São Paulo, domingo, 11 de dezembro de 2005

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TRANSPLANTE DE SENTIDO

A CIRURGIA SE ASSEMELHA A UMA RECONEXÃO SIMBÓLICA COM O MUNDO, MAS PODE TRAZER SEQÜELAS GRAVES PARA A PERSONALIDADE, COMO NÃO SER MAIS RECONHECIDO

DAVID LE BRETON

O transplante realizado na semana passada, em Amiens, pela equipe do professor Dubenard coloca em destaque numerosas questões antropológicas. Para as sociedades ocidentais, o rosto cristaliza o sentimento de identidade. De forma vivaz e misteriosa, ele traduz o absoluto de uma diferença individual concomitante à afiliação a um grupo.
O rosto faz sentido imediatamente; nenhum outro espaço do corpo é mais apropriado para determinar a singularidade e sinalizá-la como cerne do nexo social. Por ele o homem é reconhecido, identificado, amado. Como o sexo, é a mais forte fonte do sentimento de identidade.
Um homem que se recusa a realizar uma ação que considera reprovável afirma que não o fará porque "não poderia se olhar no rosto" caso agisse de outra forma. Mas, sem que tenha cometido nenhuma falta, um homem desfigurado se vê confinado a essa impossibilidade. Um ferimento que deixa uma cicatriz profunda em um braço, perna ou no ventre não coloca em questão de maneira tão virulenta o sentimento de identidade, especialmente se a ferida não vier a acarretar nenhuma seqüela funcional.
Toda alteração no rosto marca a personalidade do indivíduo em sua forma mais profunda. É por intermédio do rosto que se pode desfrutar do significado e até mesmo do valor da existência. A dolorosa experiência da desfiguração faz evocar o fato de que o homem não vive apenas como corpo físico. O homem habita um corpo imaginário, ao qual atribui significados e valores, com os quais integra o mundo a si mesmo e se integra como pessoa ao mundo.
A desfiguração introduz uma brutal ruptura no cerne da aliança, já em si razoavelmente problemática, mas ainda assim passível de concretização, entre o corpo real e a imagem que o indivíduo faz dele.

Suspensão do eu
De maneira provisória ou permanente, o homem desfigurado vive a suspensão do eu, a privação simbólica de seu ser que apenas uma mobilização completa da vontade torna possível reconstituir. Ele convive com o sentimento de que sua identidade está desfeita, e se esvai a cada olhar, seu mesmo ou de outros.
Inúmeras pessoas se sentem excluídas de si mesmas e do mundo, em luto por seu próprio ser, ainda que continuem a existir. A desfiguração constitui uma condenação à morte simbólica.
A capacidade de superar esse revés e de recuperar plenamente o prazer de viver que se sentia anteriormente está vinculada à experiência pessoal do protagonista, à sua situação social e cultural, à sua idade, às qualidades das pessoas que o cercam. Mas há casos em que ele sofre o desmantelamento de seu ser, a erradicação brutal de tudo aquilo que ele era antes, e cuja perda lhe parece definitiva. A desfiguração dispõe sobre o rosto uma máscara ou ricto como que provocado por um banho de ácido. Não ter mais figura humana pode ser considerado uma metáfora para a morte.
A perda do rosto, em termos psicológicos e sociais, equivale a perder a posição que a vítima ocupa no mundo. "Fazer face" aos problemas passa a depender dos recursos íntimos do protagonista. A desfiguração salta aos olhos de todos, atrai o olhar curioso dos passantes e causa embaraço aos interlocutores que fazem com ela o seu primeiro contato.
Sob esse contexto tão pesado em termos humanos, um transplante de rosto é acima de tudo uma cirurgia de sentido e tem por objetivo restaurar o prazer de viver de um paciente ao qual foi amputada parte essencial daquilo que fundamenta sua relação com o mundo. A operação se assemelha ao restabelecimento simbólico de uma conexão com o mundo.
Mas transplantar um rosto consiste acima de tudo em transplantar uma identidade, e a operação tem conotações sísmicas para as bases da personalidade. Receber o rosto de outro é como se expor a não mais ser reconhecido, a não mais poder se olhar no espelho sem perceber outra pessoa colada ao próprio rosto.
É certo que a cirurgia não representa a duplicação do rosto do doador da face transplantada, porque o rosto será em parte adaptado à estrutura óssea do receptor, mas este não recuperará o rosto que tinha nem será poupado do choque de alteridade de que essa mudança se impregna. O rosto que passará a ostentar não será o mesmo que antes exibia. O risco de se sentir "possuído", "despersonalizado", é tangível para as personalidades frágeis e que não tenham refletido o suficiente sobre a questão antes do procedimento.

Presente envenenado
Um transplante de órgãos ou tecidos nem sempre é uma experiência tranqüila para o paciente: muitas vezes o receptor de um transplante considera o órgão recebido como um presente envenenado. Uma intervenção desse tipo perturba o sentimento de identidade do paciente. Para começar porque o torna devedor da pessoa da qual se origina o órgão. Nas sociedades humanas, presentear envolve uma reciprocidade que garante a dignidade igual dos participantes na transação.
Receber implica retribuir, de uma ou de outra forma. Os transplantes de órgãos e tecidos sublinham a questão do sacrifício, do preço simbólico a ser pago pela restauração de uma saúde mais propícia, no caso a recuperação de um rosto menos danificado, mais aceitável socialmente e, se possível, parecido com aquele que foi amputado.
Se viver desfigurado é um sofrimento sem fim que dilacera o eu, é compreensível que o paciente escolha um sentido, mesmo que haja o risco de que o preço a pagar seja muito elevado. Além das severas restrições que a medicação diária contra a rejeição imporá, é preciso compreender que o rosto restaurado não será igual ao rosto perdido, e é preciso manter a lucidez quanto às questões de identidade, a ambivalência possível diante de um rosto marcado pela ambigüidade.


David le Breton é antropólogo e professor na Universidade Marc Bloch, em Estrasburgo (França). É autor de "Adeus ao Corpo" (Papirus) e "Des Visages" (Rostos, ed. Métailié), entre outros livros. A íntegra deste texto foi publicada no "Libération".
Tradução de Paulo Migliacci.


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