São Paulo, domingo, 11 de dezembro de 2005 |
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+ crítica Privilégio à realidade imediata desqualificou a obra de Botelho de Oliveira "Música do Parnaso", que faz 300 anos Dissonâncias intelectuais
IVAN TEIXEIRA
Assim como Oswald de Andrade -no processo de
criação de uma linguagem
adequada à poesia do século
20 no Brasil- teve de se apropriar
do discurso poético das vanguardas
européias, Manuel Botelho de Oliveira (1636-1711), escrevendo para o
seu tempo, partilhou do código artístico formado pela tradição dos
grandes poetas europeus do século
17. Logo, predomina em "Música do
Parnaso" (Lisboa, 1705) o discurso
agudo e engenhoso, baseado na metáfora antitética e na hipérbole metafórica, quase sempre fundidas no
típico processo de aproximar as diferenças e ampliar as paixões.
Ainda que quisesse dizer com isso que a Europa, por meio de seu livro, já se manifestava de forma eficaz na América, Botelho de Oliveira passaria para a história como o primeiro poeta do Brasil. Tinha 69 anos quando editou o livro de sua vida. Isso faz supor que, antes de serem impressos, os textos de "Música do Parnaso" tiveram circulação manuscrita e oral, conforme o padrão dominante na sociedade seiscentista da Bahia, regida, em parte, por regras de comunicação das coletividades sem imprensa, nas quais a leitura pública se impunha como forma corrente de veiculação de poesia e de outras modalidades de escritura. É o que deve ter ocorrido, por exemplo, com os sonetos que, em 1697, Botelho de Oliveira escreveu para as solenidades fúnebres de padre Antônio Vieira e de seu irmão Bernardo Vieira Ravasco. Por si só, esse tipo de encenação já conferia o estatuto de difusão sistêmica da poesia no Brasil, sempre conforme as normas do período, que certamente variavam de acordo com a especificidade do evento. Essa seria, em síntese, a poética da cultura no tempo de Botelho de Oliveira, cuja configuração estilística coincide com a poesia aguda e engenhosa do Seiscentismo, chamada "barroca" a partir do século 19. Aspectos utilitários Partilhando, no caso, da idéia de que se deve condenar no passado o que não interessa ao presente, Antonio Candido desqualificou frontalmente "Música de Parnaso". Em "Iniciação à Literatura Brasileira -Resumo para Iniciantes" (Humanitas), afirma: "A esse espírito entre devoto e cortesão se vincula um escritor de certo interesse, Manuel Botelho de Oliveira, exemplo típico do falseamento a que chegou o espírito barroco nos seus aspectos menores, quando a argúcia virou pedantismo e a sutileza um mero exibicionismo, dando a impressão de que a palavra rodava em falso, à procura de nada". Tal pensamento, que já aparecera em "Literatura e Sociedade" (1965), decorre da convicção de que a poesia seiscentista contribui para o mau gosto do leitor e para seu afastamento da realidade imediata dos fenômenos dignos de imitação artística, que, basicamente, seriam a emoção pessoal, os embates da vida em sociedade e a relação do indivíduo com os valores responsáveis pela formação da nacionalidade. Trata-se de concepção que privilegia a função formadora da literatura, vendo nela principalmente os aspectos utilitários, que acabam por se confundir com a noção de valor artístico. Botelho, ao contrário, dava prioridade ao prazer com as formas sutis de jogo intelectual, que, embora também visasse à educação da pessoa, não era concebido nos termos do século 20. O poeta não escreveu para a posteridade, e sim para os contemporâneos. Identidade e diferença Isso obriga a procurar em "Música do Parnaso" não apenas uma possível identidade com o nosso tempo mas, sobretudo, a diferença com o nosso e a identidade com o dele, porque, da percepção dessa diferença e dessa identidade, é que nasce a integração do leitor com a história, necessariamente impregnada das diversas configurações de cada época. Uma das conclusões a que se chega por meio da perspectiva que procura resgatar as condições históricas de produção do texto artístico é a relatividade dos valores. Chega-se, sobretudo, à idéia de que não deve haver a ambição por uma leitura verdadeira e excludente, mas por leituras mais ou menos coerentes com o modelo eleito pelo crítico. Quando Candido condena a maquinaria retórico-conceitual de um poeta como Botelho de Oliveira, não se pode esquecer que atuava a serviço de um engajamento poético. Como se sabe, o crítico foi um dos primeiros defensores conceituais da oralidade espontânea e do tema cotidiano da poética modernista. Por essa razão, quase sempre desconsiderou o estilo seiscentista, enxergando nele o perigo do mau gosto contra o despojamento de 1922. Ao criticar o suposto vazio verbal de Botelho de Oliveira, o ensaísta nada mais faz do que reafirmar seu compromisso com a realidade imediata do dia-a-dia, presumivelmente incorporada à poesia brasileira pelos modernistas. Contra esse possível argumento coloca-se a noção de que a matéria poética do século 20 não existe como mais "real" do que os temas de épocas anteriores. Por essa diretriz, a literatura modernista, tal como a arte de qualquer período, deve também ser entendida como convenção discursiva, e não como captação espontânea da realidade. Ler, hoje, "Música do Parnaso" seria, então, um gesto tão atual quanto apreciar Bandeira ou Oswald, com a vantagem talvez de atenuar um pouco a familiaridade modernista com o estranhamento da poética seiscentista. Ivan Teixeira é professor de literatura brasileira na Escola de Comunicações e Artes da USP e organizador da edição fac-similar de "Música do Parnaso", a sair pela ed. Ateliê. Texto Anterior: Comparação do telespectador brasileiro com Homer iniciou polêmica Próximo Texto: O espelho partido Índice |
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