribuição do bem e do mal. Por meio dela, impõe a idéia de que a ética pertence ao domínio do religioso, segundo o qual a moral é assunto individual sem dimensão religiosa.
Deve-se insistir em que o cristianismo é devedor à tradição judia do Livro, mesmo que o corpus cristão tenha demorado para se constituir como tal? Já no século 2º os cristãos são vistos pelos pagãos como amadores de livros e escritores prolíficos.
Não é preciso considerar que a idéia cristã de constituir um corpus de textos autênticos, um Novo Testamento canônico, nasce da competição com os rabinos autores da Mishná no final do século 2º? Assim, as duas religiões, que se apóiam no mesmo corpus escritural -o Antigo Testamento-, fornecem cada uma seu comentário, sua própria interpretação, salientando seu distanciamento decisivo.
Quanto ao fim do sacrifício, o judaísmo exerce o papel de pioneiro involuntário, pois, por duas vezes, a destruição do templo de Jerusalém, único local autorizado para sacrifício, obrigou os chefes de comunidade a inventar outros ritos coletivos. Durante o exílio na Babilônia, a comunidade reunia-se ao redor da Torá; depois do incêndio de 70, uma nova relação com Deus, individual e muda, é substituída pela evidência do sacrifício público.
É verdade que entre os cristãos um sacrifício funda a nova fé, mas realizado de uma vez por todas; oração, caridade, jejum, como no judaísmo rabínico, estabelecem no cotidiano a relação entre fiel e Deus, sem qualquer garantia de ser escutado e atendido. Quando o cristianismo triunfante proíbe os sacrifícios pagãos, abole ao mesmo tempo a marca visível do poder do Estado nas províncias e obriga a uma certa dissolução das comunidades cívicas.
A partir daí, as identidades individuais e coletivas não são mais medidas em termos culturais, mas religiosos.
A isso acrescentam-se outros motivos de confronto entre pagãos e cristãos. Não um debate ao redor de noções como o politeísmo e o monoteísmo, mas sobre o próprio lugar da religião na sociedade. Para um pagão como Celso, a religião é primeiro uma questão de tradição cultural, e negar a religião tradicional significa minar os próprios fundamentos da sociedade; para o cristão Orígenes, a nova religião é em primeiro lugar uma verdade baseada na revelação divina, e não pode ser questionada.
Tudo separa essas duas visões do religioso condenadas a excluírem-se mutuamente e portanto a alimentarem a intolerância.
Mas o mais novo no ensaio de Guy Stroumsa reside sem qualquer dúvida na demonstração de que "todos os aspectos da "nova" religião que emerge na Antigüidade tardia, o judaísmo parece tê-los experimentado antes dos outros sistemas religiosos". Em outros termos, foi graças a sua herança judaica que o cristianismo soube inovar e criar as novas estruturas religiosas da civilização greco-romana. Hipótese audaciosa, mas que o rigor da exposição e a força dos argumentos com freqüência transformam em convicção.


Este texto foi publicado originalmente no diário francês "Le Monde".
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


Texto Anterior: + autores: A ficção acadêmica
Próximo Texto: Eis aqui tudo de novo
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.