São Paulo, domingo, 12 de janeiro de 2003

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Ponto de fuga

A morena e as teclas

Revista "Óculum"/Reprodução
Edifício no parque de la Villette em Paris, projetado pelo arquiteto francês Christian de Portzamparc


Jorge Coli
especial para a Folha

Em 1909, Guiomar Novaes alcançou o primeiro lugar no concurso de admissão para o Conservatório de Paris, frente a 331 candidatos. Isso provocou uma observação, meio entusiástica, meio desconsolada, de Debussy, que fazia parte da banca e investia na formação dos jovens pianistas franceses. Numa carta, ele se refere à "ironia habitual das coisas" que dispôs, como vencedora, "uma jovem brasileira de 13 anos".
Nesses tempos, o Conservatório de Paris era, para citar ainda Debussy, um lugar "sombrio e sujo". Dois anos depois, foi para uma nova sede, onde ficaria até 1990. Instalado no novo edifício concebido por Christian de Portzamparc, é agora uma espécie de paraíso da música: todos os dias são oferecidos, gratuitamente, recitais, concertos, balés e óperas.
No dia 17 de dezembro passado ali se apresentou Juliana Steinbach, pianista nascida em João Pessoa. Com seus 23 anos, obteve o primeiro lugar, por unanimidade, para aceder ao ciclo de aperfeiçoamento do Conservatório. Em consequência, ganhou um piano de cauda, prêmio da fundação Alfred Reinhold. Seu recital estreava o instrumento esplêndido. Juliana Steinbach foi para a França com três anos de idade, mas guarda laços de origens brasileiras. Tem uma beleza de morena trigueira e fala português com suave sotaque. A doçura encontra-se também no tom de voz, na elegância discreta dos gestos, mas dá lugar, nas interpretações, a uma energia poderosa.

Constelação - O programa escolhido por Juliana Steinbach, no recital de sua premiação, não evitou dificuldades: uma obra de Matan Porat [compositor israelense nascido em 1982", cujas últimas páginas foram escritas uma semana antes da apresentação; a segunda sonata de Schumann; a temível "Sonata para Piano" de Bela Bartók. O toque é encorpado, pessoal, e Juliana Steinbach possui uma verdadeira personalidade de intérprete, coisa tão rara em tempos de virtuoses impecáveis e indiferentes. Seus olhos grandes são também "embriagados de música", para usar a expressão que Claude Debussy atribuiu à menina Guiomar Novaes.

Jardins: Numa das extremidades de Paris, no parque de La Villette, onde ficavam os antigos matadouros, foi construída a "Cidade da Música". O arquiteto Portzamparc dispôs, numa praça, frente a frente, o edifício do Conservatório e o do Museu da Música, que compreende também uma grande sala de concertos. Ambos demonstram que a arquitetura contemporânea pode ser outra coisa além de achados simples e autoritários.
François Mitterrand quis marcar seu mandato por realizações arquiteturais meio faraônicas: a nova Biblioteca Nacional, o novo Louvre, a Ópera da Bastilha, a "Arche de la Defense". A "Cidade da Música" é a mais bem sucedida, exemplo de soluções atentas ao bem estar das pessoas, à escala humana, às questões técnicas.
No Conservatório, o arquiteto partiu de um problema crucial para uma escola de música: o isolamento sonoro das salas. Ele é de fato impressionante. Cada auditório possui sua acústica distinta, e são, todos, excelentes. As formas exteriores dos dois edifícios não se afirmam como signos nítidos; compõem, antes, vários volumes inseridos uns nos outros, sem que nenhum se afirme por si só. Dentro, a circulação fluente permite renovar pontos de vista e percepções do espaço. Os ambientes apresentam uma diversidade não apenas formal, mas "sugestiva", por assim dizer, graças aos diferentes materiais, à luz e harmonia que se modificam. Por vezes, surgem alusões: assim, a sala do órgão retoma o tema clássico da cúpula, mas deslocando seu eixo, como se o interior do Panteão romano se inclinasse.

Flores - Os concertos e recitais apresentados pelo Conservatório de Paris indicam um interesse por obras mais raras, vindas de horizontes diversos. No dia 13 de dezembro, foi incluído o "Quinteto em Forma de Choros", de Heitor Villa-Lobos. A interpretação acentuou o colorido dos instrumentos, num clima de melancolia e malemolência.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


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