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COM O OUTRO NO CORPO
O ESPELHO PARTIDO
APROPRIAÇÃO DOS TRAÇOS FACIAIS
DE OUTRA PESSOA ROMPE O SENTIDO
DE IDENTIDADE E RELATIVIZA O NARCISISMO
DA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA
"Um rosto extinto. Um grau
de extinção por certo nunca antes
atingido na espécie humana"
(Michel Tournier)
MARIA RITA KEHL
ESPECIAL PARA A FOLHA
O
que acontece com o sentimento de identidade de
uma pessoa que se depara,
diante do espelho, com um
rosto que não é seu? Como é possível
manter a convicção razoavelmente
estável que nos acompanha pela vida, a respeito do nosso ser -essa ficção indispensável- no caso de sofrermos uma alteração radical em
nossa imagem?
Perguntas como essas provocaram
um intenso debate a respeito da ética
médica depois do transplante de
parte da face em uma mulher que teve o rosto desfigurado por seu cachorro em Amiens, na França.
Deixo de lado os aspectos da discussão motivados pela rivalidade
profissional, em que argumentos
éticos podem mascarar a disputa
por prestígio e glória entre equipes
médicas da França e da Inglaterra.
Interessa-me a relação subjetiva entre a identidade e o rosto. Essa relação é tão íntima que, dentre as várias
possibilidades de mutilação física,
consideramos hediondas as que destroem partes do rosto. Nesses casos,
empregamos o termo desfiguração.
Quando o rosto se torna irreconhecível, a figura humana se desfaz.
A legislação britânica que condena o
transplante de rosto em consideração à (previsível) crise subjetiva ante
uma transformação radical dos traços da face desconsidera que, mais
despersonalizante do que encontrar
no espelho um rosto alheio, é não
encontrar rosto nenhum.
Ou não: talvez seja menos custoso
para um acidentado suportar o luto
pela perda da figura facial -e manter sob as ataduras a identificação
imaginária com o rosto antigo- do
que o estranhamento diante de um
rosto outro.
Ilusão necessária
Mas penso que vale a pena o trabalho de refazer essa identificação. O
que chamamos, confusamente, de
identidade não tem nada a ver com o
ideal -sempre fracassado- de nos
mantermos idênticos, seja a nós
mesmos, seja à imagem ideal que
pretendemos oferecer ao olhar do
outro. A identidade é uma ilusão necessária, de unidade e continuidade
do eu.
Ocorre que o eu se constitui a partir da imagem corporal. Nosso sentimento de permanência e unidade se
estabelece diante do espelho, a despeito de todas as mudanças que o
corpo sofre ao longo da vida. A
criança humana, em um determinado estágio de maturação, identifica-se com sua imagem no espelho. Nesse caso, um transplante (ainda que
parcial) que altera tanto os traços fenotípicos quanto as marcas da história de vida inscritas na face destruiria para sempre o sentimento de
identidade do transplantado?
Talvez não. Ocorre que o poder do
espelho -esse de vidro e aço pendurado na parede- não é tão absoluto: o espelho que importa, para o
humano, é o olhar de um outro humano. A cultura contemporânea do
narcisismo, ao remeter as pessoas
continuamente a buscar o testemunho do espelho, não considera que o
espelho do humano é, antes de mais
nada, o olhar do semelhante.
É o reconhecimento do outro que
nos confirma que existimos e que
somos (mais ou menos) os mesmos
ao longo da vida, na medida em que
as pessoas próximas continuam a
nos devolver nossa "identidade"
-aspas necessárias.
Sagrado e insubstituível
O rosto é a sede do olhar que reconhece e busca reconhecimento. O
rosto é sagrado, disse e escreveu insistentemente Emmanuel Lévinas.
Por que sagrado? O que há de insubstituível em um rosto, que faz dele o centro da nossa humanidade e a
sede imaginária do eu? É que o rosto
não se reduz à dimensão da imagem:
ele é a própria presentificação de um
ser humano, em sua singularidade
irrecusável. Além disso, dentre todas
as partes do corpo, o rosto é a que faz
apelo ao outro. A que se comunica,
expressa amor ou ódio e, acima de
tudo, demanda amor.
A literatura pode nos ajudar a
amenizar o drama da paciente francesa. O Robinson Crusoé do livro
"Sexta-Feira ou os Limbos do Pacífico" (Bertrand Brasil), de Michel
Tournier, perde a noção de sua identidade e enlouquece, na falta do
olhar de um semelhante que lhe
confirme que ele é um ser humano.
No início do romance o náufrago solitário tenta fazer da natureza seu espelho. Faz do estranho, familiar, trabalhando para "civilizar" a ilha e representando diante de si mesmo o
papel de senhor sem escravos, mestre sem discípulos.
Mas depois de algum tempo o isolamento degrada sua humanidade.
O Robinson de Tournier passa a se
identificar com os animais, falar
com os macacos e rolar na lama com
os porcos. "Narciso de um tipo novo, abismado de tristeza, com recrudescido nojo de si (...), compreendeu
que o rosto é essa parte da carne modelada e remodelada, aquecida e
permanentemente animada pela
presença dos nossos semelhantes."
Na versão de Tournier, a entrada
em cena do selvagem Sexta-Feira
vem salvar Robinson Crusoé não da
solidão, mas da loucura.
A paciente francesa, que agradeceu aos médicos a recomposição de
uma face humana, ainda que não seja a "sua", vai agora depender de um
esforço de tolerância e generosidade
por parte dos que lhe são próximos.
Parentes e amigos terão que superar o desconforto de olhar para ela e
não encontrar a mesma de antes.
Diante de um rosto outro, deverão
ainda assim confirmar que ela continua sendo ela. E amar a mulher estranha a si mesma que renasceu daquela operação.
Maria Rita Kehl é psicanalista e ensaísta,
autora de, entre outros livros, "Ressentimento" (Casa do Psicólogo).
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