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TRANSPLANTE DE SENTIDO
A CIRURGIA SE ASSEMELHA A UMA RECONEXÃO SIMBÓLICA COM O MUNDO,
MAS PODE TRAZER SEQÜELAS GRAVES PARA A PERSONALIDADE, COMO NÃO SER MAIS RECONHECIDO
DAVID LE BRETON
O
transplante realizado na
semana passada, em
Amiens, pela equipe do
professor Dubenard coloca em destaque numerosas questões
antropológicas. Para as sociedades
ocidentais, o rosto cristaliza o sentimento de identidade. De forma vivaz e misteriosa, ele traduz o absoluto de uma diferença individual concomitante à afiliação a um grupo.
O rosto faz sentido imediatamente; nenhum outro espaço do corpo é
mais apropriado para determinar a
singularidade e sinalizá-la como cerne do nexo social. Por ele o homem é
reconhecido, identificado, amado.
Como o sexo, é a mais forte fonte do
sentimento de identidade.
Um homem que se recusa a realizar uma ação que considera reprovável afirma que não o fará porque
"não poderia se olhar no rosto" caso
agisse de outra forma. Mas, sem que
tenha cometido nenhuma falta, um
homem desfigurado se vê confinado
a essa impossibilidade. Um ferimento que deixa uma cicatriz profunda
em um braço, perna ou no ventre
não coloca em questão de maneira
tão virulenta o sentimento de identidade, especialmente se a ferida não
vier a acarretar nenhuma seqüela
funcional.
Toda alteração no rosto marca a
personalidade do indivíduo em sua
forma mais profunda. É por intermédio do rosto que se pode desfrutar do significado e até mesmo do
valor da existência. A dolorosa experiência da desfiguração faz evocar o
fato de que o homem não vive apenas como corpo físico. O homem
habita um corpo imaginário, ao qual
atribui significados e valores, com os
quais integra o mundo a si mesmo e
se integra como pessoa ao mundo.
A desfiguração introduz uma brutal ruptura no cerne da aliança, já em
si razoavelmente problemática, mas
ainda assim passível de concretização, entre o corpo real e a imagem
que o indivíduo faz dele.
Suspensão do eu
De maneira provisória ou permanente, o homem desfigurado vive a
suspensão do eu, a privação simbólica de seu ser que apenas uma mobilização completa da vontade torna
possível reconstituir. Ele convive
com o sentimento de que sua identidade está desfeita, e se esvai a cada
olhar, seu mesmo ou de outros.
Inúmeras pessoas se sentem excluídas de si mesmas e do mundo,
em luto por seu próprio ser, ainda
que continuem a existir. A desfiguração constitui uma condenação à
morte simbólica.
A capacidade de superar esse revés
e de recuperar plenamente o prazer
de viver que se sentia anteriormente
está vinculada à experiência pessoal
do protagonista, à sua situação social e cultural, à sua idade, às qualidades das pessoas que o cercam.
Mas há casos em que ele sofre o desmantelamento de seu ser, a erradicação brutal de tudo aquilo que ele era
antes, e cuja perda lhe parece definitiva. A desfiguração dispõe sobre o
rosto uma máscara ou ricto como
que provocado por um banho de
ácido. Não ter mais figura humana
pode ser considerado uma metáfora
para a morte.
A perda do rosto, em termos psicológicos e sociais, equivale a perder
a posição que a vítima ocupa no
mundo. "Fazer face" aos problemas
passa a depender dos recursos íntimos do protagonista. A desfiguração salta aos olhos de todos, atrai o
olhar curioso dos passantes e causa
embaraço aos interlocutores que fazem com ela o seu primeiro contato.
Sob esse contexto tão pesado em
termos humanos, um transplante de
rosto é acima de tudo uma cirurgia
de sentido e tem por objetivo restaurar o prazer de viver de um paciente
ao qual foi amputada parte essencial
daquilo que fundamenta sua relação
com o mundo. A operação se assemelha ao restabelecimento simbólico de uma conexão com o mundo.
Mas transplantar um rosto consiste acima de tudo em transplantar
uma identidade, e a operação tem
conotações sísmicas para as bases da
personalidade. Receber o rosto de
outro é como se expor a não mais ser
reconhecido, a não mais poder se
olhar no espelho sem perceber outra
pessoa colada ao próprio rosto.
É certo que a cirurgia não representa a duplicação do rosto do doador da face transplantada, porque o
rosto será em parte adaptado à estrutura óssea do receptor, mas este
não recuperará o rosto que tinha
nem será poupado do choque de alteridade de que essa mudança se impregna. O rosto que passará a ostentar não será o mesmo que antes exibia. O risco de se sentir "possuído",
"despersonalizado", é tangível para
as personalidades frágeis e que não
tenham refletido o suficiente sobre a
questão antes do procedimento.
Presente envenenado
Um transplante de órgãos ou tecidos nem sempre é uma experiência
tranqüila para o paciente: muitas vezes o receptor de um transplante
considera o órgão recebido como
um presente envenenado. Uma intervenção desse tipo perturba o sentimento de identidade do paciente.
Para começar porque o torna devedor da pessoa da qual se origina o
órgão. Nas sociedades humanas,
presentear envolve uma reciprocidade que garante a dignidade igual
dos participantes na transação.
Receber implica retribuir, de uma
ou de outra forma. Os transplantes
de órgãos e tecidos sublinham a
questão do sacrifício, do preço simbólico a ser pago pela restauração de
uma saúde mais propícia, no caso a
recuperação de um rosto menos danificado, mais aceitável socialmente
e, se possível, parecido com aquele
que foi amputado.
Se viver desfigurado é um sofrimento sem fim que dilacera o eu, é
compreensível que o paciente escolha um sentido, mesmo que haja o
risco de que o preço a pagar seja
muito elevado. Além das severas restrições que a medicação diária contra a rejeição imporá, é preciso compreender que o rosto restaurado não
será igual ao rosto perdido, e é preciso manter a lucidez quanto às questões de identidade, a ambivalência
possível diante de um rosto marcado pela ambigüidade.
David le Breton é antropólogo e professor
na Universidade Marc Bloch, em Estrasburgo (França). É autor de "Adeus ao Corpo"
(Papirus) e "Des Visages" (Rostos, ed. Métailié), entre outros livros. A íntegra deste texto foi publicada no "Libération".
Tradução de Paulo Migliacci.
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