São Paulo, domingo, 11 de setembro de 2005

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FUGA DE NOVA ORLEANS

MAIS QUE A BRUTALIDADE DE UM FURACÃO E UMA SUPOSTA "NATUREZA HUMANA", O COLAPSO SOCIAL DA CIDADE REVELA A FORÇA "SUBLIME" DA DINÂMICA CAPITALISTA

SLAVOJ ZIZEK
COLUNISTA DA FOLHA

Um dos heróis populares da Guerra do Iraque, que desfrutou de uma fama passageira e hoje se encontra esquecido, foi Muhammed Saeed al-Sahaf, o desafortunado ministro iraquiano da Informação que, nas entrevistas coletivas que concedia diariamente à imprensa internacional, heroicamente negava até mesmo os fatos mais evidentes, aderindo rigidamente à linha oficial iraquiana -mesmo quando os tanques norte-americanos estavam a poucas centenas de metros de seu escritório, ele continuou a afirmar que as imagens dos tanques dos EUA nas ruas de Bagdá veiculadas pela televisão não passavam de efeitos especiais criados em Hollywood.
De vez em quando, porém, ele afirmava uma verdade inesperada -por exemplo quando, confrontado com a alegação de que os norte-americanos estariam no controle de partes de Bagdá, retrucou: "Eles não estão em controle de nada. Eles não controlam nem mesmo a eles próprios!".
É como se, com o mergulho de Nova Orleans no caos, o velho ditado de Marx segundo o qual a tragédia se repete como comédia fosse invertido: o dito espirituoso de Saeed se converteu em tragédia. As autoridades norte-americanas, essa polícia universal que se esforça para controlar as ameaças à paz, liberdade e democracia em todo o mundo, perderam controle de parte da própria metrópole: durante alguns dias, a cidade regrediu, transformando-se em território selvagem em que se praticaram livremente os saques, assassinatos e estupros; ela se tornou a cidade dos moribundos e dos mortos, uma zona pós-apocalíptica na qual aqueles aos quais Giorgio Agamben chamou de "homini sacer" -os excluídos da ordem civil- andam livremente, à solta.


Não é hora de qualquer espécie de "schadenfreude", de sentimento de "bem-feito para os EUA, receberam o que mereciam"


Muita coisa pode ser dita sobre esse medo que permeia nossas vidas, o temor de que, por causa de algum acidente natural ou tecnológico (pane elétrica, terremoto...), toda teia social se desintegre -vale recordar o pavor despertado pelo chamado "bug do milênio", alguns anos atrás. Esse sentimento da fragilidade do laço social que nos une é em si mesmo um sintoma social: exatamente onde se esperaria uma manifestação de solidariedade social diante de um desastre, explode o egoísmo mais implacável e desumano.
Não é hora de qualquer espécie de "schadenfreude", de sentimento de "bem-feito para os EUA, receberam o que mereciam" -a tragédia é imensa, o que temos não é nenhuma inundação normal, já que Nova Orleans está situada abaixo do nível do mar, de modo que a água não irá sair sozinha. Mas é o momento certo para uma análise. Aconteceu alguma coisa que já vimos antes -onde mesmo?
As cenas que vimos nos noticiários de televisão nos últimos dias não podem deixar de nos trazer à mente uma série inteira de fenômenos da vida real, da mídia e culturais. A primeira associação que fazemos é evidentemente com relatos divulgados na televisão sobre localidades do Terceiro Mundo afundando no caos durante uma guerra civil (Cabul, Bagdá, Somália, Libéria).
E isso explica o que realmente espanta no eclipse de Nova Orleans: o que estávamos acostumados a ver acontecendo lá, agora aconteceu aqui (a ironia encerrada em tudo isso é que a Louisiana freqüentemente é descrita como "a república das bananas dos EUA", ou seja, a parte terceiro-mundista dos Estados Unidos). Essa é provavelmente uma das razões pelas quais a reação das autoridades se deu tarde demais: embora, racionalmente, se soubesse o que poderia acontecer, ninguém acreditava de fato nessa possibilidade. É como a ameaça da catástrofe ecológica: sabemos tudo sobre ela, mas, de algum modo, não acreditamos realmente que ela possa de fato acontecer.

A realidade
No entanto isso aconteceu mesmo nos EUA: em Hollywood, é claro, na série "Fuga de..." ("Fuga de Nova York" (1981), "Fuga de Los Angeles" (1996), ambos de John Carpenter), na qual uma megalópole norte-americana se vê isolada do domínio da ordem pública, e gangues criminosas assumem o controle da cidade. Mais interessante ainda, com relação a isso, é "O Efeito Dominó" (1996), de David Koepp, no qual, quando a energia elétrica deixa de funcionar numa cidade grande, a sociedade começa a desmoronar. O filme joga de maneira imaginativa com as relações raciais e com nossas atitudes preconceituosas com relação a estranhos.
Como diziam seus anúncios: "Quando nada funciona, tudo vale". E há ainda, no pano de fundo, a aura de Nova Orleans como cidade dos vampiros, do vodu e dos mortos-vivos, um lugar onde uma força espiritual sombria está sempre ameaçando explodir a teia social.
Assim, mais uma vez, como aconteceu no 11 de Setembro, a surpresa não foi apenas uma surpresa: o que aconteceu não foi que a torre de marfim fechada em si mesma da vida norte-americana foi rompida pela intrusão de uma realidade terceiro-mundista de caos social, violência e fome, mas sim, pelo contrário, que aquilo que até então era visto como algo que não faz parte de nossa realidade, algo do qual tínhamos consciência apenas como presença fictícia nas telas da televisão e do cinema, invadiu nossa realidade de maneira brutal.
Qual foi, então, a catástrofe que aconteceu em Nova Orleans? Quando a examinamos mais de perto, a primeira coisa que chama a atenção é sua estranha temporalidade, uma espécie de reação atrasada. Imediatamente após a chegada do furacão, houve um alívio momentâneo: o olho do furacão não atingiu Nova Orleans diretamente -passou a cerca de 40 quilômetros da cidade. Apenas dez pessoas foram dadas como mortas -então acreditou-se que o pior, a catástrofe temida, tinha sido evitado.
Então, nas horas seguintes à passagem do Katrina, as coisas começaram a dar errado realmente. Parte dos muros que protegem a cidade desabou, a cidade foi submersa, e a ordem social se desintegrou. Assim, a catástrofe natural (o furacão) revelou-se "socialmente mediada" de uma série de maneiras.
Para começar, existem bons motivos para suspeitar que os EUA vêm sendo alvos de mais furacões do que de costume em decorrência do aquecimento global provocado pelo homem. Em segundo lugar, o catastrófico efeito imediato do furacão (a cidade debaixo d'água) se deveu em grande medida ao erro humano: os diques protetores não foram bons o suficiente, e as autoridades não estavam preparadas para atender às necessidades humanitárias, que, no entanto, eram previsíveis.

Colapso social
O choque maior, porém, aconteceu depois, sob a forma do efeito social da catástrofe natural, a desintegração da ordem social -como se, numa espécie de reação atrasada, a catástrofe natural se repetisse sob a forma de catástrofe social. Como podemos interpretar esse colapso?
A primeira reação é a reação conservadora padronizada: os acontecimentos em Nova Orleans confirmam mais uma vez a fragilidade da ordem social e reforçam a necessidade de policiamento rígido e de pressão ética para prevenir a explosão de paixões violentas. A natureza humana é inerentemente má, o mergulho no caos social constitui uma ameaça permanente... Esse argumento também pode receber um viés racista: aqueles que descambaram na violência foram quase exclusivamente negros, logo, temos novas provas de que os negros não são realmente civilizados. As catástrofes naturais trazem à tona a ralé humana que é contida com dificuldade em tempos normais.
É claro que a resposta evidente a esse argumento é que o mergulho de Nova Orleans no caos apenas veio tornar visível a divisão racial persistente nos EUA: em Nova Orleans, 68% da população era negra; os negros eram os pobres e os marginalizados, que não possuíam meios de deixar a cidade a tempo e, por isso, foram deixados para trás, sem assistência e passando fome, de modo que não surpreende que tenham explodido. Suas explosões violentas podem ser vistas como ecos dos tumultos em Los Angeles decorrentes do incidente envolvendo Rodney King, ou mesmo dos distúrbios em Detroit e Newark no final dos anos 1960.
De maneira mais fundamental, o que dizer se a tensão que levou à explosão em Nova Orleans não foi a tensão entre a chamada "natureza humana" e a força da civilização que a conserva sob controle, mas a tensão entre os dois aspectos de nossa civilização, ela própria? E se, ao procurar controlar explosões como a de Nova Orleans, as forças da lei e da ordem se vissem diante da "natureza" do capitalismo em sua forma mais pura, a lógica da competição individual, da auto-afirmação impiedosa gerada pela dinâmica capitalista, uma "natureza" muito mais ameaçadora e violenta do que todos os furacões e terremotos?
Em sua teoria do sublime ("das Erhabene"), Immanuel Kant interpretou nosso fascínio com as manifestações explosivas do poder da natureza como prova negativa da superioridade do espírito sobre a natureza: por mais brutal que possa ser a manifestação da natureza feroz, ela não pode atingir a lei moral presente em nós. A catástrofe de Nova Orleans não oferece um exemplo semelhante do sublime? Por mais brutal que seja o vórtice do furacão, ele não é capaz de subverter o vórtice da dinâmica capitalista.

Slavoj Zizek é filósofo esloveno e autor de "Um Mapa da Ideologia" (Contraponto) e "O Mais Sublime dos Histéricos" (Jorge Zahar). Ele escreve regularmente no Mais!.
Tradução de Clara Allain


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