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EIS AQUI TUDO DE NOVO
COMO O 11 DE SETEMBRO E O TSUNAMI,
OS EFEITOS DO KATRINA DESAFIAM
A CAPACIDADE DE REFLEXÃO DA CULTURA
CONTEMPORÂNEA E COLOCAM
EM XEQUE A COMPREENSÃO
DE MUNDO NORTE-AMERICANA,
QUE VÊ NO DOMÍNIO DA NATUREZA
E NO AVANÇO DE SUAS
FRONTEIRAS O FUNDAMENTO
DE SUA GRANDEZA E SINGULARIDADE
JOÃO CEZAR DE CASTRO ROCHA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Num intervalo relativamente curto, um ato político e
dois eventos naturais desafiam a capacidade de reflexão contemporânea. O ataque às
torres gêmeas em Nova York produziu uma avalanche de textos só comparável às recentes catástrofes: tsunami na África e na Ásia; furacão
nos Estados Unidos.
O ataque às torres gêmeas foi
prontamente reduzido a um conjunto de teorizações. Naturalmente,
não pretendo discuti-las, mas assinalar que isso ocorreu mediante a
"narrativização" do evento. Como
se tratava de evento causado por
agentes históricos, com motivações
particulares, os repórteres da CNN,
desde o primeiro momento, puderam apresentar inúmeras explicações para os motivos subjacentes ao
atentado, logo considerado como
um gesto de conseqüências trágicas.
Repito: não me interessa discutir as
análises, mas ressalvar sua ocorrência, simultânea à transmissão do
evento.
Já as catástrofes naturais apresentam um sério desafio à reflexão contemporânea, assim como à própria
cobertura jornalística. Numa cultura
secularizada, como "narrativizar" a
erupção vulcânica que deu origem
ao tsunami? Como atribuir "sentido" aos ciclones tropicais migratórios que se originam sobre os oceanos, provocando furacões? Se não
cabe atribuir semelhantes desastres
naturais à Providência, e, ao mesmo
tempo, se não faz sentido imputá-los
a agentes históricos, então, como representar "narrativamente" tais catástrofes? Contudo, numa época em
que a técnica tornou-se um fetiche
em si mesmo, como aceitar a incapacidade nem tanto de previsão
quanto de controle dos efeitos das
catástrofes?
Talvez essa seja uma distinção útil
para começar a refletir sobre o problema. Deveríamos evitar o termo
"tragédia" ao descrever eventos como o tsunami ou o furacão Katrina
-embora seja o recurso favorito da
cobertura da grande imprensa que,
em geral, substitui o caráter propriamente irrepresentável da explosão
de uma força natural pela produção
em série de uma miríade de histórias individuais de resgate, heroísmo, desespero, esperança. A dificuldade de lidar com tais catástrofes relaciona-se precisamente à resistência que oferecem à narrativa.
Diante da impossibilidade de escolher prontamente adversários,
bodes expiatórios, como contar histórias? Entretanto, sem relatos, não
mais podemos "humanizar" a natureza. Estamos, portanto, órfãos de
modelos narrativos satisfatórios.
O dilema não é nada novo. O terremoto de Lisboa, que literalmente
lançou por terra o ideal iluminista
de um progresso constante e ininterrupto, foi encarado por Voltaire
com a ironia de Cândido -dado o
ânimo secularizador das Luzes, a solução era adequada. Muito antes,
porém, na gênese de boa parte de
nossos modelos narrativos, toda
sorte de catástrofes naturais podia
ser imediatamente reduzida à narrativa-matriz: sinal inequívoco da ira
divina, reedição do merecido castigo que, desde o pecado original, regularmente se aplica à humanidade.
O dilema também interessou a
Machado de Assis. Num conto pouco discutido, "Na Arca - Três Capítulos Inéditos do Gênesis", imaginou uma situação-limite, no entre-lugar da tragédia e da catástrofe que
constitui o nó górdio a ser enfrentado hoje. Entre os escolhidos para recomeçar a humanidade, após o terrível castigo do dilúvio, dois filhos
de Noé, Jafé e Sem, iniciam uma disputa relativa à futura divisão das terras ainda sob as águas. O calor da
disputa faz com que não cedam
nem mesmo à autoridade paterna.
Desiludido, Noé lança uma profecia,
enigmática para seus filhos, mas traduzível em momentos históricos os
mais diversos: "Eles ainda não possuem a terra e já estão brigando por
causa dos limites. O que será quando vierem a Turquia e a Rússia?".
Destino manifesto
Enquanto existirem russos e turcos, enquanto houver promessa de
inimigos, Jafé e Sem defenderão seus
pontos de vista e, assim, manterão o
dilúvio longe dos olhos. Um dos
problemas contemporâneos é que a
secularização da cultura obriga a enfrentar tsunamis, furacões e toda
sorte de catástrofes sem recorrer aos
tradicionais recursos de narrativização da natureza e à atribuição de culpas a bodes expiatórios -os "inimigos". De um lado, a catástrofe provocada pelo furacão Katrina evidencia esse problema, e, de outro, certa
característica da cultura norte-americana talvez contribua para agravar
sua complexidade.
A ideologia do "destino manifesto" supõe uma compreensão particular do relacionamento da história
do país com a natureza. Em 1893,
Frederick Jackson Turner (1861-1932) realizou sua mais famosa conferência, "The Significance of the
Frontier in American History" [O
Significado da Fronteira na História
Americana], texto cuja influência se
estendeu por décadas e que ainda
hoje sobrevive nas fantasias imperiais de George W. Bush.
Segundo Turner, até o final do século 19, cada nova geração de norte-americanos defrontou-se com uma
fronteira potencialmente móvel,
pois o solo ainda não havia sido totalmente ocupado. Desse modo, a civilização norte-americana plasmou-se no embate constante com vastas
extensões de terra, incluindo-se nesse embate o genocídio das populações nativas, condição "sine qua
non" para a anexação crescente de
territórios a um país em expansão
aparentemente interminável.
Contudo, em 1893, as fronteiras já
estavam definidas. Por isso mesmo,
Turner decidiu estudar sua importância na formação do homem norte-americano, uma vez que daí em
diante uma nova forma de convívio
deveria impor-se (observe-se, de
passagem, a semelhança com o método posterior de Gilberto Freyre,
que estudou a relevância da família
patriarcal na gênese da civilização
brasileira no momento em que seu
declínio era fato consumado).
Na visão otimista de Turner, a
fronteira instável teria propiciado o
surgimento do "individualismo democrático norte-americano", com
base na livre iniciativa e na capacidade de adaptar as circunstâncias exteriores ao próprio interesse. A teoria
da fronteira implicava o domínio
das forças da natureza, vistas como
argila para a construção do país. Nas
artes plásticas, desde o final da década de 1840, esse sentimento já tinha
dado frutos nas telas da "New Hudson River School", isto é, na pintura
das paisagens naturais norte-americanas. Ao contrário do dilema brasileiro oitocentista, em que a exuberância da natureza tropical ameaçava o projeto civilizatório, nos Estados Unidos, a natureza, em princípio inesgotável, representava a promessa do progresso infinito.
No momento em que as fronteiras
nacionais se estabilizaram, um novo
"limite" foi criado, na imagem nada
sutil da política do "Big Stick", de
Theodor Roosevelt (1858-1919), presidente dos Estados Unidos de 1901 a
1909. No fundo, trata-se da política
revivida pelos atuais falcões da "diplomacia" norte-americana. Roosevelt inaugurou sua política de intervenção na América Latina em 1905,
invadindo a República Dominicana.
A atual política externa do governo
Bush, com base no que denomina
"ataque preventivo", tem sua origem ideológica tanto na tese da fronteira de Turner quanto na violência
imperial de Roosevelt.
Nessa tradição, não há lugar para
refletir sobre a natureza em si mesma; ela é um mero meio para o progresso, deve ser moldável aos propósitos imediatos, numa espécie de
atualização perversa e, sobretudo,
antiintelectual da "dialética da ilustração", tal como definida por Adorno e Horkheimer. Assim, o tsunami
pôde render narrativas porque se
trata de um fenômeno ocorrido a
grande distância, logo, "admirado"
com toda segurança numa surpreendente vulgarização da experiência do "sublime", como imaginada pelos filósofos do século 18.
Já o furacão Katrina ocasionou
uma paralisia temporária: como entender tal catástrofe no interior das
fronteiras norte-americanas? Paralisia semelhante tomou conta do governo norte-americano na época
dos ataques às torres gêmeas; entretanto a reação foi muito mais rápida,
afinal, havia adversários autodeclarados: a narrativização do episódio
se fez praticamente por si mesma.
A inércia inicial do governo norte-americano talvez expresse mais que
o óbvio: há uma questão étnica e
econômica na negligência observada; ora, se a catástrofe ocorresse na
Nova Inglaterra, o atendimento às
vítimas seria imediato. Há uma
questão política: a dispersão de forças, decorrente da invasão do Iraque. Contudo, por que não pensar
em outra dimensão?
A civilização norte-americana parece despreparada para enfrentar catástrofes no interior de suas fronteiras. É como se não pudesse aceitar a
incapacidade da ação humana diante de um fenômeno natural de tais
proporções. O descaso do governo
Bush com o Protocolo de Kyoto traduzia essa arrogância, típica do homem de fronteira e definidora de
sua política "externa".
Os tempos mudaram. Não se dispõe de turcos, tampouco de russos
que acusar. Eis como Machado de
Assis concluiu o conto: "A arca, porém, continuava a boiar sobre as
águas do abismo". A agudeza do relato finalmente se tornou clara no
atual naufrágio da compreensão
americana da natureza.
João Cezar de Castro Rocha é professor de
literatura comparada na Universidade do
Estado do Rio de Janeiro e autor de, entre
outros, "Literatura e Cordialidade" (Eduerj).
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