São Paulo, domingo, 12 de janeiro de 2003

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LISBOA REINVENTADA


LIDERADA PELO MARQUÊS DE POMBAL, RECONSTRUÇÃO ALTEROU COMPLETAMENTE O ANTIGO TRAÇADO DE RUAS E OS LIMITES DE PROPRIEDADE, RENEGOU AS EXTRAVAGÂNCIAS ARQUITETÔNICAS BARROCAS E CRIOU UMA CIDADE PRAGMÁTICA, VOLTADA PARA O COMÉRCIO


por Kenneth Maxwell

Um mercador inglês, escrevendo de Lisboa para um amigo em 20 de novembro de 1755, descreveu o "terrível terremoto que deixou em ruínas a capital de Portugal..." como "um espetáculo de horror e incredulidade, assim como desolação para as testemunhas, como talvez não tenha havido igual desde a fundação do mundo". Este ensaio examina a destruição e a subsequente reconstrução da cidade de Lisboa.

À véspera do terremoto
Lisboa está situada na margem norte do estuário do rio Tejo. Em 1755, o coração cerimonial e comercial da cidade se centrava no palácio real, construído diretamente à margem do rio. No lado leste do palácio havia um grande largo, o Terreiro do Paço. Casas de mercadores e de varejo erguiam-se por uma série de vielas desordenadas e ruas estreitas, construídas sobre sedimentos aluviais entre colinas íngremes. O outro eixo urbano importante ficava para o interior, ao norte, uma grande praça pública chamada de Rossio. Essencialmente, a área entre esses dois espaços públicos urbanos, chamada de Baixa, constituía a antiga cidade medieval. Anteriormente sob domínio muçulmano, Lisboa foi conquistada por cavaleiros cristãos em 1147, e a parte moura da cidade compreendia uma série de becos estreitos e íngremes, construídos nas encostas a leste da Baixa, sob os muros da antiga cidadela, que foi rebatizada de Castelo de São Jorge após a Reconquista. Em meados do século 18 a cidade também se expandira para os montes a oeste e ao longo do rio. Aqui ficavam vários estabelecimentos religiosos e os palácios da aristocracia. Lisboa era um grande porto que se beneficiava do estuário protegido do Tejo e seu fácil acesso ao Atlântico. Depois do estabelecimento por Portugal de bases na Ásia, na África e nas Américas, durante o século 16, Lisboa se beneficiou do fluxo de produtos coloniais da Ásia e da América do Sul, assim como da renda de sua precoce participação no comércio de escravos e ouro na África Ocidental. A proximidade do palácio real com as fontes da renda colonial portuguesa -o palácio era literalmente vizinho à Casa da Índia, à Casa de Alfândega e ao estaleiro real, instituições através das quais fluíam os condimentos do Extremo Oriente, a pimenta da Índia e o açúcar, diamantes e ouro do Brasil- levou os franceses, no auge da expansão imperial portuguesa na Ásia, a zombar (invejosamente) do monarca português como o "Rei Merceeiro". Na mente dos pensadores iluministas do noroeste da Europa no século 18, Portugal também era um país imerso em obscurantismo. As incinerações, chamadas de autos-de-fé, que ocorriam no largo ribeirinho de Lisboa ao lado do palácio real constituíam as imagens mais conhecidas de Portugal no resto da Europa. Cerca de 45 mil pessoas foram investigadas pela Inquisição portuguesa entre 1536 e 1767, sendo vários milhares condenados e queimados nos dois séculos anteriores ao terremoto.

Patriarcado
A inovação arquitetônica durante o longo reinado (1706-50) de d. João 5º e sua mulher, a arquiduquesa Ana Maria da Áustria, fora financiada pelo ouro do Brasil. João 5º foi um monarca devoto (embora mulherengo); gastou fortunas em projetos para altares barrocos e também acumulou livros e quadros por toda a Europa. O maior empreendimento arquitetônico de João 5º foi o grande palácio-mosteiro em Mafra [vila localizada a 35 km ao norte de Lisboa", projetado pelo austríaco João Frederico Ludovice (Johann Friedrich Ludwig, 1670-1750) e concluído na década de 1740, baseado livremente no modelo do Escorial [monastério espanhol". Um viajante francês, ao observar Mafra, disse que só em Portugal um rei transformaria ouro em pedra. João 5º convencera o papa Clemente 11 a conferir o título e estatuto de patriarcado à cidade de Lisboa em 1716. Mas foi só em 1737, depois que muito ouro brasileiro foi gasto prodigamente em patrocínio romano, que d. Tomás de Almeida, que detinha o cargo, foi sagrado cardeal pelo papa Clemente 12. Uma corte patriarcal, modelada na Cúria romana, foi criada na capital portuguesa com grandes despesas. Além de Mafra, a outra grande obra arquitetônica concluída à véspera do terremoto de Lisboa foi o aqueduto de magnífica engenharia que levava água para a capital, construído sob a direção do principal engenheiro militar português, o brigadeiro Manuel da Maia. Tanto o palácio de Mafra quanto o aqueduto sobreviveram ao terremoto.

O terremoto
O grande terremoto de Lisboa ocorreu no dia de Todos os Santos, 1º de novembro de 1755. A escala do tremor foi provavelmente equivalente a 8,5 ou 9 graus na escala Richter. Ele causou pouco depois um "tsunami", uma onda gigantesca muito rara no oceano Atlântico; somente três ou quatro dessas ondas atingiram a costa atlântica nos últimos 300 anos de modo a afetar a área de Lisboa.
Portugal não é considerado uma área de alto risco para terremotos, no entanto houve abalos muito fortes ao longo dos séculos na área da cidade, geralmente com intervalos de 200 anos. Os terremotos registrados anteriormente em Lisboa ocorreram em 1344 (provavelmente ao redor de 7 ou 8 graus na escala Richter), em 1532 (provavelmente de 7 a 9 graus, que também produziu um "tsunami"), em 1755 (aproximadamente 9 graus, com três abalos posteriores e um "tsunami") e, mais recentemente, em 1969 (6 graus).
Em 1755 a destruição foi enorme: cerca de 55 conventos e mosteiros foram gravemente danificados; o cais ribeirinho afundou e desapareceu; e o palácio real foi destruído. É muito difícil avaliar o número exato de mortos -estimativas contemporâneas falam em dezenas de milhares-, mas, com toda a probabilidade, entre 10 mil e 15 mil pessoas morreram. A população de Lisboa na época estava entre 160 mil e 200 mil. Quando ocorreu o terremoto, na manhã do dia de Todos os Santos, as pessoas participavam de serviços religiosos, havia velas acesas nos altares e muitas igrejas desabaram sobre as congregações durante a missa.
Um mercador britânico em Lisboa fez um relato sucinto sobre sua experiência naquela manhã fatídica: "Lá estava eu sentado no primeiro dia deste mês, por volta das dez da manhã (o clima era ameno, e o céu não tinha uma nuvem), quando senti a casa começar a balançar suavemente; o que gradualmente aumentou com um ruído crescente, como o som de carruagens pesadas, passando depressa a certa distância, e assim imaginei a princípio a causa do ruído e tremor que ouvi e senti. Mas ambos aumentaram gradualmente, e, observando os quadros em meu quarto bater contra as paredes, levantei-me e imediatamente percebi que era um terremoto; e, como nunca tinha sentido o tremor de um deles, fiquei um bom momento muito calmamente observando suas operações; até que, de balançar e tremer, pensei que o quarto começava a ruir, o que me fez correr para um outro, mais interno, mais para o centro da casa; mas o movimento era então extremamente violento, e eu com dificuldade me mantinha de pé. Todas as partes da casa rachavam ao meu redor, as telhas estalavam sobre ela; as paredes inclinavam-se para todos os lados; as portas de uma bonita biblioteca que ficava em meu quarto, que estavam trancadas, abriram-se subitamente e os livros caíram das prateleiras internas, mas então eu já havia entrado no quarto adjacente; e escutei, com terror, o desmoronar das casas ao redor e os gritos e o choro de pessoas de todos os quarteirões".

Inundação
O mercador saiu para as ruas e registrou as reações quando o "tsunami" atingiu a cidade: "Não muito depois... um pânico geral se ergueu de uma multidão de pessoas que corriam da margem do rio, todas gritando que o mar estava entrando e certamente inundaria a cidade. Esse novo alarme criou tais horrores nas mentes agitadas da população que grandes números dela corriam gritando para a cidade arruinada novamente, onde, seguindo-se imediatamente um novo choque do terremoto, muitas delas foram enterradas nas ruínas das casas que desabavam. Esse alarme, no entanto, não foi totalmente infundado. Pois a água do rio subiu imediatamente mais de 20 pés perpendiculares e baixou novamente a seu nível natural em menos de um minuto. Eu fui um dos que continuaram onde estavam, mas o horror e o distúrbio da multidão foram tão realçados por esse fenômeno surpreendente que confesso que eles pareciam mais chocantes para mim do que as próprias operações do terremoto". Ele então conseguiu deixar a cidade e testemunhou o terceiro grande desastre que atingiu Lisboa naquela manhã.

"Em chamas"
"[...] Percebemos, pelas nuvens de fumaça que vimos subir, que ela estava em chamas; e depois soubemos, de pessoas que estavam em zonas elevadas quando o terremoto ocorreu, que os dois grandes abalos tinham durado apenas alguns minutos, antes de elas perceberem que as ruínas se haviam incendiado em seis ou sete locais diferentes. O primeiro a ser notado foi no convento ou igreja de São Domingos, no Rossio; o segundo, na boa-hora, perto do palácio; os demais em outras partes da cidade, todos avançando com grande fúria e queimando durante cinco ou seis dias sucessivos, reduziram toda a capital de Portugal a cinzas, exceto algumas casas nas franjas da cidade, que no entanto estão tão abaladas pelo terremoto que não se prestam para outro serviço além de, com a ajuda de andaimes, oferecer um abrigo atual para as multidões que, de outro modo, não teriam proteção nenhuma contra as inclemências do clima, que, com respeito à chuva e aos ventos cortantes, são frequentemente muito severos neste país durante grande parte do inverno." O cônsul britânico, escrevendo a Londres duas semanas depois do terremoto, contou uma história semelhante: "O primeiro abalo começou cerca de um quarto antes das dez da manhã, e, na medida em que pude avaliar, durou seis ou sete minutos, de modo que em um quarto de hora esta grande cidade estava em ruínas. Pouco depois, começaram vários incêndios, que queimaram durante cinco ou seis dias. A força do terremoto parecia estar imediatamente sob a cidade... Acredita-se que ele se descarregou no cais que vai da Casa da Alfândega em direção ao palácio real, que foi totalmente arrasado e desapareceu. Na hora do terremoto, as águas do rio ergueram-se 20 ou 30 pés...". Cerca de um terço da cidade foi totalmente destruído pelo terremoto e a inundação. O cônsul britânico escreveu em 13 de dezembro:

"Monte de entulho"
"[...] A parte da cidade próxima da água, onde ficavam o palácio real, os tribunais públicos, a Casa de Alfândega, a Casa da Índia, e onde a maioria dos mercadores negociava pela conveniência de suas transações comerciais, ficou tão completamente destruída pelo terremoto e pelo incêndio que nada restou além de um monte de entulho, em muitos lugares com vários andares de altura, algo incrível para os que não o testemunharam".
Os abalos posteriores causaram extensos danos em outros pontos de Portugal, foram sentidos até em Veneza e no sul da França e também alcançaram o Marrocos e o norte da África. Mas foi Lisboa que suportou o pior desastre. A maré sísmica e o incêndio destruíram a maior parte do centro da cidade entre o Rossio e a praça do Palácio. O solo aluvial nesse local provavelmente se liquefez. As colinas de ambos os lados da Baixa, a leste e oeste, foram menos afetadas, e os edifícios ao longo do estuário em direção ao Atlântico -onde a família real estava residindo no palácio de verão em Belém- sobreviveram com menos danos. A nova ópera, que tivera sua primeira apresentação em março daquele ano, também foi totalmente destruída. Esses danos e os sofridos por outros prédios importantes foram documentados em gravuras feitas por Jacques-Philippe le Bas em 1757, as imagens mais precisas hoje existentes de Lisboa após o terremoto. A escala do terremoto de Lisboa chocou a Europa. Na Grã-Bretanha, George 2º pediu que a Casa dos Comuns providenciasse "socorro rápido e eficaz", e os Comuns reagiram permitindo que o Tesouro fornecesse 100 mil libras em espécie e provisões, roupas e ferramentas. O impacto cultural do desastre foi profundo. Goethe, que tinha 6 anos na época, lembrou em sua autobiografia a reação de seus contemporâneos: "Talvez o Demônio do Medo nunca tivesse espalhado de modo tão rápido e poderoso seu terror sobre a Terra". O acontecimento também foi tema de ansiosos sermões clericais do outro lado do Atlântico, na Nova Inglaterra. A reação mais notória foi a de Voltaire (1694-1778). A catástrofe em Lisboa ocorreu em um momento crítico durante o Iluminismo, quando se começavam a levantar dúvidas sobre a crença excessivamente otimista na capacidade de conquista e realização da humanidade. Em seu "Poema sobre o Desastre de Lisboa, ou uma Análise do Axioma "Tudo Está Bem'", Voltaire deu uma visão muito pessimista do ocorrido: "Ó, míseros mortais! Ó, terra arrasada! Ó, odiosa reunião de toda a humanidade! Eterno sermão de sofrimentos inúteis! Filósofos desiludidos que gritam "tudo está bem", Corram a contemplar estas horríveis ruínas Essa devastação, esses restos, essas tristes cinzas dos mortos; Essas mulheres e crianças amontoadas umas sobre as outras, Esses membros dispersos sobre o mármore partido; Cem mil infelizes devorados pela terra Que, sangrando, lacerados e ainda vivos, Enterrados sob seus tetos sem socorro, na angústia Terminam seus tristes dias! Em resposta aos gritos abafados de suas vozes agonizantes, À visão terrível de suas cinzas fumegantes, Vocês dirão: "Isto é o resultado das leis eternas Que dirigem os atos de um Deus livre e bom!' E vocês dirão, vendo essa massa de vítimas: "Deus está vingado, suas mortes são o preço de seus crimes?' Que crime, que erro cometeram essas crianças Esmagadas, sangrando sobre o peito de suas mães? A Lisboa caída bebeu mais fundo do vício Que Londres, Paris ou a ensolarada Madri? Nestas, os homens dançam; em Lisboa o abismo boceja. Tranquilos espectadores da ruína de seus irmãos, Imunes a essa repulsiva dança da morte, Que calmamente buscam a razão dessas tempestades, Não as deixem açoitar sua própria segurança; Suas lágrimas se mesclarão livremente à inundação".

Protesto de Rousseau
Rousseau (1712-78), chocado com o que Voltaire escreveu, reafirmou as causas naturais dessas catástrofes e protestou numa carta a ele:
"Você teria preferido que esse terremoto houvesse ocorrido nas profundezas de um deserto e não em Lisboa. É possível duvidar que eles não ocorram nos desertos? Mas não falamos destes, porque não causam danos aos cavalheiros que vivem nas cidades, as únicas pessoas que levamos em consideração. Esses terremotos raramente prejudicam os animais e os selvagens que povoam escassamente essas regiões remotas e que não temem que os tetos caiam ou as casas desabem. Mas qual o significado desse privilégio? Isso realmente significa que a ordem do mundo natural deveria ser modificada para se conformar a nossos caprichos, que a natureza deve ser submetida às nossas leis e que, para impedi-la de causar um terremoto em determinado lugar, basta construirmos ali uma cidade?".
Na prisão em Veneza, tendo amargamente testado os limites venezianos da propriedade, outro contemporâneo, Casanova (1725-98), enxergou a oportunidade enquanto outros discutiam filosofia. Quando o abalo secundário balançou o palácio do doge [mais conhecido como palácio Ducal, localizado na praça San Marco], onde estava detido, Casanova notou que as telhas sobre sua cela se afrouxaram.


ROUSSEAU, CHOCADO COM O QUE VOLTAIRE ESCREVEU, REAFIRMOU AS CAUSAS NATURAIS DA CATÁSTROFE E PROTESTOU NUMA CARTA A ELE


"Enquanto estava imerso nesse mar revolto de idéias, aconteceu um fato que me lembrou o triste estado de espírito em que me encontrava. Eu estava de pé no sótão, olhando para cima, e meu olhar pousou na grande viga, que não balançava, mas estava virada sobre o lado direito, e então, com um lento e ininterrupto movimento na direção oposta, virou-se novamente e recolocou-se em sua posição original. Enquanto eu perdia o equilíbrio, ao mesmo tempo percebi que era o abalo de um terremoto. (...) Quatro ou cinco segundos depois o mesmo movimento ocorreu, e não pude impedir-me de dizer: "Mais um, ó meu Deus! Mas mais forte". Os guardas, aterrorizados com o que pensaram ser os delírios ímpios de um louco desesperado, fugiram em horror. Depois que eles se foram, enquanto eu avaliava a questão, descobri que observava o desmoronamento do palácio do doge como um fato que poderia me levar à liberdade; o imponente edifício, ao cair, poderia me atirar são e salvo, e consequentemente livre, na praça de São Marcos, ou na pior das hipóteses poderia apenas me esmagar sob suas ruínas. Na situação em que eu estava, a liberdade representa tudo, e a vida nada, ou melhor, muito pouco. Assim, no fundo de minha alma, comecei a enlouquecer. Esse terremoto era consequência daqueles que ao mesmo tempo destruíram Lisboa. (...) Sempre foi minha opinião que, quando um homem se propõe com determinação a fazer alguma coisa e não pensa em nada além de seu desígnio, deve ter sucesso apesar de todas as dificuldades em seu caminho: uma dessas pode transformá-lo em papa ou grão-vizir, ele pode derrubar uma antiga linhagem de reis -desde que saiba aproveitar sua oportunidade e seja um homem de tino e pertinácia. Para ter êxito, deve-se contar com a fortuna e desprezar todo fracasso, mas é uma operação das mais difíceis".

Reação prática
Mas, se o terremoto de Lisboa provocou um debate filosófico na Europa e permitiu que Casanova escapasse usando o ponto fraco no telhado que o terremoto lhe revelou de maneira tão fortuita, em Portugal propriamente a reação foi muito mais prosaica e prática. O rei de Portugal em 1755, d. José 1º de Bragança, e sua mulher, Maria Anna Vitória de Borbon, uma infanta espanhola, nunca haviam demonstrado grande interesse pelo governo, já que eram obcecados pela caça e pela ópera. O rei ficou totalmente paralisado e aterrorizado pelo terremoto. Embora estivesse fora de Lisboa e residindo em Belém, muito a oeste do centro da cidade, quando os abalos e o maremoto ocorreram, d. José ficou tão assustado que pelo resto da vida se recusou a dormir em qualquer construção de pedra. A família real mudou-se imediatamente para os jardins do palácio de Belém, para abrigos temporários. Mais tarde o rei e a corte se instalaram na colina acima de Belém, vivendo em casas de madeira e lona até o final do século 18. Com o monarca português incapaz de reagir à crise durante os dias críticos de confusão e pânico, a liderança foi assumida eficazmente por seu poderoso e ambicioso ministro, Sebastião José de Carvalho e Melo (1699-1782), mais conhecido por seu título posterior de marquês de Pombal, conferido em 1769. Os primeiros atos de Pombal foram enterrar os mortos e estabelecer a ordem. A escala da destruição era tal que a remoção dos corpos se tornou absolutamente essencial para evitar a disseminação de doenças e peste. Pombal convenceu o patriarca de Lisboa a autorizar que os corpos fossem recolhidos sem cerimônia, colocados em barcos, enviados para o Atlântico e despejados no oceano, sem os ritos fúnebres habituais. Ele trouxe tropas das guarnições do interior de Portugal para conter a desordem. Também deu aos juízes o poder de reagir instantaneamente em caso de saque ou assassinato; e eles agiram expeditamente.

Forcas por toda a cidade
Segundo o relato de uma testemunha, além dos mortos do terremoto logo havia cerca de 80 forcas armadas por toda a cidade, onde aqueles flagrados saqueando e cometendo outros crimes eram enforcados sumariamente. A reação imediata e draconiana de Pombal foi resumida na famosa frase atribuída a ele: "Enterrem os mortos e alimentem os vivos". Em sua caligrafia singularmente delicada, ele deu seu próprio relato sobre as três prioridades imediatas. A primeira era dispor dos mortos para evitar doenças; a segunda, alimentar a população (para realizar isso e deter os especuladores, Pombal impôs tetos para o preço do pão); e a terceira, impor a ordem pública. O fato de que a destruição de Lisboa oferecia grandes oportunidades para os planejadores urbanos não escapou a um jovem e ambicioso arquiteto escocês: Robert Adam (1728-91). Em Roma na época, Adam viu o terremoto como "um julgamento celestial em meu benefício". Ele aspirava a ser o arquiteto real de Lisboa e produziu esboços de como deveria ser a cidade reconstruída, baseando-se -ao que parece- no palácio Bellini e na grande praça diante da basílica de São Pedro em Roma. Os esboços incluíam um projeto urbanístico que previa uma grande bacia abrindo-se para o rio Tejo, rodeada de uma área para as casas da nobreza, por trás das quais haveria uma zona burguesa e, como descreveu Adam, com jardins públicos de ambos os lados. De modo geral, o projeto do jovem Robert Adam, com sua extravagância teatral barroca, baseava-se na suposição de que Lisboa seria reconstruída em um estilo arquitetônico que refletisse o meio século de mecenato português em Roma durante o reinado de d. João 5º. Mas isso não aconteceria. Na verdade, o estilo adotado para os edifícios da Lisboa reconstruída foi sob muitos aspectos muito mais próximo dos edifícios desenhados pelo pai de Robert Adam, o arquiteto escocês William Adam. Uma freira que escreveu de Lisboa para Roma, olhando para as ruínas da ópera e descrevendo-a como um antigo "centro de opulência, gala, grandiosidade e vaidade", captou de maneira mais precisa o ambiente sóbrio e utilitário em Portugal depois de novembro de 1755. A interessante história que se desenrolaria em Lisboa representou em certo sentido uma rejeição consciente da "vanitá", isto é, das extravagâncias barrocas e rococós tão proeminentes sob d. João 5º, e a adoção da "virtú", a imagem mais recatada, comercial, prática, pragmática, neopalladiana que passou a ser associada ao regime de Pombal.

A reconstrução
A decisão crucial que teria um enorme impacto sobre a cidade reinventada que Pombal imaginou ocorreu muito cedo, quando o todo-poderoso ministro entregou o processo de planejamento a engenheiros militares. Portanto os portugueses não chamaram arquitetos italianos, austríacos ou franceses, como haviam feito com frequência para seus grandes edifícios públicos na primeira metade do século 18; tampouco instituíram um concurso entre arquitetos internacionais, como esperava o jovem Robert Adam.
Em uma situação de emergência que exigia rápida reação, Pombal imediatamente chamou os engenheiros militares portugueses. Três em particular teriam papéis-chave: Manuel da Maia (1677-1768), que em 1755 tinha quase 80 anos, era o principal engenheiro militar do país e fora tutor em matemática e física de d. José; Eugênio dos Santos (1711-60), que estava na casa dos 40 anos e era coronel do corpo de engenharia; e Carlos (Karoly) Mardel (c. 1695-1763), um emigrado húngaro de quase 60 anos que tinha servido no corpo de engenharia militar português desde 1733, quando foi para Portugal trabalhar no aqueduto de Lisboa sob a supervisão de Manuel da Maia.
Os três eram profissionais experientes, acostumados a supervisionar a construção de edifícios civis e fortificações militares de grande escala e a administração dos recursos e da força de trabalho que isso representava.


HAVIA 80 FORCAS ARMADAS POR TODA A CIDADE, ONDE AQUELES FLAGRADOS SAQUEANDO E COMETENDO OUTROS CRIMES ERAM ENFORCADOS SUMARIAMENTE


Pombal deu a Maia a tarefa de elaborar o que ele chamou de "dissertação", detalhando as questões fundamentais a serem abordadas, e como estas, uma vez definidas, poderiam ser conduzidas da maneira mais eficaz. Nesse ínterim, Pombal aprovou legislação proibindo qualquer construção, ação ou venda de propriedade antes que o plano mestre fosse criado. Maia rapidamente entregou suas observações a Pombal, em 4 de dezembro de 1755. A dissertação de Maia examinava uma série de propostas sobre as possíveis opções de reconstrução de uma cidade depois de uma catástrofe como o terremoto. Estas incluíam considerações sobre se os detritos deveriam ser usados para aterrar as áreas baixas, que tamanho os edifícios deveriam ter idealmente em relação às ruas diante deles, e os dispositivos que deveriam ser adotados para o escoamento da água nas áreas baixas, de modo a tornar a construção sobre os aterros imune a riscos de inundação nas épocas de marés elevadas. Maia recomendou que qualquer reconstrução fosse proibida até que se formulasse e aprovasse um plano.

Impulso real
Ele examinou a opção de transferir completamente a cidade; por exemplo, se Lisboa deveria ser movida para oeste, em direção à área de Belém, onde o subsolo era mais forte e os prédios tinham resistido ao sismo. Argumentou que as ruas principais deveriam ter um padrão quadriculado e se destinar a objetivos comerciais, refletindo a importância do ouro e da prata no comércio de Lisboa. Em consequência de sua função comercial, essas ruas também deveriam ser construídas sem arcadas, para aumentar a segurança. Ele também citou dois modelos de cidades reconstruídas que considerava importantes: Turim e Londres. Em cada um desses casos, examinou a história da reconstrução -em Turim, onde uma nova cidade foi construída como uma extensão adjunta à antiga, e os planos de Christopher Wren [arquiteto inglês (1632-1723)] para a reconstrução de Londres após o incêndio de 1666. O principal no caso de Lisboa, observou Maia, era que o rei não havia insistido para que o palácio real fosse reconstruído em seu local anterior. O rei, é claro, adotou essa posição menos por motivos de pureza arquitetônica do que por seu temor de passar qualquer tempo em um palácio dentro da área do terremoto. Mas sua decisão livrou os planos dos urbanistas de um enorme empecilho. Se o rei estava disposto a abandonar propriedade imobiliária de primeira, seria difícil que outra pessoa não o fizesse. O plano de Maia foi aprovado rapidamente. Concentrado na reconstrução da cidade em seu local anterior, ele evitou o que acontecera em Londres, onde, apesar dos planos ambiciosos de Wren, os direitos de propriedade e o antigo traçado das ruas não foram revogados. Com esses princípios gerais elaborados, fizeram-se seis projetos detalhados, alguns menos radicais que outros. Afinal, porém, o padrão quadriculado mais radical foi aprovado e adotado -o quinto projeto desenhado por Eugênio dos Santos e Carlos Mardel. Este representava uma total reinvenção do centro da cidade, com uma completa reformulação do antigo padrão de ruas e limites de propriedade.

"Aspecto que lembra Veneza"
O plano substituiu a velha praça real por uma nova praça do Comércio. Essa praça à beira do rio teria prédios idênticos em três lados, com arcadas no térreo e pilastras duplas. O lado norte era interrompido por um arco triunfal. Dois pavilhões de três andares nas extremidades, feitos de pedra lioz (um calcário semelhante ao mármore, muito usado em Portugal), um dos quais abrigaria a bolsa dos mercadores, ancoravam as arcadas leste e oeste à margem do rio. As fachadas em arcos também utilizavam o contraste entre a pedra lioz branca usada nas molduras padronizadas das janelas e as paredes de reboco colorido. O historiador da arte Robert Smith [1912-1975] escreveu que esse uso extensivo da pedra lioz deu "a Lisboa um aspecto reluzente, que lembra Veneza". Quatro ruas principais, com transversais em ângulos retos, corriam para o interior, partindo da praça do Comércio em direção a duas praças paralelas reconstruídas com edifícios idênticos, o Rossio e a praça da Figueira. De frente para as ruas, seriam construídos blocos idênticos de quatro andares de moradias, com lojas no piso térreo. As paredes de cor ocre eram emolduradas nas extremidades por pilastras achatadas de ângulo aberto. Os edifícios eram encimados por telhados de duas águas. Portanto, uma unidade de arquitetura contínua foi criada no coração da cidade -uma área de 540 m por 375 m, que, segundo Smith, representa um dos "maiores empreendimentos arquitetônicos uniformes da era do Iluminismo". Em maio de 1758 foi aprovada a legislação para a avaliação e revisão dos direitos de propriedade. Medidas geométricas foram substituídas por localizações reais, de modo que os proprietários fossem indenizados pela terra, as casas e o antigo espaço na rua relocado sob o novo plano urbanístico. Ofereceram-se empréstimos às pessoas que precisassem, e as que assumiram novas propriedades receberam cinco anos para completar a construção dos novos edifícios. Tudo isso foi realizado com notável rapidez. Os novos prédios seguiriam dimensões padronizadas e uniformes. Mais importante, seriam construídos à prova de terremoto, por meio de uma pioneira "gaiola" antiterremoto de madeira flexível, formada por tirantes diagonais que reforçam uma moldura de madeira horizontal e vertical. Os edifícios reforçados foram assentados sobre alicerces feitos de pinheiro verde encimado por estacas trançadas de pinheiro e baldrames de cimento. Todos os prédios da Baixa foram construídos dessa maneira. Cada edifício foi dotado de uma cisterna no pátio traseiro entre os edifícios. Dali a água da chuva era conduzida para uma cisterna central sob a rua. Os planejadores da nova Lisboa pretendiam assim criar um ambiente urbano mais sanitário e saudável. Pombal tinha pedido a ajuda de um "cristão-novo" português então residente em Paris, Antonio Nunes Ribeiro Sanches (1699-1783), um aluno do grande químico, botânico e clínico H. Boerhaave (1661-1736).

Deslocamento das igrejas
Os "cristãos novos" eram descendentes de judeus convertidos à força. Alguns, como Ribeiro Sanches, recuperaram sua herança judaica depois que foram obrigados a deixar Portugal para escapar da Inquisição. Ribeiro Sanches tinha fugido para Londres na década de 1730 e mais tarde mudou-se para Viena, onde foi médico de Pombal durante o período em que este serviu como embaixador português na corte de Maria Theresa. Posteriormente ele foi para a Rússia, onde trabalhou com o czar e, muito impressionado pelas saunas russas, introduziu a sauna na Europa Ocidental, afirmando que era muito boa para as pessoas se lavarem e limparem. Ribeiro Sanches foi empregado por Pombal como um consultor remunerado, e Pombal publicou sua tese sobre saneamento e a necessidade de luz e ar para tornar os habitantes das áreas urbanas menos vulneráveis a doenças.
Assim como a propriedade secular, a questão de como tratar as propriedades eclesiásticas, igrejas e paróquias também precisava ser resolvida -se as igrejas seriam mantidas no lugar original ou transferidas. Decidiu-se que elas seriam reconstruídas em novos locais adequados ao plano mestre da cidade.


A PRESENÇA REAL ERA SIMBÓLICA; A ESSÊNCIA DO NOVO CENTRO É QUE SERIA UM LUGAR DE GOVERNO, COMÉRCIO, DA ALFÂNDEGA E DA BOLSA DE MERCADORIAS

A RECONSTRUÇÃO ESTEVE DIRETAMENTE LIGADA AO OBJETIVO DE ESTIMULAR UMA CLASSE ARTESANAL INDUSTRIAL NO PAÍS E ALAVANCAR A ECONOMIA



NÃO DEVERIA CAUSAR SURPRESA QUE A INFLUÊNCIA BRITÂNICA TAMBÉM FOSSE FORTE NA ARQUITETURA OU QUE MODELOS BRITÂNICOS FOSSEM ADAPTADOS

A PRINCIPAL FONTE DE RENDA PARA AS OBRAS VEIO DA SOBRETAXA DE 4% NAS TARIFAS ALFANDEGÁRIAS E DE UM TRIBUTO "VOLUNTÁRIO" IMPOSTO AO BRASIL



Permitiu-se mais decoração que nos edifícios seculares, mas nenhuma das novas igrejas pombalinas tinha torres. A nova praça do Comércio manteve uma presença real na forma de uma estátua em bronze encomendada para ficar em seu centro, de d. José a cavalo. A estátua, inaugurada em 1775, foi desenhada pelo escultor da corte, Joaquim Machado de Castro (1731-1822), e se baseou no monumento a Luís 14 (1660) publicado por Jacques François Blondel em "Architecture Françoise" (1752-56). Isso não significava que a Lisboa reinventada tivesse recriado uma "place Royale", porém. A presença real era simbólica. A essência do novo centro é que seria um lugar de governo, comércio, da alfândega e da bolsa de mercadorias. Em 1756, a Casa do Risco das Reais Obras Públicas, uma escola de arquitetura e desenho, foi fundada para produzir as plantas para os novos edifícios que se ergueriam nas principais ruas e praças. A escola funcionou até 1760, sob a direção de Eugênio dos Santos, quando ele foi sucedido por Carlos Mardel. Os projetos desenhados sob a supervisão de Santos e Mardel -cada desenho, cada fachada, ao mínimo detalhe- traziam a assinatura de Pombal.

Paredes à prova de fogo
Maia havia recomendado que os prédios ao longo das ruas na Baixa tivessem três andares, proporcionais à largura das ruas e uma precaução contra a eventualidade de futuros terremotos. Eugênio dos Santos acrescentou um andar extra. Durante o século 19, dois outros andares foram acrescentados. Todos os novos edifícios receberam paredes à prova de fogo subdividindo os tetos; as janelas e portas eram padronizadas; e ninguém teve autorização para construir de algum modo diferente dos projetos aprovados. Para evitar a monotonia, foram permitidas sutis variações de formas nas portas e nos balcões de ferro, e Maia recomendou que as pessoas tivessem autorização para pintar as janelas e portas em cores diferentes nas diversas áreas. Esse processo de reconstrução levou à criação de uma extensa infra-estrutura para a pré-fabricação de ornamentos de pedra padronizados, trabalhos de ferragem uniformes e um corte da madeira uniforme para as gaiolas, assim como para a produção de cimento e telhas. Em consequência, a reconstrução de Lisboa esteve diretamente ligada ao objetivo do governo de estimular uma classe artesanal industrial em Portugal e assim ajudar o desenvolvimento econômico geral do país. As principais praças de Lisboa, o Rossio e a praça do Comércio, assim como as ruas que as ligam, foram todas construídas segundo o plano pombalino. Elas permanecem até hoje quase exatamente como foram idealizadas nos projetos que Pombal aprovou pessoalmente.

Antecedentes
De onde vieram os conceitos para o estilo adotado por Pombal para a cidade reinventada? O historiador da arte português José Augusto França chamou a atenção para a influência das idéias de proporção e harmonia promovidas por Blondel em "Architecture Françoise". As gravuras do terremoto de Lisboa por Le Bas também foram publicadas por Blondel (1705-74), o fundador da École des Arts em Paris. Além disso, as ilustrações do livro de Blondel claramente forneceram o modelo para a estátua do rei colocada no centro da praça do Comércio. França argumenta, porém, que nenhum modelo europeu influenciou diretamente o planejamento urbano da Lisboa de Pombal. Certamente é verdade que havia uma grande tradição de engenharia militar e civil portuguesa à qual pertenciam Manuel da Maia e Eugênio dos Santos. Grande parte dessa experiência fora adquirida na construção de fortificações de fronteira e no planejamento de cidades coloniais. Também houve grande originalidade nas soluções que esses arquitetos militares imaginaram para solucionar dilemas estruturais colocados pela necessidade de construir prédios bem iluminados, saudáveis, à prova de terremotos e incêndios na Baixa de Lisboa e dotá-los de cisternas e esgotos. Mas também é verdade que a influência britânica era predominante nesse período. Os franceses, na verdade, consideravam Portugal pouco mais que uma colônia britânica. Não deveria causar surpresa, portanto, que a influência britânica também fosse forte na arquitetura ou que modelos britânicos fossem adaptados às circunstâncias portuguesas por Pombal. Muitas de suas políticas refletiam observações que fizera em Londres e se caracterizavam por sutis empréstimos e adaptações aos interesses nacionais e às possibilidades de Portugal. [O historiador da arquitetura" John Harris, um dos principais especialistas no movimento neopalladiano na Inglaterra, analisou a praça do Comércio em Lisboa em meados da década de 1990 e achou-a notavelmente semelhante aos projetos de Inigo Jones para o Covent Garden (Londres), publicados em "Vitruvius Britannicus", de Colin Campbell. De fato, examinando-se detalhadamente, existe uma notável coincidência entre os desenhos originais de Eugênio dos Santos para o lado norte monumental da praça do Comércio e a "piazza" desenhada por Jones com as casas com arcadas para os lados norte e leste de Covent Garden. O desenho de lorde Burlington para o dormitório do Westminster College em 1729, ilustrado em "Designs of Inigo Jones", de William Kent, assim como a nova ala de galerias com arcadas para a Old Somerset House, ilustrada no volume 1 de "Vitruvius Britannicus" (1715), também são muito semelhantes.

Inspiração londrina
É notável como as fachadas de Lisboa se aproximam dos desenhos arquitetônicos britânicos gravados -por iniciativa de lorde Burlington- por Isaac Ware em seu "Designs of Inigo Jones and Others" (1731). Ware foi assistente de Burlington na década de 1730, e esses desenhos lembram partes do desenvolvimento de Covent Garden. Como Harris indica em relação à inspiração das fachadas da praça do Comércio, as elevações mais baixas das arcadas não podem ser descritas como francesas, já que essas elevações não existiam na França em 1758. Seu estilo é mais precisamente descrito como italiano-palladiano.
Pombal fora embaixador português em Londres entre 1739 e 1742, período em que lorde Burlington desenvolveu seus edifícios urbanos. Em Londres ele se tornou membro da Sociedade Real, o principal círculo de pensadores iluministas ingleses, e, embora autoritário, perseguiu políticas que refletiam uma grande racionalidade, espírito prático e utilitário. Também é ilustrativo comparar o desenho das fachadas pombalinas com aqueles de blocos de moradias em terraços, com 13 seções sem colunas, de John Webb, segundo Inigo Jones. O terraço não apenas tem o objetivo de ser uma fachada sem adornos das ordens arquitetônicas, mas também algo que funciona como um cuidadoso equilíbrio de vãos e paredes. Essa mesma idéia foi implementada no desenho dos edifícios nas principais ruas da Baixa.

Ataques aos jesuítas e aristocratas
O posto de Pombal na Áustria de 1745 a 1750 foi outra importante influência na reconstrução de Lisboa. Em Viena Pombal tornou-se amigo íntimo do duque Silva-Tarouca, um emigrado português que havia ascendido no governo austríaco e era confidente da imperatriz Maria Theresa. Silva-Tarouca supervisionou a reforma do palácio de verão dos Habsburgos em Schönbrunn entre 1746 e 1749 e, escrevendo para Pombal sobre o projeto de reconstrução de Lisboa, lembrou suas "suavissimos conversaçoins" quando discutiram como poderiam ser remediadas as "defformidades e descomodos... ruas estreitissimas e tortuozas ... igualmente feias e noscivas athé para a saúde". Pombal descreveu para o duque sua legislação e como pretendia financiar a reconstrução. Carlos Mardel também levou detalhes da Europa Central para a reforma da propriedade de campo de Pombal em Oeiras. Os telhados de telhas côncavas de duas águas usados tanto no palácio de Pombal em Oeiras quanto nos edifícios padronizados da nova Lisboa refletem essa influência austro-húngara. Em meados de 1750, coincidindo com o planejamento pós-terremoto, Pombal começou a enfrentar crescente oposição da antiga aristocracia e da ordem jesuíta, ambas extremamente influentes durante o reinado de d. João 5º, mas marginalizadas por Pombal. Uma tentativa de assassinato contra José 1º em 1758 ocorreu principalmente devido à oposição aristocrática ter percebido que a única maneira de remover Pombal era remover o próprio rei. D. José foi ferido no atentado, mas se recuperou e Pombal aproveitou a ocasião para se voltar com total inclemência contra duas grandes famílias aristocráticas de Portugal, a família Távora e o duque de Aveiro, envolvidos no complô, e também usou o assassinato frustrado como desculpa para atacar os jesuítas.

"As minas brasileiras de ouro"
A remoção das duas potenciais fontes de oposição dentro da igreja e da aristocracia aumentou muito a autoridade de Pombal no Estado português e coincidiu com a época em que se tomavam as principais decisões sobre a reconstrução da cidade. Sem dúvida isso tornou possível o radicalismo das soluções adotadas, assim como diminuiu as fontes de resistência às medidas draconianas impostas aos proprietários e à igreja. As propriedades confiscadas dos jesuítas e das famílias aristocráticas condenadas pela tentativa de regicídio ajudaram a financiar muitos dos projetos favoritos de Pombal. Além disso, como o enviado britânico havia observado, a reconstrução da cidade "pode ser perfeitamente efetuada porque as minas brasileiras de ouro e diamantes não serão prejudicadas". A principal fonte de renda para a reconstrução dos principais edifícios públicos, como a alfândega e a praça do Comércio, veio de uma sobretaxa de 4% em todas as tarifas alfandegárias e um tributo especial e "voluntário" imposto no Brasil. Pombal não apenas deu atenção às praças centrais e ruas principais; casas mais modestas também foram projetadas e construídas, criando uma das primeiras zonas de desenvolvimento industrial em uma cidade européia. No local onde terminava o grande aqueduto, Pombal colocou seu subúrbio industrial com fábricas de seda, de cerâmica e moinhos têxteis de algodão. Pombal gabou-se em seu "Observações Mais Secretas", escrito em 6 de junho de 1775, quando a estátua equestre de José 1º foi inaugurada com grande cerimônia na praça do Comércio: "[...] Os sumptuosos e bem delineados edifícios de Lisboa, (...) obras todas feitas por mãos portuguesas, mostram bem vivamente aos estrangeiros que nenhuma inveja podem causar a Portugal nem os seus desenhadores, nem os seus pintores, nem os seus mais famigerados fundidores, nem os seus mais hábeis e peritos maquinistas". Infelizmente ele estava errado. Muito pouco da notável inovação urbana envolvida na reconstrução de Lisboa por Pombal foi percebido fora de Portugal. Os philosophes foram mais comovidos pelo terremoto do que pelas medidas adotadas para enfrentar suas consequências. O nome de Pombal tornou-se notório na Europa, certamente, mas menos por sua reconstrução da capital do que por sua expulsão dos jesuítas, suas disputas com os britânicos sobre comércio e a impiedosa execução dos aristocratas que se opuseram a ele. Assim, não era a imagem de um Portugal moderno, comercial e ressurgente que os europeus viam. De modo bastante injusto, era a antiga imagem de uma terra de catástrofe desmedida e superstição irracional que se reforçou. Voltaire liderou o bando em "Candide": "[..." Os sábios portugueses não puderam pensar em nada melhor para evitar a ruína total do que entreter o povo com um esplêndido auto-de-fé". A realidade, como vimos, foi o contrário. Mas os portugueses também tinham certa parte de culpa. Didier Robert de Vaugondy (1723-1786) encomendou em 1781 um artigo sobre Lisboa para a "Encyclopédie Méthodique" ao erudito cientista natural português José Corrêa da Serra. No entanto Corrêa da Serra perdeu o prazo e seu artigo chegou a Paris tarde demais para ser publicado, tendo por consequência que a Europa iluminista nada soube da nova invenção urbana que substituiu a confusa cidade medieval destruída em 1º de novembro de 1755.

Conclusões
Há vários pontos que valem a pena salientar sobre a Lisboa reconstruída. A Lisboa reinventada não era uma São Petersburgo ou uma Brasília; isto é, não era uma nova cidade construída totalmente em terras novas.
Essa era uma das alternativas que Manuel da Maia havia delineado: a transferência de toda a cidade, abandonando-se o lugar antigo, e a construção de uma nova. Mas Maia também recusou o modelo de Turim porque via a nova cidade italiana como um mero acréscimo à antiga. O que é único em Lisboa é o fato de ser uma nova cidade construída no antigo território, mas que foi radical também em termos de planejamento e execução, e portanto diferente de Londres. Em outras palavras, Christopher Wren teve a opção de fazer em Londres o que Pombal fez em Lisboa -revogando os direitos de propriedade e os antigos limites das propriedades para redesenhar radicalmente o espaço urbano. Em Londres, porém, os direitos de propriedade, as paróquias e a localização das igrejas permaneceram, de modo que depois do grande incêndio Londres foi reconstruída dentro de sua antiga configuração urbana. Também é importante notar o que falta na nova Lisboa. Não há um novo palácio real dominando o esquema; tampouco há uma nova catedral como a de São Paulo em Londres. Nesse sentido, a igreja e a monarquia estão ausentes. A nova Lisboa pretendia ser uma cidade comercial burguesa e utilitária, uma cidade orientada para o desenvolvimento econômico, com o objetivo de modernizar Portugal. A cidade simples, quase austera, despojada e tectônica neopalladiana de Pombal reflete esses imperativos.

Marco zero
Uma das questões com relação ao marco zero é se Nova York seguirá o modelo de Londres ou de Lisboa. Joyce Purnick, do "New York Times", parece preferir um Pombal a um Christopher Wren, ou pelo menos a um autoritário como Robert Moses:
"Aqui está a frase mais amplamente sussurrada (...): "Precisamos de um Moses". "Nós" é a cidade de Nova York; Moses é Robert, o dominador mestre construtor de uma era menos democrática na história da cidade. Moses é lembrado cada vez mais enquanto os nova-iorquinos aguardam a reconstrução do World Trade Center e se perguntam como ela será realizada, diante das agendas conflitantes e de um grande e crescente elenco de personagens, nenhum deles um líder com o tipo de poder e autoridade necessários para trazer ordem à fragmentação, visão à necessidade".
Pombal, é claro, exerceu um poder impiedoso e antidemocrático com que mesmo Robert Moses só poderia sonhar, e não há dúvida de que a Lisboa reinventada do final do século 18 realmente é em grande parte um produto do uso do poder do Estado por Pombal para criar uma cidade radicalmente transformada das cinzas da grande catástrofe de 1º de novembro de 1755.

Kenneth Maxwell é historiador inglês e um dos principais brasilianistas da atualidade. É autor de "Mais Malandros - Ensaios Tropicais e Outros" e "Marquês de Pombal - Paradoxo do Iluminismo" (ambos pela ed. Paz e Terra). Escreve na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


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