São Paulo, domingo, 12 de fevereiro de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ cultura

A partir de arquivos inéditos, estudo francês descreve como o recurso às imagens mudou os rumos da Justiça

Ver para acreditar

JEAN-LUC DOUIN

Será que contemplar uma imagem pode nos ajudar a compreender melhor a história? Tendo acesso privilegiado a arquivos que em sua maior parte são mantidos fechados e inéditos, em Washington e Nova York, o historiador Christian Delage propõe, em "La Vérité par L'Image - De Nuremberg au Procès Milosevic" [A Verdade pela Imagem - De Nuremberg ao Processo contra Milosevic, ed. Denoël, 376 págs., 24, R$ 63], a mesma pergunta do ponto de vista da Justiça internacional.
Menos que um ensaio filosófico ou ético que representa fotos e filmes com base em seu relacionamento a um horror indizível, o livro é um relato detalhado sobre a maneira pela qual a imagem ganhou entrada no universo judiciário e conquistou um papel de prova essencial no julgamento de crimes de guerra, desde os primórdios, nos anos que se seguiram à Segunda Guerra, como um instrumento de mediação entre carrascos e suas vítimas.
O personagem principal desse relato é norte-americano e se chama Robert H. Jackson. Tratava-se de um juiz, encarregado pelo presidente Henry Truman em 1945 de criar uma instância judicial diante da qual seriam julgados os principais criminosos nazistas. Jackson tomou duas iniciativas inéditas: apresentar filmes como provas, durante as audiências, e filmar os procedimentos para criar um arquivo histórico.


O trecho central trata dos processos de Nuremberg, abertos com um documen- tário para cuja edição foi convidado Hitchcock


Que esse duplo precedente tenha sido proposto pelos EUA não constitui acaso. Afinal, foi lá que o jornalista James Agee convidou o fotógrafo Walker Evans a registrar imagens que acompanhariam seu texto sobre a miséria no Alabama, "Let us Now Praise Famous Men" [Elogiemos Homens Famosos] e intelectuais como Lilian Hellman e Dorothy Parker angariaram fundos para financiar "The Spanish Earth" [A Terra Espanhola], documentário de Joris Ivens sobre a Guerra Civil Espanhola.
No exílio, Fritz Lang costumava usar imagens de noticiosos cinematográficos em seus trabalhos de ficção. Os noticiosos antinazistas produzidos pelos estúdios Fox e Universal convidavam a uma tomada de posição ("não afastem os olhos. Contemplem!"); os filmes foram reunidos em uma série de documentários inicialmente encomendado a Ernst Lubitsch e cuja direção mais tarde foi assumida por Frank Capra.
Jackson convenceu britânicos e soviéticos sobre a necessidade de criar o Tribunal Militar Internacional, solicitou e obteve os serviços de John Ford, iniciou a coleta de provas de crimes de guerra, entrou em contato com organizações judaicas. O roteirista e romancista Budd Schulberg, autor de "What Makes Sammy Run?", foi encarregado de organizar a busca de imagens. Para isso, foi estabelecida uma forte ligação com a indústria cinematográfica.

Hitchcock e Dos Passos
O livro de Delage exuma numerosos documentos, como recomendações apresentadas a jornalistas sobre temas do tipo "como filmar um cadáver" ou "como interrogar um alemão". O trecho central gira em torno dos processos de Nuremberg, abertos com a exibição de um documentário, "The Nazi Concentration Camps" [Os Campos de Concentração Nazistas], contendo cenas registradas pelos britânicos em Bergen-Belsen, para cuja edição o conselho convidou Alfred Hitchcock.
Dan Kiley, o encarregado de filmar as audiências, preparou a sala como se fosse um cenário e instalou baterias de projetores para iluminar o banco dos réus.
Em seus relatos, os jornalistas, entre os quais John Dos Passos e Joseph Kessel, misturam inextricavelmente aquilo que os filmes mostravam sobre os campos nazistas e a maneira como os acusados reagiam às imagens, comentando sobre os detalhes psicológicos do comportamento dos réus. "Vêem-se pilhas de mortos... Von Schirach contempla atento; soluça, respira com dificuldade. Funk chora sem parar. Göring tem um ar tristonho. Quando um abajur feito de pele humana é exibido, Streicher diz que não acredita no que está vendo. Göring tosse."
De fato, as imagens exibidas têm por objetivo fazer com que os acusados contemplem os seus crimes mas também pretendem conscientizar a opinião pública quanto à gravidade do que transcorreu. Popularizar as lições de Nuremberg: Orson Welles se encarregou disso ao empregar imagens dos campos nazistas em "O Estrangeiro" (1946), assim como Samuel Fuller, em "Verboten" (1959), e Stanley Kramer, em "Julgamento em Nuremberg" (1961).
O Tribunal Militar Internacional criado por Jackson é a origem dos tribunais instalados muitas décadas mais tarde para julgar os crimes de guerra em Ruanda e na ex-Iugoslávia. Mas o julgamento de Slobodan Milosevic se tornou uma batalha de imagens. Após ser forçado a assistir a documentários pela acusação, ele rebateu na mesma moeda e exibiu um documentário com o objetivo de demonstrar que as imagens exibidas tinham mais de uma interpretação.
"Os efeitos de uma projeção sobre a audiência não anulam de forma nenhuma a imaginação que é necessário exercitar quando o crime excede os limites da representação", concluiu Delage. Um julgamento filmado assegura o debate público.

Onde encomendar
Livros em francês podem ser encomendados no site www.alapage.com ou, em SP, na Fnac (tel. 0/ xx/ 11/ 4501-3000).
Este texto foi publicado no "Le Monde".
Tradução de Paulo Migliacci.


Texto Anterior: + autores: Vidas em liqüidação
Próximo Texto: A via sacra
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.