São Paulo, domingo, 11 de setembro de 2005

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EIS AQUI TUDO DE NOVO

COMO O 11 DE SETEMBRO E O TSUNAMI, OS EFEITOS DO KATRINA DESAFIAM A CAPACIDADE DE REFLEXÃO DA CULTURA CONTEMPORÂNEA E COLOCAM EM XEQUE A COMPREENSÃO DE MUNDO NORTE-AMERICANA, QUE VÊ NO DOMÍNIO DA NATUREZA E NO AVANÇO DE SUAS FRONTEIRAS O FUNDAMENTO DE SUA GRANDEZA E SINGULARIDADE

JOÃO CEZAR DE CASTRO ROCHA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Num intervalo relativamente curto, um ato político e dois eventos naturais desafiam a capacidade de reflexão contemporânea. O ataque às torres gêmeas em Nova York produziu uma avalanche de textos só comparável às recentes catástrofes: tsunami na África e na Ásia; furacão nos Estados Unidos.
O ataque às torres gêmeas foi prontamente reduzido a um conjunto de teorizações. Naturalmente, não pretendo discuti-las, mas assinalar que isso ocorreu mediante a "narrativização" do evento. Como se tratava de evento causado por agentes históricos, com motivações particulares, os repórteres da CNN, desde o primeiro momento, puderam apresentar inúmeras explicações para os motivos subjacentes ao atentado, logo considerado como um gesto de conseqüências trágicas. Repito: não me interessa discutir as análises, mas ressalvar sua ocorrência, simultânea à transmissão do evento.
Já as catástrofes naturais apresentam um sério desafio à reflexão contemporânea, assim como à própria cobertura jornalística. Numa cultura secularizada, como "narrativizar" a erupção vulcânica que deu origem ao tsunami? Como atribuir "sentido" aos ciclones tropicais migratórios que se originam sobre os oceanos, provocando furacões? Se não cabe atribuir semelhantes desastres naturais à Providência, e, ao mesmo tempo, se não faz sentido imputá-los a agentes históricos, então, como representar "narrativamente" tais catástrofes? Contudo, numa época em que a técnica tornou-se um fetiche em si mesmo, como aceitar a incapacidade nem tanto de previsão quanto de controle dos efeitos das catástrofes?
Talvez essa seja uma distinção útil para começar a refletir sobre o problema. Deveríamos evitar o termo "tragédia" ao descrever eventos como o tsunami ou o furacão Katrina -embora seja o recurso favorito da cobertura da grande imprensa que, em geral, substitui o caráter propriamente irrepresentável da explosão de uma força natural pela produção em série de uma miríade de histórias individuais de resgate, heroísmo, desespero, esperança. A dificuldade de lidar com tais catástrofes relaciona-se precisamente à resistência que oferecem à narrativa.
Diante da impossibilidade de escolher prontamente adversários, bodes expiatórios, como contar histórias? Entretanto, sem relatos, não mais podemos "humanizar" a natureza. Estamos, portanto, órfãos de modelos narrativos satisfatórios.
O dilema não é nada novo. O terremoto de Lisboa, que literalmente lançou por terra o ideal iluminista de um progresso constante e ininterrupto, foi encarado por Voltaire com a ironia de Cândido -dado o ânimo secularizador das Luzes, a solução era adequada. Muito antes, porém, na gênese de boa parte de nossos modelos narrativos, toda sorte de catástrofes naturais podia ser imediatamente reduzida à narrativa-matriz: sinal inequívoco da ira divina, reedição do merecido castigo que, desde o pecado original, regularmente se aplica à humanidade.
O dilema também interessou a Machado de Assis. Num conto pouco discutido, "Na Arca - Três Capítulos Inéditos do Gênesis", imaginou uma situação-limite, no entre-lugar da tragédia e da catástrofe que constitui o nó górdio a ser enfrentado hoje. Entre os escolhidos para recomeçar a humanidade, após o terrível castigo do dilúvio, dois filhos de Noé, Jafé e Sem, iniciam uma disputa relativa à futura divisão das terras ainda sob as águas. O calor da disputa faz com que não cedam nem mesmo à autoridade paterna. Desiludido, Noé lança uma profecia, enigmática para seus filhos, mas traduzível em momentos históricos os mais diversos: "Eles ainda não possuem a terra e já estão brigando por causa dos limites. O que será quando vierem a Turquia e a Rússia?".

Destino manifesto
Enquanto existirem russos e turcos, enquanto houver promessa de inimigos, Jafé e Sem defenderão seus pontos de vista e, assim, manterão o dilúvio longe dos olhos. Um dos problemas contemporâneos é que a secularização da cultura obriga a enfrentar tsunamis, furacões e toda sorte de catástrofes sem recorrer aos tradicionais recursos de narrativização da natureza e à atribuição de culpas a bodes expiatórios -os "inimigos". De um lado, a catástrofe provocada pelo furacão Katrina evidencia esse problema, e, de outro, certa característica da cultura norte-americana talvez contribua para agravar sua complexidade.
A ideologia do "destino manifesto" supõe uma compreensão particular do relacionamento da história do país com a natureza. Em 1893, Frederick Jackson Turner (1861-1932) realizou sua mais famosa conferência, "The Significance of the Frontier in American History" [O Significado da Fronteira na História Americana], texto cuja influência se estendeu por décadas e que ainda hoje sobrevive nas fantasias imperiais de George W. Bush.
Segundo Turner, até o final do século 19, cada nova geração de norte-americanos defrontou-se com uma fronteira potencialmente móvel, pois o solo ainda não havia sido totalmente ocupado. Desse modo, a civilização norte-americana plasmou-se no embate constante com vastas extensões de terra, incluindo-se nesse embate o genocídio das populações nativas, condição "sine qua non" para a anexação crescente de territórios a um país em expansão aparentemente interminável.
Contudo, em 1893, as fronteiras já estavam definidas. Por isso mesmo, Turner decidiu estudar sua importância na formação do homem norte-americano, uma vez que daí em diante uma nova forma de convívio deveria impor-se (observe-se, de passagem, a semelhança com o método posterior de Gilberto Freyre, que estudou a relevância da família patriarcal na gênese da civilização brasileira no momento em que seu declínio era fato consumado).
Na visão otimista de Turner, a fronteira instável teria propiciado o surgimento do "individualismo democrático norte-americano", com base na livre iniciativa e na capacidade de adaptar as circunstâncias exteriores ao próprio interesse. A teoria da fronteira implicava o domínio das forças da natureza, vistas como argila para a construção do país. Nas artes plásticas, desde o final da década de 1840, esse sentimento já tinha dado frutos nas telas da "New Hudson River School", isto é, na pintura das paisagens naturais norte-americanas. Ao contrário do dilema brasileiro oitocentista, em que a exuberância da natureza tropical ameaçava o projeto civilizatório, nos Estados Unidos, a natureza, em princípio inesgotável, representava a promessa do progresso infinito.
No momento em que as fronteiras nacionais se estabilizaram, um novo "limite" foi criado, na imagem nada sutil da política do "Big Stick", de Theodor Roosevelt (1858-1919), presidente dos Estados Unidos de 1901 a 1909. No fundo, trata-se da política revivida pelos atuais falcões da "diplomacia" norte-americana. Roosevelt inaugurou sua política de intervenção na América Latina em 1905, invadindo a República Dominicana. A atual política externa do governo Bush, com base no que denomina "ataque preventivo", tem sua origem ideológica tanto na tese da fronteira de Turner quanto na violência imperial de Roosevelt.
Nessa tradição, não há lugar para refletir sobre a natureza em si mesma; ela é um mero meio para o progresso, deve ser moldável aos propósitos imediatos, numa espécie de atualização perversa e, sobretudo, antiintelectual da "dialética da ilustração", tal como definida por Adorno e Horkheimer. Assim, o tsunami pôde render narrativas porque se trata de um fenômeno ocorrido a grande distância, logo, "admirado" com toda segurança numa surpreendente vulgarização da experiência do "sublime", como imaginada pelos filósofos do século 18.
Já o furacão Katrina ocasionou uma paralisia temporária: como entender tal catástrofe no interior das fronteiras norte-americanas? Paralisia semelhante tomou conta do governo norte-americano na época dos ataques às torres gêmeas; entretanto a reação foi muito mais rápida, afinal, havia adversários autodeclarados: a narrativização do episódio se fez praticamente por si mesma.
A inércia inicial do governo norte-americano talvez expresse mais que o óbvio: há uma questão étnica e econômica na negligência observada; ora, se a catástrofe ocorresse na Nova Inglaterra, o atendimento às vítimas seria imediato. Há uma questão política: a dispersão de forças, decorrente da invasão do Iraque. Contudo, por que não pensar em outra dimensão?
A civilização norte-americana parece despreparada para enfrentar catástrofes no interior de suas fronteiras. É como se não pudesse aceitar a incapacidade da ação humana diante de um fenômeno natural de tais proporções. O descaso do governo Bush com o Protocolo de Kyoto traduzia essa arrogância, típica do homem de fronteira e definidora de sua política "externa".
Os tempos mudaram. Não se dispõe de turcos, tampouco de russos que acusar. Eis como Machado de Assis concluiu o conto: "A arca, porém, continuava a boiar sobre as águas do abismo". A agudeza do relato finalmente se tornou clara no atual naufrágio da compreensão americana da natureza.


João Cezar de Castro Rocha é professor de literatura comparada na Universidade do Estado do Rio de Janeiro e autor de, entre outros, "Literatura e Cordialidade" (Eduerj).


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